quinta-feira, 15 de maio de 2014

Emily Dickinson





A água se ensina pela sede;
A terra, por oceanos navegados;
O êxtase, pela aflição;
A paz, pelos combates narrados;
O amor, pela cinza da memória
E, pela neve, os pássaros.


 

  Emily Dickinson,
 (poeta norte-americana,
 nasceu em 10/12/1830 e morreu em 15/5/1886)

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Poemas de Carlos Marzal




A poesia tem aquela aura de escrita intensa que quando é doce é muito doce, quando é dramática é muito dramática, quando é selvagem é muito selvagem.



Esplanada



está a chuviscar um bocadinho
mas não tanto que se possa
chamar a isto mesmo chuva


e vamos ficando molhados lentamente
mas não tão molhados que valha
a pena falar disso


e um bocadinho apaixonados
mas não tanto que se possa
chamar a isto mesmo amor



Poema de Henrik Nordbrandt, traduzido por Vitor Lucas Santos

***

Le bout de la nuit



Depois de termos amado (a até às vezes a sério)
e de termos sido amados (inclusive de verdade)
Depois de termos escrito, mas sem nomear nunca
o que era necessário. Depois das cidades,
dos corpos dos objectos, depois de termos deixado
para trás o memorável com que coincidimos,
depois de defraudarmos, depois de nos defraudarmos,
depois de percorrermos a viela do tempo,
depois da impiedade, depois do fogo,
acabamos por chegar ao fim da noite.
E aí a chuva cai escura sobre o mundo,
e já não há ocasião para dizermos depois.


Poema de Carlos Marzal (traduzido por Joaquim Manuel Magalhães)

Carlos Marzal, Espanha (n. 1961), tradução de Nuno Dempster

A Luis Antonio de Villena




Umas centenas de livros, uma casa na praia,

móveis que o coração foi envelhecendo

e que tornaram o mundo hospitaleiro,

fetiches de alguma viagem, talismãs

que nada puderam contra o mundo,

um punhado de cartas de uns quantos amigos,

uma ou outra carta secreta, inconfessável,

papéis ordenados, papéis sem sentido

medicamentos, quadros, roupa usada

e roupa por usar, várias contas de banco,

uma viúva aturdida, um automóvel,

uma amante aturdida, um pente com cabelos,

uma caligrafia que perdeu a firmeza da sua mão,

um odor familiar a caminho do nada.

Este é o inventário dos bens de um morto,

e como todo o censo e todas as listas

supõe um exercício de modéstia.

As nossas coisas, que às vezes pareciam proteger-nos,

habitar-nos o mundo que habitávamos,

num relance se convertem

num prolixo catálogo de absurdos,

rotas apagadas de um mapa inexistente,

pássaros dissecados cujos olhos

não sabem recordar um céu que já ardeu.



Carlos Marzal, Espanha (n. 1961), tradução de Nuno Dempster.

René Char (1907-1988), França, tradução de Soledade Santos





J’habite une douleur





Não entregues o cuidado de governar o coração a essas ternuras semelhantes ao outono do qual imitam o ritmo plácido e a agonia afável. O olhar enruga-se precocemente. O sofrimento conhece poucas palavras. É melhor que te deites sem fardos: sonharás com o futuro e a cama ser-te-á leve. Sonharás que a tua casa não tem vidros. Estás impaciente para te unires ao vento, ao vento que numa noite percorre um ano. Outros cantarão a encarnação melodiosa, a carne que não personifica senão o feitiço da ampulheta. Tu condenarás a gratidão que se repete. Mais tarde, identificar-te-ão a um qualquer gigante desintegrado, senhor do impossível.

E no entanto.

O que fizeste apenas aumentou o peso da tua noite. Voltaste à pesca nas muralhas, à canícula sem verão. Estás furioso contra o teu amor no centro de uma conivência aflita. Idealizas a casa perfeita que nunca verás edificada. Para quando a safra do abismo? Mas tu vazaste os olhos do leão. Tu julgas ver a beleza passar por cima das lavandas negras...

O que é que te ergueu, ainda uma vez, um pouco mais alto, sem te convencer?

Não há morada pura.

René Char (1907-1988), França, tradução de Soledade Santos

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Expresso do Alfa ao Omega





Expresso do Alfa ao Omega




(A Amélia Pais)


Nada há sob o sol
que já não tenham dito os gregos.


A novidade é que o mundo
ficou rápido. Mercúrio
tem agora jatos nos pés.


O homem impacientou-se
de viver longos anos
e tem pressa de chegar a nada.



Walter Cabral de Moura, É Lenta a Palavra Tempo, Editora Babbeco, Olinda, 2012




terça-feira, 25 de setembro de 2012

Coração pequeno





Coração pequeno



"o projétil que disparei
durante a grande guerra
deu a volta ao globo
e acertou-me nas costas


no momento menos adequado
quando já estava certo
de ter esquecido tudo


as culpas dele
as minhas culpas


pois quis como os outros
apagar a memória
as caras de ódio


a história confortava-me
tinha combatido a opressão
e o Livro dizia
-É ele o Caim


tantos anos pacientemente
tantos anos inutilmente
Coração pequeno

lavei com a água da piedade
a fuligem, o sangue, as ofensas
para que a sublime beleza
o encanto da existência
e talvez mesmo o bem
me habitassem
pois como todos
tinha o desejado voltar
à baía da infância
ao país da inocência


o projétil que disparei
com uma arma de pequeno calibre
contrariando as leis da gravidade
deu a volta ao globo
e acertou-me nas costas
como a dizer
- nada será perdoado
a ninguém


eis-me pois sentado solitário
sobre um tronco de árvore cortada
muito exactamente no meio
de uma batalha esquecida


e teço aranha grisalha
considerações amargas



sobre a imensidão da memória
sobre a pequenez do coração"



Zbigniew Herbert
(Polónia 1924/ 1998)



in DiVersos,
Poesia e Tradução, 17
Edições Sempre-em-Pé




A PEDRA DA LUZ





A PEDRA DA LUZ – Adonis




Esculpo minha vida sobre a pedra da luz
vida calma como um grão de trigo
névoa cobre minhas letras
vejo sombra nas minhas palavras.


Por ser amor
permaneço, construo sobre a luz
e um bocado dos meus dias constrói comigo.



Adonis
Tradução de Michel Sleiman

Elogio da Distância






Na fonte dos teus olhos
vivem os fios dos pescadores do lago da loucura.
Na fonte dos teus olhos
o mar cumpre a sua promessa.


Aqui, coração
que andou entre os homens, arranco
do corpo as vestes e o brilho de uma jura:


Mais negro no negro, estou mais nu.
Só quando sou falso sou fiel.
Sou tu quando sou eu.


Na fonte dos teus olhos
ando à deriva sonhando o rapto.


Um fio apanhou um fio:
separamo-nos enlaçados.


Na fonte dos teus olhos
um enforcado estrangula o baraço.



Paul Celan, in "Papoila e Memória"
Tradução de João Barrento e Y. K. Centeno

MIHYAR É UM REI




MIHYAR É UM REI – Adonis






Mihyar é um rei
para ele o sonho é palácio e jardins de fogo
hoje uma voz morta
queixou-se dele às palavras.



Mihyar é um rei
vive no reino do vento
reina na terra dos segredos.




Adonis
Tradução -Michel Sleiman

ENCONTROS





ENCONTROS – Ribeiro Couto




Dói-me às vezes pensar que na multidão
Muitos daqueles passantes que ali vão
Arcados ao peso de uma dor secreta
Não sabem que é para eles é que sou poeta
Não sabem que sei, tudo lhes adivinho
E em seus ouvidos falo baixinho.



Este seria meu amigo, aquele meu irmão,
A qualquer deles apertando-lhe a mão,
A surpresa de bom companheiro eu lhes faria,
Sábio até no riso que distrai da melancolia.



Uns caminham devagar, outros a passo lento,
Cada qual escondendo o mesmo sentimento.
Nada os espera, nem eles mesmo esperam nada,
Nem mesa posta, nem janela iluminada
Ao fim da rua, ou de outra rua, longe ou perto,
Ruas e ruas, ruas e ruas, sempre o deserto.



Portadores da minha própria solidão,
Assim passam, assim me deixam, assim se vão.

Elytis





Abro a minha boca e o mar se regozija
E leva as minhas palavras a suas escuras grutas
E às suas focas pequenas as murmura
Nas noites em que choram os tormentos do homem.

Abro as minhas veias e enrubram-se os meus sonhos
Transformam-se em arcos para os bairros dos meninos
E em lençóis para as raparigas que velam
Para ouvir às ocultas os prodígios do amor.

Aturde-me a madressilva e desço ao meu jardim
E enterro os cadáveres dos meus mortos secretos
E às estrelas traídas que eram suas
Corto o cordão dourado pra caírem no abismo


O ferro enferruja e eu castigo o seu século
Eu que já experimentei a dor de mil pontas
Com violetas e narcisos a nova
Faca vou preparar que convém aos Heróis.


Desnudo o meu peito e os ventos se desatam
E vão varrer as ruínas e as almas destruídas
Das espessas nuvens limpam a terra
Pra que surjam à luz os prados encantados.


Elytis
tradução - Manuel Resende



domingo, 2 de setembro de 2012

Namorada






Não uma rosa vermelha ou um coração de cetim.

Ofereço-te uma cebola.
É uma lua embrulhada em papel castanho.
Promete luz
tal como o cuidadoso desnudamento do amor.

Aqui.
Vai cegar-te com lágrimas
tal como um amante.
Vai fazer do teu reflexo
uma fotografia tremida de dor.

Tento ser verdadeira.

Não uma carta engraçada ou uma quantidade de beijos.

Ofereço-te uma cebola.
Os seus beijos violentos permanecerão nos teus lábios,
possessivos e fiéis
como nós somos,
enquanto continuarmos a ser.

Aceita-a.
Se o desejares
os seus anéis de platina servem de alianças.

Letais.
O seu cheiro vai agarrar-se aos teus dedos,
agarrar-se à tua faca.


(versão L. Parrado- original reproduzido em Selected poems, Peguin, Londres, 2006, p. 11).

Último brinde






Bebo ao lar em pedaços,
À minha vida feroz,
À solidão dos abraços
E a ti, num brinde, ergo a voz…

Ao lábio que me traiu,
Aos mortos que nada veem,
Ao mundo, estúpido e vil,
A Deus, por não salvar ninguém.


Anna Akhmatova

(escrito em 1934, no original - tradução de Rubens Figueiredo)

Dádiva




Um dia tão feliz.
A névoa baixou cedo, eu trabalhava no jardim.
Os colibris se demoravam sobre a flor de
madressilva.
Não havia coisa na terra que eu quisesse
possuir.
Não conhecia ninguém que valesse a pena
invejar.
O que aconteceu de mau, esqueci.
Não tinha vergonha ao pensar que fui quem sou.
Não sentia no corpo nenhuma dor.
Me endireitando, vi o mar azul e velas.


CZESLAW MILOSZ

quinta-feira, 31 de maio de 2012

SUICÍDIO





Havia em mim uma vintena de gerações,
Assim pelo menos,
E nessa manhã, vá-se lá saber porquê,
Uma janela deixada aberta talvez,
Alguém se atirou para o vazio.

Então subitamente todos eles
Se puseram a saltar
Uns atrás dos outros,
À bicha, como que fazendo a chamada
Sobre um trampolim,
Segundo o princípio da desintegração dos carneiros.

Em menos de uma hora e meia
Encontrei-me totalmente despido, sem nada,
E de vergonha atirei-me para o vazio também eu,
Devo ter morrido à altura do quarto andar,
Ao décimo, em todo o caso,
A coisa estava consumada.

Tudo isto,
É um mero passante,
Quem vo-lo conta,
Um de entre nós,
Melhor dizendo,
Que terá talvez caído menos mal.




marin sorescu
simetria
tradução colectiva revista, completada e apresentada por egito gonçalves;poetas em mateus;quetzal;1997
Encontrado no blogue http://canaldepoesia.blogspot.com

domingo, 14 de agosto de 2011

LÁGRIMAS DOS OLHOS, COMO CENTELHAS DE SÍLEX


Lágrimas dos olhos, como centelhas de sílex,
como uma palavra justa, arrancar para que serve?
Nada há de especial. A palavra é como fogo,
e o coração do homem não vive de soluços.
Não é absolutamente isso que me atormenta.
Mas levantarmo-nos de madrugada, à chegada do dia,
e dizer a quem vai à frente:
- Felicidade! –
Dar-lhes uma canção, com toda a alegria,
que proteja como uma autêntica armadura,
das palavras que soam vãs e falsas.
Queremos do homem não a centelha mas o fogo.

Margarita Aliger
Tradução de Manuel de Seabra.



Margarita Aliger nasceu em Odessa no ano de 1915. Foi operária, bibliotecária e jornalista. Já em meados da década de 1930, fez estudos de Literatura em Moscovo. Tornou-se conhecida durante a II Guerra Mundial, muito por culpa de um poema, Zoyá, sobre uma jovem estudante enforcada pelos nazis. Zoyá foi publicado em 1942. Margarita tinha-se estreado em 1938 com God rojdéniia. Faleceu no dia 1 de Agosto de 1992.
________________________

OS POEMAS QUE ESCREVAS



Os poemas que escrevas,
ainda que muitos, são
um só, inacabável,
interceptado um dia:

sufocante abertura
por onde irás descendo
a um poço, uma vertigem,
com uma única saída

que, enfim, vislumbrarás
quando já não tiveres olhos.
JOSÉ BENTO *


Sítios, Assírio & Alvim, Lisboa, 2011.
*além de poeta,exímio tradutor de poesia espanhola

PREVISÃO DO TEMPO


Por que insistem os jornais em nos fazer previsão de chuva?

Podem até ter razão, mas o que não informam é que
depois virá o sol. Depois sempre vem o sol,
mesmo para os que morrem. Ou não é isso
o que prometem todas as religiões e os novos dias?

Entretanto vai continuar a chover, melhor estar prevenido.

Walter Cabral de Moura

A MENINA DO BRINQUEDO QUEBRADO

A menina do brinquedo quebrado

Esse poema eu o senti há oito dias, quando fui na segunda-feira da semana passada tomar o café da manhã numa padaria no bairro de Petrópolis, em Natal. De repente me veio à mente a imagem de uma menina com um brinquedo quebrado nas mãos, e que a todos o mostrava, entre esperançosa e desconsolada, mas estranhamente orgulhosa de seu brinquedo quebrado. Era um sentimento tão nobre que pensei que não iria conseguir transcrevê-lo, e fiquei muito feli z ao vê-lo assim em versos tão simples.

Agora lembro de algo que me ocorreu uns dez dias antes, quando de plantão num hospital psiquiátrico público de Natal. Atendi a um casal, um mestre de obras e sua mullher, ambos na faixa dos vinte e poucos anos; o pedreiro estava tendo sucesso na profissão, era inclusive o responsável pelo pagamento dos demais funcionários. Como a empresa demorou a repassar-lhe o dinheiro, ele ficou sem dormir, e com idéias de que o estavam tentando prejudicar deliberadamente, irritadiço, ansioso. É que muita gente ia cobrar-lhe o dinheiro, e ele n]ao tinha como atender aps queixosos. Não sei como descrever o desespero daquela jovem mulher diante da poissibilidade de o marido estar enlouquecendo logo naquele momento em progredia na profissão... Temi pelo píor diante do quadro, isso era por volta da uma hora da tarde. Felizmente, após uma boa soneca provocada por sedativos potentes, o homem, lá pelas dezoito e trinta horas, estava bem disposto e equilibrado, próprio a enfrentar a vida, e pude atender ao pedido da mulher para liberá-lo de volta á sua cidade,. na periferia da Grande Natal.

Ah, como ninguém é obrigado a saber francês, traduzo os versos de Baudelaire no poema "Ao leitor", em epígrafe no meu: "Hipócrita leitor, meu igual (semelhante), meu irmão".

absaam



A MENINA DO BRINQUEDO QUEBRADO
"Hypocrite lecteur, mon semblable, mon frère!"

Eu vi a menina
que ia e que vinha
e em suas mãos tinha
um brinquedo quebrado.

E a todos mostrava
o seu sonho desfeito
- Ainda terá jeito
o brinquedo quebrado?

Há quem passe apressado,
há quem dê atenção;
há quem pegue na mão
o brinquedo quebrado.

Um se irrita, outro ri,
um tenta consolar;
outro quer consertar
o brinquedo quebrado.

Um estica, outro puxa,
há quem dê um aperto...
Mas não tem mais conserto
o brinquedo quebrado...

* * *

Tu conheces aquela menina
que senta na calçada
triste e desconsolada,
seu corpinho abraçado
a um briquedo quebrado?

Pois ela é nossa mãe,
vida, amante e amada;
nossa irmã que por nada
perde a estranha esperança
de voltarmos a ser
novamente a criança
que ela pôde ver
- manhã ensolarada!

O brinquedo sou eu
e és tu - Somos nós!
Desgraçado o que é
de si próprio o algoz;
e que se aos demais
diz sempre estar melhor,
a si mesmo não nega
que se torna pior.

Ainda que cansada
persiste no caminho.
Acha em seu coração
- poço estranho! - um carinho.
E o brinquedo quebrado
por seus dedos tocado
soluça qual um pinho.

Só por ela lembrado,
só por ela guardado,.
só por ela escutado...
O brinquedo quebrado.

Porque assim é aquela menina...

- Tu a conheces, leitor!


Antônio Adriano de Medeiros
agos - 2011

Uma alegria dolorosa


De que nos serve, no sábado à noite, quando a solidão
dos abandonados vem ter connosco à mesa dos cafés,
termos sido aquele a quem se disseram palavras de amor,
terem-nos tocado e olhado, esperado por nós,
enquanto ao longe os automóveis passavam, as pessoas,
apressadas, continuavam a procurar, febris, a felicidade?
Rompem-se as cordas, soam nos rios tristes da memória
os sinos da miséria e da escuridão. E se chove,
a melancolia que nos oprime já não se dilui nessa água suave.
A rapariga que podíamos ter amado, a última,
contempla as folhas verdes das árvores, sorri,
e imagina, sentada ao nosso lado, uma alegria dolorosa,
sem pensar em nós, distraída da densidade baça do nosso olhar.
E à uma da manhã, quando o cansaço vem,
e no espelho da casa de banho de um bar o rosto
se nos revela atormentado, os poros gordurosos,
dirigimo-nos devagar para a saída, dizemos boa-noite,
e é só nossa é a morte secreta, esse abandono.



João Camilo

A Ambição Sublime
Fenda
2001

CADERNO DE ENTARDECER

1

aproximam-se as aranhas do meu projecto de vida,
asas se as tivessem levariam daqui quanto eu risquei
em nome dos vossos interesses, assim o entardecer,

ah as aranhas, as teias, pavores que suporto na pele,
esses livros de versos incompletos, as pedras vazias,
como se nada fosse e ninguém quisesse aparecer,

2

guardai-vos dos dentes, a fera não vem nos livros
desta manhã, anda a jogar ao arco na rua disfarçada
de ternas crianças, se não estivermos atentos nem
as árvores servirão de refúgio, nem os bares, nem o medo,

3

manhã de pequenos corvos sobre coimbra, desfiam-se
as horas como dantes e é tão triste e voam assim baixo
que a terra se encolhe mal lavrada. deste monte, deste
mundo, deste lugar privilegiado no céu da tua boca

onde nem o sol aquece, nem a lua arrefece, longe e gasta.
os motores das chuvas, tudo o que esqueço e se perde
é já deste século, ah isso é tão triste como as manhãs,
como a ronda do cão pelas varandas secretas, sujas,

4

não faltará papel impresso, teremos leis, livros e peles de
animais para fazermos os nossos vestidos. menos uma pena,
menos a opinião dos outros, áparte essas palavras vazias,
e uma rua que se percorre com as mãos nos bolos, triste,

5

escrevo-os, lembrem-se quando pela noite se aproximam
de dentes cerrados, de canos serrados. o chão será de papel,
escrevo-os, e tão torvos os olhos os dedos, lembram-se
da arma perdida em cada palavra, escrevo-os à mesa do café,

6

além está o boi, que é como quem diz, não foi nem podia ser
senão o cartaz dos animais velhos. debaixo de que pedra
colaram o cartaz do seu anúncio? um outro boi assoma
e já se vê o próprio calcanhar da história a amarelecer,

7

era uma vez a mentira nas lentes de uns óculos de sol,

8

mentem as asas do rosto, mentem as pedras do caminho
em definitivo, esvoaçam os pássaros tão lentos e carnívoros,

9

diziam-no cá como em budapeste, mas era demasiado tarde
e, num abrir e fechar de flores, apodreceu a primavera,
os seus fogos de lar, as suas esquinas sem heróis, sem deuses,

10

éramos muitos mais que os mortos, cantávamos na estrada
e andávamos com os pés ensanguentados, aquilo parecia
a conjugação do último dos verbos perdidos, um coração
guardado numa pequena caixa de cartão, ou uma fuga,

11

parecido com as velhas peças de louça nos mármores
dos aparadores, vigiavam-se, afiavam as navalhas
e, sentados, resguardavam todas as palavras do silêncio,

12

assustada, entre a folhagem do jardim dos livros,
tecia o seu pano de linho, os lanhos da vingança,

13

nada lhe digo, sem mágoa, é o tempo que se perde
entre as pedras do ofício. é o verão, os campos
mais secos e um nó na garganta do rio que apodrece,

14

porque me aproximo desta mulher que não tem cores
nem olhos, leio nas suas mãos os anos da fome
guardados num sobrescrito, é um cigarro abandonado,

15

perdemos as cinzas, as terras, os cereais de pragana
e as armas da boca, as rotas já não são as mesmas,
o pó dos caminhos é da cor de um estranho medo,

16

no sabor amargo dos tanques, nada, ninguém cresce,
abrem-se as mãos, ensanguentadas?, e o que cai
no tronco da rapariga das angústias? o regresso
à antiga praia dentro da cabeça, aos teus lábios?

17

em torno dos granitos, os óleos, sobre as águas,
o teu nome como uma torre de fogo e incenso:
e se fingíssemos os invernos? se a língua tocasse,
nos sinos do corpo, o requiem, ou esses venenos?

18

aproximamos os lábios dos lábios, mordemos
a abelha pousada nas costas da mão da acácia,
há um beijo perdido entre as folhas e o amargo
lençol, sobre o teu ombro deixo as palavras,

19

as tuas mãos são as mãos da noite, esse mel
que a língua recolhe no silêncio do corpo.
tocas as raízes, as tardes, as colchas brancas
estendidas, como esses pássaros do outono,

20

esses vales fingidos dividem o horizonte, três aguarelas
marcam o espaço tangente, os rostos vigiam-se, lâminas
em vez de pão em cada manhã, dizem que é coimbra
e eu voo, passa o tempo e a terra de novo se mistura

na voz dos pássaros cantores, no pregão gravado no vinil,
corram as cortinas, é tarde, leio os jornais de ontem,
adormeço rangendo os dentes, rápidos, os corvos descem,
do alto das colinas? mas o olhar desaparece, incomodado,

21

sob as chuvas as palavras caem, ou ecos de palavras,
dissolvem-se, revestidas de um acre mistério onde
os retratos dividem ambas as mãos pelas sombras,
desertos, árvores, entre as naus e os náufragos de outubro,

22

só e em silêncio? apenas ramos de acácias, noites
mortas (as mãos doem?), só e em silêncio? os olhos
perdem-se nos armários e nos mapas do sono,

escrevo, pronuncio, abro a cabeça à fala, importa
um boletim meteorológico, um deus arrependido,
exangue, bíblico, a suicidar-se no bolso do casaco?

e poderia aproximar a língua, em silêncio? enlaçar-te,
estremecer e surpreender-te (as coisas que acontecem
no fio de uma vida) então, é assim o entardecer? na loja
dos horrores, entre restos de deuses, de terra e de anjos,

24

escrevo uma carta, inutilmente a escrevo, adormeço
a desenhar, inutilmente adormeço, que é feito do sonho
e da cobra do medo? conto as pedras, as folhas, os dias,
os lábios, os dedos, os rodeios, as letras do meu nome

(José Viale Moutinho)

Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias

Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias
para te dizer, com a simplicidade do bater do coração,
que afinal ao pé de ti apenas sinto as mãos mais frias
e esta ternura dos olhos que se dão.
Nem asas, nem estrelas, nem flores sem chão
- mas o desejo de ser a noite que me guias
e baixinho ao bafo da tua respiração
contar-te todas as minhas covardias.
Ao pé de ti não me apetece ser herói
mas abrir-te mais o abismo que me dói
nos cardos deste sol de morte viva.
Ser como sou e ver-te como és:
dois bichos de suor com sombra aos pés.
Complicações de luas e saliva


(José Gomes Ferreira)

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Dois Epigramas

Dois Epigramas


O sábio das coisas simples
olhou em torno e disse:
não há profundidade
sem superfície.

É preciso dizer bom dia
quando o dia anoitece
ser exacto todo o dia
envelhece.

Luís Veiga Leitão (Poeta português. 1915-1987)

Yorgos Seferis (Grécia,1929.1975),Prémio Noel da Literatura em 1963

MICENAS

Dá-me as tuas mãos, dá-me as tuas mãos,
dá-me as tuas mãos.

Vi dentro da noite
o cimo agudo do monte
vi além a planície inundada
com a luz de uma lua por aparecer
vi, ao voltar a cabeça
as pedras negras contraídas
e a minha vida tensa como corda
princípio e fim
o último momento;
as minhas mãos.

Afunda-se quem levanta as grandes pedras
estas pedras levantei-as enquanto suportei
estas pedras. O meu destino.
Ferido pelo meu solo
tiranizado pela minha túnica**
condenado pelos meus próprios deuses,
estas peras.

Sei que não sabem, porém eu
que segui tantas vezes
o caminho do assassino ao assassinado
do assassinado à paga
da paga ao outro asassínio,
a púrpura inesgotável
aquela tarde do regresso
quando as Solenes começaram a silvar
na erva escassa —
vi as serpentes em cruz com as víbiras
entretecidas sobre a linguagem má
o nosso destino.

Vozes das pedra e do somo
mais fundas aqui onde o mundo escurece,
memória da fadiga enraizada no ritmo
Que bateu na terra com os pés
Esquecidos.
Corpos afundados nos alicerces
do outro tempo. Nus. Olhos
fixos fixos, num sinal
que por mais que queiras não distingues;
a alma
que luta por tornar-se a tua alma.

Nem já sequer o silêncio é lei
aqui onde as mós pararam.

Out. de 1935
Em De Gymnopedia*

Trad. de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratisinis

Relógio d’Água,Lisboa, 1993

terça-feira, 6 de abril de 2010

Eu não sou professor



Eu não sou professor



Eu não sou professor
Para te ensinar a amar,
Também os peixes não precisam de um professor
Que os ensine a nadar
E os pássaros de um professor
Que os ensine a voar.
Nada pelos teus próprios meios.
Voa pelos teus próprios meios.
O amor não tem manuais
E os maiores amantes da história
Não sabiam ler.

Nizar Qabbani

ARTE MENOR



Desta pedra tosca
de que fui formado
tento esculpir
um melhor retrato.

Ó bruta matéria
de magma e carste
em que o cinzel
tem dificuldade!

De onde vieram
tuas tais durezas,
donde foram expulsas,
de que profundezas?

Sendo tão precário
o material,
resultará obra
dúbia, parcial.

Há mais: contribui
pra não ficar bom
ter o escultor
limitado dom.

Nessas circunstâncias
a ninguém estranha –
melhor se a pedra
voltasse à montanha.

Walter Cabral de Moura

Acto ou qualquer outra Coisa





Acto ou qualquer outra coisa. Eu sei, aquela mulher
tão tranquila
vendo da janela do quarto o porto
vendo dos barcos o fumo rente aos mastros
eu sei

essa mulher bem podia ter o nome quando
por detrás da janela observa
outras coisas que não são barcos e mastros.

Talvez os homenzinhos de azul despertem seus desejos
ou só o azul desbotado, mas não
não nessa janela nesse porto de cidade que não sei
e ela sabe

envolta no vestido, ruivo o cabelo,
envolta nas madeiras da portada.
O chão deve ranger sob os seus pés.


João Miguel Fernandes Jorge, in "Continentes e Desertos"

A menina que engomava palavras

Era uma vez uma mulher que engomava palavras.

Sim, leram bem.
Ela passava palavras a ferro. Como? Era simples.
Abria o seu dicionário Cândido Figueiredo na letra pretendida e tirava a palavra para fora, com todo o cuidado. Esta tarefa revelava uma hermeneuta disfarçada de dona de casa. Porque ela passava as palavras a ferro para as esvaziar de polissemias e outras ambiguidades, procurando isolar o signo linguístico para o definir com a máxima clareza. Achava que na vida, as palavras deviam ser muito bem passadas a ferro antes de vestidas. Tinha começado por passar a ferro as palavras verdade, amor, medo, nuvem, gato e chocolate.
A palavra verdade tinha-se tornado invisível, a palavra gato tinha-se eriçado, a palavra chocolate tinha-se derretido e a palavra amor tinha suspirado.
A palavra nuvem tinha-se evaporado e a palavra Deus, inexplicavelmente, não tinha corpo e por isso não a tinha conseguido remover da folha de papel.
Tinha-me esquecido da palavra medo: essa tremia tanto, que o ferro não a conseguiu passar e desistiu.
No momento em que esta história aconteceu, tinha a palavra alegria em cima da tábua. Procurava, pela persistência, algo que apenas se consegue pelo acaso: descobrir o sentido da palavra alegria. Não uma minúscula alegria, disfarçada de paradigma da alegria, mas a alegria inicial e imaculada. Queria estrear a palavra alegria e vesti-la pela primeira vez. O pano que forrava a tábua era um enorme silêncio azul e a palavra alegria estava a dar realmente muito trabalho a engomar. Seria da gola do g, da manga comprida do l ou do remendo do i? Os bolsos dos dois “a” também pediam paciência e atenção.
E depois, tinha de se borrifar a palavra, não com gotas de água, mas com lágrimas.
Quando a começou a passar às avessas, revelou-se a tristeza. Lembrava um vestido de festa, sempre com rugas e memórias imperfeitas das suas anteriores alegrias. As palavras podem revelar-se bem mais teimosas do que um tecido, pois têm pregas acumuladas. Estava perdida nestes pensamentos quando ouviu um insistente toque de campainha. Esqueceu-se do ferro em cima da palavra alegria, enquanto atendia o belo homem que, sem saber, se tinha enganado no andar.
A palavra acabou por se queimar e o calor que devorava as letras iluminou o seu coração. Teve uma pequena epifania no seu quotidiano banal.
Só mais tarde, quando lhe cheirou a queimado, ficou a pensar se conseguiria remendar a alegria ou se a teria perdido para sempre.
Maria João Freitas

Texto originalmente publicado na revista nós do jornal i de 1 de Agosto, a convite do seu editor Pedro Rolo Duarte.

quarta-feira, 10 de março de 2010

YuBliss :: O desconfortável conforto da vida além

YuBliss :: O desconfortável conforto da vida além

Posted using ShareThis

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Swing para manhã de sol

Swing para manhã de sol

na casa vazia
eu deus o mundo por fazer
e danço
swingo com pano
do pó aspirador
cadeira e canto
swing enche a minha casa
e roupa suja espalhada
no chão misturada
com lápis legos ferraris
ó sol tão amarelo
na janela
a roupa fumega
varal colorido manhã de 6ªfeira
swingo com ella oh baby
sing me a swing song and let me
dance
que a vizinha de baixo é surda creio
pois não se queixou nunca nem
dos gritos à noite
dos gatos

Soledade Santos

Bertold Brecht

CANÇÃO DA FUNDAÇÃO DO NATIONAL DEPOSIT BANK

Pois não é?: Fundar um banco
É bom para preto e branco.
Se o dinheiro se não herda,
Arranjai-o; senão -- merda!
Boas são para isso acções;
Melhores que facas, canhões.
Só uma coisa é fatal --
Capital inicial.
Mas, quando o dinheiro falta,
Donde vem se não se assalta?
Ai! não nos vamos zangar!:
Donde outros o vão tirar.
De algum lado ele viria
E a alguém se tiraria.

Bertold Brecht, Poemas e Canções

Hojoki

V


Después,
( fue en la era de Yowa?
Hace tanto tiempo que ya no recuerdo bien )
el hambre que duró dos años completos
trajo penas y miserias.

En primavera y verano
había sequía.
Luego en otoño,
inundaciones y tempestades.

Estos terribles acontecimientos
se sucedieron uno tras otro.

Por ultimo, se malogró la cosecha de grano.

El pueblo aró en primavera
y plantó en verano,
mas todo esfuerzo se perdió.

No hubo algazara jubilosa
de cosechar en otoño
y cobrar en invierno.

En todas las regiones,
unos abandonaron sus tierras
para cruzar las fronteras,
y otros dejaron sus casas
para vivir en los montes.

Muchas plegarias se elevaron,
los ritos especiales se cumplieron,
mas sin señal de un milagro.
Kyoto se ha apoyado siempre
en el campo.

Ahora el suministro se ha suspendido
y presto se perdió toda dignidad.

Sin ánimo de soportar más,
la gente vendió sus tesoros
con deprecio del valor.

Hubo pocos interesados en tratos
y, si los hubo,
el grano valió
más que el oro.

Pordioseros abundaban en las calles;
el clamor de sufrimiento y de tristeza
llenó el aire.

De esta manera, ese año
finalizó en vicisitudes.

Se abrigaba la esperanza
de que las cosas mejorarían
en el año siguiente.

Luego, por añadidura
se desató una epidemia
y las desdichas se agravaron
sin indicios de recuperar
la propia vida cotidiana.

Todo el mundo sufría de enfermedad y hambre.
Con el paso del tiempo
la indigencia se extremaba.
La gente angustiada parecía como peces
que saltan cuando el agua se agota.

Las personas decorosamente vestidas,
con sombreros y polainas,
iban de casa en casa
mendigando desesperados.

La gente, débil y atontada,
movida de necesidad,
vacilante, parecía que caminaba
mas de pronto se caía.

Así numerosas personas
murieron de hambre
y yacían en las calles
y al pie de los muros.

Sin recursos para remover los cuerpos,
fétidos olores llenaron el ambiente.
Fue un horrible espectáculo observar
cómo se corrompían estos cadáveres.

En la orilla del río todo fue peor.
no había espacio siquiera
para pasar un caballo o un coche.

Hambrientos también los leñadores,
escasearon las leñas.

Sin auxilios que esperar,
algunos derribaron sus casas
y llevaron las maderas al mercado.

Se decía que el valor
de las maderas
no era suficiente
para vivir un día.

Me intrigó entonces
encontrar leñas pintadas en parte
de bermejo o de pan oro.

Inquirí y descubrí
que alguien, sin otro remedio,
se había obligado a irrumpir
en los templos,
robar las imágenes de Buda
y los muebles de sus salones
para despedazarlos y venderlos.

Que tiempo tan inmundo y pecaminoso
me tocó vivir
para presenciar tantas miserias!

También vi muchos otros escenarios
que me llenaron de conmiseración.
-Las parejas que se amaban
el hombre o la mujer con más profundo amor
siempre moría primero.

Pues, por amor,
se abstuvieron para sí
y dieron las exiguas comidas
a sus seres queridos.

En familias,
los padres fueron los primeros
en perecer.

Había bebés tendidos
que todavía mamaban
sin saber
que sus madres y habían muerto.

El monje Ryugyo-hoin
del Templo Ninna
sintió profunda piedad
por la multitud moribiunda.

Cuando vio a los que agonizaban
ejerció los últimos ritos
marcando el santo signo
en sus frentes.

Para llevar la cuenta de los muertos
los contó en los meses de abril y mayo.

En las calles de Kyoto
al sur de Ichijo y al norte de Kujo,
al oeste de Kyogoku y al este de Suzaku,
los cadáveres sunaron
más de cuarenta y dos mil.
Esto sin contar
a muchísimos
muertos antes y después.

Unidos a éstos, los muertos
En la orilla del río,
Shirakawa, Nishi-no-Kyo,
otras tierras cercanas
y las provincias
a lo largo de las siete carreteras,
el número sería muy grande.

He oído comentar además
de otra igual calamidad
ocurrida en el pasado
en los días del emperador Sutoku,
en los años de Chosho.

Mas no viví
en aquel tiempo.

Sólo sé que
yo había presenciado
algo extraño y aterrador.


VI

Poco antes o después
un gran terremoto
sacudió la tierra.

Esto también fue
un suceso extraordinario.

Se derrumbaron las montañas
y se llenaron los ríos.

Se agitaron los mares
e inundaron la tierra.

La tierra se hendió
y el agua salió a borbotones.

Las grandes rocas se quebraron
y rodaron abajo
hasta los valles.

Las barcas que pasaban cerca de la costa
quedaron a merced de las olas.

Los caballos en las calles
tropezaron al andar.

En las a fueras de la capital
ni un templo ni pagoda
quedó intacto.

Unos se desplomaron
y otros cayeron.

Se levantaron el polvo y las cenizas
en vehemente humareda.

El temblor de la tierra
y el derrumbe de las casas
sonaran igual que truenos.

Los que quedaban en casa
serían aplastados.

Afuera, la tierra estaba agrietada.

Sin alas
no se podía volar.
Sólo un dragón
hubiera podido montar en las nubes.

El terremoto, en verdad,
es lo más terrorífico del mundo.

El único hijo de un guerrero,
de seis o siete años de edad,
jugaba bajo el techo de una tapia,
haciendo una casita.

La tapia se derrumbó de pronto
y el niño quedó atrapado,
enterrado y desfigurado,
con los ojos bien saltados.

Dio lástima ver a los padres
que lo abrazaron
y lloraron a grito herido.

Conmovido comprendí
Que aún soldado más valiente
no le importa la opinión ajena
cuando pierde un hijo.

Entretanto cesaron los temblores violentos,
los secundarios continuaron.

Todos los días sacudieron
veinte o treinta temblores,
cada uno de tal magnitud
que atemorizaría en tiempos normales.

Después de diez o veinte días
comenzaron a calmarse.

A veces se sucedían
cuatro o cinco temblores,
luego dos o tres,
y después cada vez menos.

Estos movimientos secundarios duraron
por tres meses.

De los cuatro elementos,
el agua, el fuego y el viento
causan siempre grandes daños,
mas la tierra no causa catástrofes
con frecuencia.

En tiempos pasados,
en los años de Saiko,
sacudió un terremoto,
que ocasionó la caída de la cabeza
del Gran Buda del Templo de Todaiji
y muchas otras cosas de horror.

Por lo que he oído, sin embargo,
aquél no fue tan grande como éste.

Durante algún tiempo,
la gente habló
de las vanidades de esto mundo,
y parecía que renunciaba un tanto
a las pasiones mundanas.

Mas pasaron días y meses,
y años,
los comentarios se disiparon,
y todo quedó en olvido.

(…)

Kamo-no-Chomei – 1212
Traducción: Matsuro Ito
Hojoki – 1° ed.- Buenos Aires: Emecé Editores, 2009


VII

Así como hemos visto,
nuestra vida es dura
en este mundo.

Nosotros y nuestras casas
también somos vanos y efímeros.

Inagotables angustias manan
del lugar de residencia
e del rango social.

El hombre humilde
Que vive al lado de um hombre de poder
no puede festejarse a rienda suelta,
aunque este alegre.

Aun cuando tenga
una tristeza insoportable
no puede llorar a gritos.

Su aire ansioso,
su conducta siempre amedrontada,
son los de um gorrión
que se acerca al nido de um halcón.

El hombre pobre
que vive al lado del rico
se avergüenza de su apariencia miserable. .

Sale y entra em su casa
dia e noche
de um modo humillado.

Advierte la envidia
de su mujer, de sus hijos y de sus sirvientes.

Se entera de que los ricos les desprecian
y su alma se inquieta.

Nunca jamás
podrá encontrar la paz.

Si uno vive entrela muchedumbre
no puede huir
cuando estalla um incêndio.

Si vive alejado de los demás,
viajar es molesto
y el peligro de asaltos acecha.

Los poderosos son avaros.
Los que están solos sin valimiento
serán siempre desdeñados.

Hombres de gran fortuna
tienen mucho que temer.

Aquellos que no la tienen
conocen sólo el resentimiento.

Si confia em el favor de otros,
será sometido por ellos.

Si cuida a otros com afecto,
será esclavo
du su própria ansiedad.

Si se conforma com ell mundo,
será atado de pies y manos.

Si no le obedece,
será considerado um loco.

De allí me preguto:
Dónde debemos vivir?
Y cómo?

Donde buscar refugio
y descansar un rato?

Y cómo podemos hallar la paz
siquiera fugaz
en el alma?


VIII


En cuanto a mi
heredé la casa
de la madre de mi padre.

Vivi allí por mucho tiempo
luego se rompió el parentesco
y la suerte me vino a menos.

Los recuerdos fueron gratos,
mas no pude permanecer em la casa
y después de treinta años de edad,
hice por mi mesmo una vivienda
de um décimo del tamaño
de la casa anterior.

Fabriqué una simple habitación,
no uma casa digna.

Logré apenas levantar los muros,
y no tuve como hacer um portón.

Sembré postes de bambu
para abrigar mi coche.

Cada vez que nevaba
o el viento se agitaba,
mi casa estaba insegura.

Como estaba cerca del río,
se temia siempre
el peligro de inundaciones.
Además merodeaban allí
los bandidos.

De esta manera,
con desasosiego y desazón
luché por treinta años
en este mundo despiedado.

En esse transcurso,
mis mejores intenciones se frustaron,
y caí em cuenta
de mi desventurada fortuna.

Por lo tanto,
en mi quincuagésima primavera
abandone la casa
y me retraje del mundo.

Em todo caso, no tênia mujer ni hijods,
ninguna família que añorar.

No teníaa rango
ni ingressos,
entonces, para que apegarme al mundo?

Falto de realidad, em vano,
me acosté em el monte Ohara,
haciendo de las nubes mi almohada,
y unas cinco primaveras
y otoños transcurrieron.

Bien entrado em mis sesenta,
cuando el rocío de vida desvanece,
hice uma choza pequeña,
una hoja de la cual
las últimas gotas podrían caer.

Fui como um errante viajero
que labraba um albergue para dormir la noche,
um viejo gusano de seda
que hilaba su último capullo.

A diferencia de la casa de mi mediana edad,
ésta no llegaba a su centésima em tamaño.

Em verdad,
soy cada vez más viejo,
y mis casas cada vez más pequeñas.

Mi casa no es común, además,
no se parece a otras.
Três por três metros de ancho
y apenas dos metros de altura.

Resuelto a no resisir
en um lugar determinado,
no me posesioné del terreno.

Armé tablas sobre el suelo
y las cubrí de um modo natural,
las junturas atadas
con pasadores metálicos.

Así puedo moverme com facilidad
si pasa algo que me incomode.

No molesta reconstruirla,
pues cabe em dos coches,
y no custa más
que los honorários de um carretero.

(...)





Kamo-no-Chamei - Hojoki VII e VIII
________________________________________


IX


Estoy oculto en lo profundo
de los montes de Hino.

En el lado este
agregué un cobertizo
de un metro de ancho,
y uso el espacio de abajo
para cortar y quemar leñas.

En el lado sur
extendí una estera de bambú,
y a su oeste
un anaquel para la ofrenda.

Al norte,
detrás de um biombo
la imagen de Amida
y a su lado Fugen.
Frente a ellos
el Libro Sagrado de Hoke-kyo.

Al lado este,
la cama de helechos
para reposar em la noche.

Em el suroeste,
colgado, un estante de bambú
con tres cestas negras forradas de cuero
que guardan extractos de libros de poesia y musica
y obras como Ojo-yoshu.

Junto al estante,
contra la pared,
um koto y uma biwa,
conocidos como el koto “plegable”
y la biwa “ensemblada”.

Así es mi humilde morada
en este mundo.

Afuera, en el sur,
cañerís de bambú
y un estanque de piedra
para almacenar agua.

Un bosque cercano
abastece de ramas y leña
en abundancia.

Los montes se denominan Toyama,
y las plantas trepadoras
hacen sombra en los senderos.

El valle está espeso de árboles,
mas el cielo de occidente despejado
semeja un faro de luz para la meditación.

En primavera,
las glicinas rizando en olas,
florecen en el oeste,
como la sagrada nube purpúrea,
compañera de Amida.

En verano, los búhos.
Cada vez que charlan, les suplico
que me prometan ser guías
en los caminos montañosos
de la muerte.

En otoño,
las voces de las cigarras vespertinas
llenan el oído.

Parecen llorar
la cáscara de este mundo.

Y en invierno
Nieve!
Se acumula como pecados humanos
y se derrite,
en expiación.

Cuando no estoy de humor para orar
Ni leer el Libro Sagrado
prefiero descansar.

Puedo ser holgazán si así deseo
nadie me lo impide aquí,
ni hay nadie a cuyos ojos
me sentiría avergonzado.

No he hecho votos de silencio,
por fuerza los cumplo,
ya que estoy solo.

No me inquieto
por obedecer los mandamientos
Pocas oportunidades hay
de romperlos aquí!

Por la mañana,
cuando mi espíritu está pleno de
“la estela de cresta blanca
que se deja a la popa”
contemplo los barcos
que navegan por Okanoya
y escribo al modo de Manshami.

Al atardecer,
cuando el viento mueve
los árboles katsura
y hace sonar sus hojas,
pienso en el río Jin-yo
y pulso la biwa, imitando a Gentotoku.

Cuando tengo ánimo,
repito varias veces,
el “Canto de las Brisas de Otoño”
al compás del viento en los pinos
o el “Agua Florida”
al ritmo del riachuelo.

Aunque soy poco hábil,
no toco para complacer
el oído de otros.

Toco la biwa sólo para mí
y canto
para alimentar mis emociones.

Al borde de la montaña
hay una modesta choza
hecha de malezas
donde habita el guardabosque.

Allí vive también un niño
que de vez en cuando me visita.

En ratos de ocio
paseo con este compañero.
Él tiene diez años de edad
y yo sesenta.

Aunque la diferencia es grande,
nos deleitamos igual.
Juntamos brotes
y recolectamos hierbas y bulbos.
Vamos también al arrozal
al pie del monte,
recogemos espigas caídas
y tejemos diferentes figuras.

Si es un día luminoso,
subimos a la cumbre del monte
y contemplamos el cielo
por encima de la capital.

Podemos divisar los montes de Kowata,
Fushimi, Toba y Hatsukashi.

Un paraje de belleza
no tiene dueño,
por ello no hay nada
que nos impida gozarlo.

Cuando estamos en forma,
con deseo de ir más lejos,
caminamos por los montes
a través de Sumiyama,
pasando Kasatori,
visitamos Iwama,
y peregrinamos a Ishiyama.

Nos abrimos paso
por los campos de Awazu,,
visitamos la casa antigua
del poeta Semimaru,
o cruzamos el río Tagami
para ir a la tumba de Sarumaro.

En el camino de regreso,
según la estación del año,
juntamos flores de cerezo,
hojas de arce, helechos
y recogemos nueces
como ofrenda,
o los llevamos a casa.

En las noches serenas,
mirando la luna
por la ventana
evoco a los viejos amigos.

Escucho
los plañidos lejanos de los monos
y las lagrimas humedecen mis mangas.

Las luciérnagas entre las hierbas
semejan fogatas
de los remotos pescadores de Makinoshima.

La lluvia matutina
se siente como una tormenta
que golpea las hojas.

Cuando oigo
melodiosos cantos de faisanes,
los confundo con las voces
de mi padre y de mi madre.

Cuando los ciervos bajan de las cumbres
y mansos se acercan a mí,
pienso cuán lejos estoy
del mundo.

Al despertar en las noches de invierno,
atizo los rescoldos de las cenizas
y los convierto en mis amigos.

Las montañas no me atemorizan,
no son tan profundas,
y disfruto de los ululatos de las lechuzas.

En cada estación que pasa
la gracia de la montaña ofrece
su encanto infinito.

Un hombre más instruido y reflexivo
disfrutará de una mayor fascinación.


X


Cuando me mudé aquí,
no tenía intención de quedarme tanto tiempo
y ya han transcurrido cinco años.

Este albergue de paso
se ha convertido en mi hogar.

Las hojas secas se amontonan el tejado,
el moho se cría en el suelo.

El rumor ocasional que llega de la capital,
mientras yo estoy escondido aquí en los montes,
me dice que muchos señores ilustres han fallecido;
también otros de menor rango
cuyo número nunca llegaremos a saber.

Cuántas casas, además, se habrán quemado
por los frecuentes incendios?

Mas mi pequeña choza
es tranquila y plácida
y no causa desasosiego.

Aunque es angosta,
Tiene espacio para dormir de noche
y sentarme de día.

No falta nada
para alojar un hombre.

El cangrejo ermitaño prefiere una concha pequeña
a sabiendas de sus necesidades.

Las águilas pescadoras viven en la costa rocosa
por temor al mundo de los hombres.

Soy igual que ellos.
Conozco mis necesidades
y conozco el mundo.

No codicio nada,
ni tengo ansias de ganar nada.

Sólo deseo la quietud
y mi felicidad es
estar libre de preocupaciones.

La gente de este mundo
no construye casas
para sus propias necesidades.

Las construye
para sus esposas, hijos y deudos,
o las construye para sus vasallos
y amigos.

Algunos construyen casas
para sus señores y maestros,
para sus tesoros,
y hasta para sus bueyes y caballos.

He construido la casa
sólo para mí,
no para otras personas.

Pueden preguntarme por qué.

El mundo de hoy tiene sus maneras
y yo las mías.

No tengo con quien compartir la vida
ni sirviente en quien confiar.
Si tuviera una casa más grande,
a quién recibiría
a quién tendría yo que viviera aquí?

La gente busca
en sus amigos
cierta opulencia y afabilidad.

No siempre ama
la honestidad y la sinceridad.

Entonces, más vale encontrar amigos
en la música, las flores o la luna.

Los sirvientes valoran premios ostensibles
y recompensas dadivosas.
No aspiran atenciones, consideración,
tranquilidad ni paz.

Entonces, mejor ser uno su proprio sirviente
De qué manera?

Cuando hay algo que debo hacer,
empleo mi cuerpo.
Esto cansa, pero es más sencillo
que valerse de otra persona
y quedar en deuda.

Cuando necesito caminar,
uso mis pies.

Es también duro, pero menos duro
que preocuparse por tener el caballo y la silla,
el coche y el buey.
Divido ahora mi cuerpo
y le doy un doble fin.
Las manos son mis sirvientes
y las pernas mi coche.

Estoy satisfecho con uno, y con el otro.

Mi corazón conoce
el limite de mi fuerza,
y me hace descansar si estoy fatigado.
Trabajo de nuevo cuando me siento bien.
Utilizo mi cuerpo,
mas nunca en exceso.
Por lo tanto,
aún cuando cansado,
no me angustio.
Caminar siempre,
trabajar siempre
mantiene sano el cuerpo.

Por qué descansar sin necesidad?

Usar a otros es una ofensa.
Por qué deseo usar a otra persona?

Lo mismo da
con la comida y la ropa.

Mi ropa es de arrurruz
y me cama es de cáñamo.
Me las arreglo con lo que encuentro
para vestirme.

Las aulagas del campo
y las bayas de los montes
es todo lo que necesito
para subsistir.

Como no me relaciono con la gente,
no ve avergüenzo ni me arrepiento
de mi apariencia.

Mi comida es siempre frugal,
cualquier bocado me sabe exquisito.

No hablo de estas delicias
para reprochar a los ricos.

Sólo comparo mi vida pasada
con la presente.

Desde que me aparté del mundo,
no siento rencor ni temores.

Me he abandonado a la suerte.
No cuido mi vida ni temo la muerte.

Mi vida es una nube errante.
No deseo la fortuna
ni me quejo de la mala ventura.

El mayor gozo de la vida está
en la almohada de dormitar,
y el anhelo de vivir permanece
en los hermosos paisajes que he visto.


XI


La realidad de esto mundo
viene de la mente.

Se la mente no se halla en paz,
para qué sirven las riquezas?
El palacio más grande
nunca será placentero.

Amo mi morada solitaria,
esta choza
de una sola habitación.

A veces, cuando voy a la capital,
me entero de que parezco
un monje pordiosero.

Pero cuando regreso a mi morada,
compadezco a los que persiguen
el polvo mundano.
Si duda de mis palabras,
observe los peces y los pájaros.

Los peces no se hartan del agua,
mas nadie puede imaginar
la felicidad del pez,
si no conoce su alma.

Los pájaros necesitan del bosque.
Si uno no es pájaro,
Como saber la verdad
de su pensamiento?
Cómo podríamos sentir
el placer de una vida tranquila
sin vivirla?


XII


La luna de mi vida se está poniendo,
Está por hundirse ya
detrás de los montes.

En cualquier momento
puedo descender a la oscuridad
del río abajo.

Con qué objeto me desato
en esta discusión?

Budo enseño:
no debemos apegarmos a nada.

Entonces mi amor a esta choza
es un apego.

Complacerme
en la quietud y la serenidad
debe ser también un apego.

Por qué, entonces, distraer el tiempo,
hablando de placeres inútiles?

El amanecer es apacible.
He meditado mucho
sobre la sagrada enseñanza
y me he preguntado.

No has dejado el mundo
para vivir en el bosque,
calmar tu mente
y andar el camino de Buda?

Sin embargo,
aparentas ser un monje,
y tu corazón está manchado de pecados.

Tu vivienda está hecha
a imagen de la choza de Vimalakirti.
Mas tu conducta no se iguala
ni con la del joven Sudhipanthaka.

Es que tu indigna vida,
tal vez como consecuencia
de los actos pasados
te atormenta ahora?

O tus malos pensamientos,
extremados,
te han vuelto loco?

A estos preguntas
no ha contestado
mi corazón.
Por lo tanto
hago uso de mi pobre lengua
para decir un par de oraciones
a Amida y luego
silencio.


Kamo-no-Chomei – 1212
Traducción: Matsuro Ito
Hojoki – 1° ed.- Buenos Aires: Emecé Editores, 2009

A ROSEIRA DO SILÊNCIO

A ROSEIRA DO SILÊNCIO – Durval de Morais


A Santa Tereza de Jesus


Falsas rosas heráldicas da raça,
Rosas do orgulho; rosas assassinas
Do tédio, que meus lábios amordaça
Com os travores de todas as morfinas.

Rosas da tentação, rosas da graça,
Rubras aquelas; estas cristalinas;
Azuis rosas do Amor, de onde esvoaça
O aroma ideal das perfeições divinas;

E vós, rosas fanadas da Saudade:
Todas colhi, na dor e na tristeza
Do turbilhão. Meu desespero vence-o...

E a rosa celestial da Santidade
Dá que eu possa colher, Santa Tereza,
Na Mística roseira do Silêncio.


Maragogipe-Ba, 1882 – Rio de Janeiro, 1948.

Sossego

Sossego


Sentado sozinho
com um copo na mão
contemplo
os montes distantes
Nem que chegasse
a amada
sentiria
prazer maior
Mesmo que não falem nem riam
gosto mais
das montanhas

Yun Sondo –Coreia, 1587-1671

a rosa no teu gesto



a rosa no teu gesto

todas as mulheres se parecem contigo
no olhar e no gesto; todos os passos na areia
me lembram o teu verão, no limite do mar.
tudo o que me importa no amor
vem de ti, e a ti regressa nas incógnitas noites,
quando o frio aconchega a memória
aos secretos jardins interiores.
tudo vai dar a ti sob o meu céu, e além,
onde o mar recebe o rio, anseiam os meus olhos
pela rosa no teu gesto; quero deitar-me no teu olhar,
até não saber distinguir a vida e a morte,
pois aos que amam nada faz diferença.


gonçalo b. de sousa
Lisboa, 14 de Fevereiro de 2010

VOZES DE CRIANÇAS

VOZES DE CRIANÇAS



O amanhã nos meus olhos é de um cinzento triste,
é uma teia de luz cansada
onde recordo quando iam dormir.
Ainda lhes leio naquele quarto,
debaixo da lâmpada ao lado da cama,
os contos com capas duras de cores brilhantes.
De súbito, em alguma madrugada,
ouço uma criança que me chama e incorporo-me,
mas não há ninguém, só um velho
que ouviu o rumor da memória,
um leve fragor de ar na escuridão
como se uma bala atravessasse a casa.
Ao apagar a luz guardava um tesouro.

Joan Margarit, Casa de Misericórdia, ed. ovni, Lisboa,2009

a dispersa palavra


"mas os desertos (...)/ ensinam-te finalmente o que não entendes"
[17:38 | ]
.
"Amazigh"

Caminhas quase sem te moveres
os campos estendem um corpo
colado ao teu
em íntima escuridão
Quando avanças ponte fora
um dos teus ombros brilha como marfim

Nós não os ouvimos
mas os desertos, os oceanos, os cimos remotos
ensinam-te finalmente o que não entendes

Descobres uma casa
noutras direcções
a igual distância
da vida que deixamos para trás

José Tolentino Mendonça in "O Viajante Sem Sono", Assírio & Alvim,
Lisboa, 2009, pp 35 - 36.
.


"Deus me livre/ de me sentar na primeira fila"
[15:20 | ]
.
fait-on la chasse aux colombes?

je m'assieds au second rang
ma vue de là porte plus loin
mes oreilles entendent mieux
et ma voix résonne plus fort
l'amertume ne me ronge pas
je ne me pousse pas du coude
je prends mieux mes aises qu'au premier rang

comment tirer sur les colombes?

de ma chaise tournante
je mesure à merveille les crânes chauves
et les ventres obèses
subtil est le mensonge
qui dit que moi Ali Podrimja
je suis un citoyen de second rang
de la planète ka ka

vrai chasse-t-on les colombes?

Dieu me garde
de siéger au premier rang
flanqué de pierres tombales
et de tirer sur les colombes

Ali Podrimja in "Défaut de verbe" (édition bilingue), Cheyne Éditeur,
Le Chambron-sur-Lignon, 2000, p 95 (Tradução do albanés para o
francês de Alexandre Zotos.)

Manuel Silva

"à sombra das laranjeiras/ em flor"
[15:24 | ]
.
"Alhambra"

Deitado
à sombra das laranjeiras
em flor
posso esperar
que caia a última
pétala branca sobre os olhos
e os feche para sempre

Manuel Silva-Terra in " o que sobra", Editora Casa do Sul,
s/c., 2008, p 27.
.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

uma flor tão rara


Tinha cerca de nove ou dez anos quando um surto de meningite arrastou algumas crianças para o Jardim de Dona Morte, e dois amigos meus foram, Antônio Lisboa de Medeiros, ainda meu primo, e a bela Ezemita Fernandes, de louros cabelos e bochechas rosadas. Lembrava apenas vagamente que ela tinha morrido, mas talvez como defesa não a ligava à figura da Musa daquela época, paquerada na igreja e na escola, tão desejada, tão educada e com quem trocava algumas palavras e me sentia muito bem Há algum tempo porém fui ao cemitério de minha cidade e, após visitar jazigos familiares, dei de vagar entre os túmulos tão cheios de flores e fotos. Grande foi minha emoção ao chegar no túmulo da família de Dona Carmita, minha professora da oitava série ainda hoje tão saudável, e encontrar ali a foto daquela menininha loura de bochechinhas rosadas que tanto amei na infância, e lembrei então que na época padecera grande dor. .



UMA FLOR TÃO RARA

À memória de Ezemita Fernandes

Certa vez que estava num jardim
encontrei uma flor inesperada
que causou grande alvoroço em mim.
Uma flor tão bonita... – Minha amada!

Por maldade de algum deus ruim
do jardim da infância foi roubada
e para sempre há de ficar assim,
uma rosa inda em botão eternizada.

Comentários ouvi da triste sorte
de um lar que perdeu a flor mais bela.
Não lembrava, porém, que fosse... Ela!

– Ó rara flor do jardim de Dona Morte
cedo arrastada para a eternidade:
me fiz poeta pra cantar essa saudade!

Antônio Adriano de Medeiros
2006

Londres, Nuno Dempster


Londres, Nuno Dempster

Em Londres, o novíssimo poema longo de Nuno Dempster, desfila a humanidade imperfeita e a aventura de viver nessa imperfeição; libertam-se vozes, intelectualiza-se a emoção, redimem-se ruínas e mostra-se que «num pint de cerveja» e num poema «pode conter-se o universo».
Poema sobre a errância humana, Londres é o «cruzamento / dos mais insuspeitados caminhos / e as estradas que sustentam / o planeta na sua teia passam todas por aqui», o ponto de encontro da humanidade chegada de avião ou «nave» – a «Barca do Inferno de Gil Vicente» –, gente que não conhece Deus e só conta consigo mesma na aventura turbulenta de existir. São os «incansáveis cavaleiros na Terra», com o carrego da sua tragédia, que desembarcam no clarão desta escrita, porque a verdade não pode ser dita doutra maneira. São eles que aqui se invocam, é a vida deles, e o seu espírito, que aqui se comunga; uma «tarefa de barco» feita compromisso de escrita de Nuno Dempster: «e chamo: / – Ei, aonde ides? Esperai, esperai, bebei. // Nunca desejei tanto como hoje ser um de vós. / Por mais trágico que se torne o destino, / não me importava de sê-lo continuamente convosco, // eternidade sem Deus, // a eternidade calorosamente humana que guardais». (p. 15)
Ancorado na noção de que existir é ser personagem, na ideia de palco onde a humanidade desfila sob orientação dum «dramaturgo lúcido e honesto», este poema aproxima-se da poesia dramática, a qual tem em Shakespeare insigne representante; se, em Como Vos Aprouver, o autor inglês se detém na ideia da representação e da artificialidade da vida, retratando com pessimismo as sete idades do homem – «O mundo é um palco / E todos os homens e mulheres simples actores: / Têm as suas saídas e entradas, / E, em vida, um só homem tem vários papéis»(1) –, Nuno Dempster distende aquele princípio, conferindo singular unificação a um texto que denuncia o arruinamento humano: nesse mundo concentrado que é Londres, «é possível olhar os actores / que desfilam rumo às suas vidas conturbadas», mas cada um de nós só pode representar uma vez, condenados a assistirmos à nossa própria condição.
Olhar os outros – «o olhar procura impaciente o sinal de outra humanidade. / A sede de mundo é inextinguível» – ir com eles e ir neles suscita outro princípio da poesia dramática: a despersonalização do sujeito poético que apresenta estados de alma pensados e não sentidos, porque os compreende; o que sente com a imaginação a alma das outras personagens, fazendo delas vozes íntimas (e aqui ecoa a poesia de Konstantinos Kavafis, ainda que com sentidos diversos): «em que pensará a hospedeira de bordo? / A dor amaciou-lhe o rosto e tornou-o belo»; «Aonde ides, aonde ides, / ó raparigas celtas, ó filhas de viquingues?»; «de que murmúrios nasce a penumbra da vossa intimidade?»; «Irei em vós?»; «Não sei para onde me levam. / Para a vida, decerto para o sonho que guardam / e os sustenta e lhes dá vigor, / em enormes copos de cerveja. / Chamam-lhes pints. / Um pint é mais de meio litro de afrodisíaco.».
Com espinhosa lucidez – porquanto «A descoberta da humanidade / é um acto cansativo e doloroso, // e a lucidez não serve de nada, / excepto para morrermos / todos os dias pelos outros» –, a penosa lucidez dos olhos abertos – «Vêem como eu vejo / o fluir da multidão diversa? // Vêem quantos rostos a formam, / tão vária que em todos sigo?» –, Nuno Dempster cata na bruma todas as linhas para as esculpir na escrita, o que é, aliás, marca do autor, ao mesmo tempo que mostra que vermo-nos nos outros é também fundamento de solidão; e se a solidão medita, a meditação encontra a consciência das limitações, das impossibilidades, adensando-se o sentido trágico da vida: «Assalta-me não ser o que vejo, / não me diluir no que olho.». A escrita surgirá, assim, contra todas as impossibilidades: «nos olhos vai a claridade dos poemas, / a essência do absoluto impossível». Neste programa do olhar irrompe, fortíssima, a atitude indagadora e questionadora das convenções, a crítica sobre a realidade, a delação social e económica, feitas matéria de reflexão:
(…) Afinal, em Lisboa, os sem-abrigo cobrem-se com o Público,
lembraria uma turista portuguesa,
lavando as mãos diante de vagabundos intoxicados
de álcool e de fome,
provavelmente de solidão,
e sem dúvida de maldade.
Não estou a vê-los em Portugal
agasalharem-se do frio com o Diário da República.
Ainda que o imaginassem, não o fariam com medo
de a polícia os expulsar da casa que não têm
e de os fiscais lhes cobrarem o imposto de habitação,
e assim o meu país europeu mantém-se
na cauda dos índices de conforto.
Eis as notícias que me chegam a Londres
da capacidade de revolta nessa parte ocidental da Península Ibérica. (…) p. 17
Em Londres, tal como na restante obra de Nuno Dempster, estabelece-se uma relação complexa entre sentir e pensar: a referida lucidez do olhar no aprisionamento da realidade não significa ausência de emoção, mas sim de emoções intelectualizadas, pelo que irrompem no texto através da recordação, através da memória. É, ainda, pela memória que se faz a confluência dos tempos – passado, presente e perspectivação futura – e se encastoam a ironia e a descrença: «Virá o tempo em que filhos combaterão os pais, / virá o tempo em que as crianças e os pássaros serão esmagados, // mas virá o dia em que a subversão do humano não mais é possível, / e das cinzas, como Hórus, / um brado se levante e proclame “Basta. Chegámos ao limite” / e alguma luz nova, ou paz inteligente, ou vontade extrema / nos obrigue a reaprender a simplicidade de Tebas.». (p. 35)
Com Londres, texto de uma notável robustez poética, Nuno Dempster confirma a sua importância nas modernas letras portuguesas. «Não é possível ser-se pessimista, / Tudo aqui é permitido imaginar, // menos horários e aeroportos», lê-se no poema marcado pelo pessimismo que se redime, fulgurantemente, na escrita, explicado, também assim, pelo próprio texto: «Tudo é possível no que escrevo, / mesmo Homero e Shakespeare confabularem / cheios de entusiasmo pela humanidade». (p. 39).
(1) William Shakespeare, Como Vos Aprouver, Campo das Letras, 2008
por Teresa Sá Couto
http://orgialiteraria.com/?p=1577

7 HAICOS SACANAS - OS FELINOS



7 HAICOS SACANAS - OS FELINOS

1

Gatinha selvagem
sempre termina a noite
com rola na boca.

2

Leoa experiente
não se arrisca com a zebra:
só come cavalo.

3


Bichano dengoso
mal vê uma mangueira
e já faz miau.

4

As veras panteras
sem preconceito de cor
preferem as verdes.

5

Oncinha brava
precisa de ser domada
com uma chibata.

6

Mal acostumada,
a gata só se acalma
quando vê o leite.

7

Gatinha sinistra:
se pega um pinto, só solta
quando a baba escorre.


Antônio Adriano de Medeiros

VOZES DE CRIANÇAS


VOZES DE CRIANÇAS

O amanhã nos meus olhos é de um cinzento triste,
é uma teia de luz cansada
onde recordo quando iam dormir.
Ainda lhes leio naquele quarto,
debaixo da lâmpada ao lado da cama,
os contos com capas duras de cores brilhantes.
De súbito, em alguma madrugada,
ouço uma criança que me chama e incorporo-me,
mas não há ninguém, só um velho
que ouviu o rumor da memória,
um leve fragor de ar na escuridão
como se uma bala atravessasse a casa.
Ao apagar a luz guardava um tesouro.

Joan Margarit, Casa de Misericórdia, ed. ovni, Lisboa,2009

página do poeta: http://www.joanmargarit.com/

AINDA SEVILHA AO TELEFONE


AINDA SEVILHA AO TELEFONE – João Cabral de Melo Neto


Quando pelo telefone
quero falar com Sevilha
e Sevilha, por acaso,
está no instante dormida,

deixo aberto o telefone
à concha de voz vazia:
ouço então no telefone
como relógio com vida,

toda uma vida passar
como o ácido vivo de ginja.
Ninguém fala ao telefone,
mas há pulsação longínqua;

onde há um pregão de tudo,
onde há pragas de vizinhas,
e se ouve o arfar da cidade
que sabe dormir feminina.

s.joão da cruz

Fui dar uma busca na Net e acabei encontrando esse interessante poema traduzido de São João da Cruz, com interessante comentário feito pelo tradutor em www.veritatis.com.br/article/789.

Vou dar meu pitaco (palpite, opinião). Há poucos meses descobri algo interessantíssimo sobre o Cântico dos Cânticos, ou os Cantares de Salomão: primeiro, que talvez sejam em verdade de origem suméria: que na verdade são mais antigos que a tardição judaica querem fazer parecer, e não foram escritos por um único homem. Mais o que mais me chamou a atenção foi o seguinte: quando lia poemas do Cântico dos Cânticos, me impressionava com o erotismo gritante de alguns versos. Pensei então que se canonizara os cânticos para se mostrar às pessoas que sexo não era pecado, e tal, pelo contrário, era algo que alegrava ao Pai. Mas o que li a respeito deles em livros cablísticos é bem maior do que isso: que na verdade os Cânticos são chamados "Cântico dos Cânticos" (ou seja, a quintess~encia do Cãntico) porque celebram a união da Alma Humana com Deus. Portanto, uma explicação materialista daquilo é muito menor do que o sentido original deles, que celebravam em realidade o Casamento Cósmico, a união com o Criador, e, indo além, imitava o Casamnento do Céu com a Terra celebrado nos Mistérios de Elêusis... Quer dizer, há ali muito mais coisa que qualquer religião de nossa época possa contemplar. Notar que o Poeta efemina-se no poema. Isso é característico no Cântico dos Cânticos, e a compreensão que a Cabala dá para contemplar homens e mulheres universalmente nos Cãnticos é essa coisa do namoro da Alma humana com Deus, uma coisa tâo íntima que, dizem lá, não deve ser discutida em público, porque quando se fala em Deus em público é como se estuvesse fazendo amor na vista de todos... E sabe como são os humanos, cada um quer dar sua opinião, cada um acha que pode fazer melhor...



A NOITE ESCURA DE SÃO JOÃO DA CRUZ: ALGUNS COMENTÁRIOS

Por Alexandre Semedo
Em uma noite escura
De amor em vivas ânsias inflamada
Oh! Ditosa ventura!
Saí sem ser notada,
Estando já minha casa sossegada.

Na escuridão, segura,
Pela secreta escada, disfarçada,
Oh! Ditosa ventura!
Na escuridão, velada,
?stando já minha casa sossegada.

Em noite tão ditosa,
E num segredo em que ninguém me via,
Nem eu olhava coisa alguma,
Sem outra luz nem guia
Além da que no coração me ardia.

Essa luz me guiava,
Com mais clareza que a do meio-dia
Aonde me esperava
Quem eu bem conhecia,
Em lugar onde ninguém aparecia.

Oh! noite, que me guiaste,
Oh! noite, amável mais do que a alvorada
Oh! noite, que juntaste
Amado com amada,
Amada no amado transformada!

Em meu peito florido
Que, inteiro, para ele só guardava,
Quedou-se adormecido,
E eu, terna o regalava,
E dos cedros o leque o refrescava.

Da ameia a brisa amena,
Quando eu os seus cabelos afagava,
Com sua mão serena
Em meu colo soprava,
E meus sentidos todos transportava.

Esquecida, quedei-me,
O rosto reclinado sobre o Amado;
Tudo cessou. Deixei-me,
Largando meu cuidado
Por entre as açucenas olvidado.


De todos os poemas de São João da Cruz, este me é o mais caro. Cada vez que o leio, descubro novas coisas; cada vez que o leio, sinto uma santa inveja de amor tão ardente por Cristo Jesus.
Não pretendo, nestas considerações, esgotar todas as leituras possíveis. Nem isto seria possível.
Aos carmelitas, peço, desde já, mil desculpas se minha interpretação não for sequer infimamente digna. Ajudem-nos com seus comentários.
Na tradição cristã, Cristo é apresentado como o Amado, viril e forte, que corteja a sua amada (a Igreja fundada sobre Pedro, por quem Ele se entregou; e, por extensão, cada fiel por Ele conquistado), dando a Sua vida por ela. A Cruz é vista como o leito nupcial, onde estes amantes se encontram, e no qual o Amado gera, na Amada, uma vida nova. Neste sentido vemos, no final do poema, que o primeiro a adormecer (a morrer na Cruz) é o Amado (quedou-se adormecido), para, somente depois, adormecer também a amada (com o significativo gesto de inclinar a cabeça de Jo 19, 30), sobre o peito do amado.
Assim, o misticismo católico (do qual, talvez, São João da Cruz seja o mais alto exponente) sempre aponta a Cruz como sendo o caminho mais curto e delicioso para o Homem encontrar o criador. O cristão que não carrega sua cruz, que não a aceita, não se encontra com Cristo, não entra numa relação de amor com Ele, e não tem gerada, dentro de si, a nova vida que nos conduz ao céu.
Neste poema, a Cruz é substituída pela expressão "noite escura". Todos nós já tivemos "noitas escuras" em nossas vidas. São aqueles momentos de agudo sofrimento, nos quais nossas seguranças mesquinhas (dinheiro, prazeres, comodidade, afetividade, etc.) nada nos dizem; nos quais nossas forças e nossa inteligência nada podem. Noites tenebrosas, de lágrimas e de desespero. Noites em que clamamos e nas quais o Senhor se mantém em silêncio.
Para o mundo, para os não-cristãos, estas "noites escuras" são a mais solene prova de que Deus não existe. Ou, se existe, de que não os ama. Por isto, todos fogem dela. Preferem dormir a enfrentá-la (?stando já minha casa sossegada), pois, dormindo, têm a ilusão de que a mesma passará mais rapidamente.
O Cristão, no entanto, pode enfrentá-la. Se todas as luzes do mundo se apagaram, se todas as nossas seguranças e todas as nossas forças nada podem, é o momento propício para que nos abandonemos em Deus. O cristão, ainda que com medo, vai ao encontro desta noite (saí sem ser notada; na escuridão segura; na escuridão velada), pois sabe que é através desta noite escura que brilhará a luz de Deus. Sobe, ainda que dolorosamente, nas cruzes que surgem em suas vidas. A escada secreta de que nos fala o poema é símbolo da Cruz. É a escada de Jacó, que liga o céu e a terra, e pela qual todos devemos subir se quisermos entrar no paraíso.
Mas a luz de Deus, para aqueles que se aventuram em enfrentar a "noite escura", brilha mais do que a luz do mundo (nem eu olhava coisa alguma,/Sem outra luz nem guia/Além da que no coração me ardia./ Essa luz me guiava, Com mais clareza que a do meio-dia). A "noite escura" é o momento ideal para que o cristão perceba que a luz do mundo são trevas; e que, as trevas em Deus, são luzes potentes que nos conduzem a Ele (Essa luz me guiava, /Com mais clareza que a do meio-dia/ Aonde me esperava/ Quem eu bem conhecia, Em lugar onde ninguém aparecia.) E ninguém aparece neste lugar porque todos fogem da Cruz. A Cruz é o único lugar onde somente Cristo nos espera, pois todos os outros deuses, todos os outros ídolos do mundo nela não têm espaço.
Subindo na Cruz, entrando pela noite escura, o cristão é conduzido a Cristo. Encontra-se com seu Amado; encontra-se com a razão de sua vida e, finalmente, percebe que a Cruz, que a noite escura, que o sofrimento pelo qual passou foi um grandíssimo dom de Deus. Por esta cruz, morreu o homem velho; atravessada a noite escura, rompeu o cristão com os laços que o prendiam ao pecado e àqueles que renegam a Cristo.
Que maravilha é ouvir um testemunho neste sentido! Quantas vezes já não ouvi cristãos que, após esta vivência, afirmam que não trocariam os sofrimentos passados pela comodidade do mundo. Que não pediriam para Deus uma história diferente. Cristãos que podem afirmar, com toda a convicção :
Oh! noite, que me guiaste,
Oh! noite, amável mais do que a alvorada
Oh! noite, que juntaste
Amado com amada,
Amada no amado transformada!
Afinal, tornou-se um com Cristo. Entrou na comunhão da Trindade Santíssima. Pode desprezar, finalmente, os prazeres do mundo e almejar as coisas do alto. Como disse São Paulo, não se encontra mais dividido (Esquecida, quedei-me, O rosto reclinado sobre o Amado; Deixei-me, Largando meu cuidado Por entre as açucenas olvidado.)
Afinal "tudo cessou." Só lhe importa o precioso tesouro do Amor de infinito de Cristo.
Que o Senhor nos ajude, e nos conceda inúmeras "noites escuras" durante a nossa peregrinação terrestre.

__._,_.___

o Homem de Mel


E aqui vai um poema milenar, da Mesopotâmia, justamente, que lembra o Cântico dos Cânticos. As imagens são lindas!

O HOMEM DE MEL

Ele brotou, deitou botões, é alface à beira d'água plantada,
meu quintal bem fornecido da planura..., meu favorito do seio,
meu grão luxuriante no seu sulco – ele é alface à beira d'água plantada.

O homem-de-mel, o homem-de-mel adoça-me sem cessar,
meu senhor, o homem-de-mel dos deuses, meu favorito de sua mãe,
cuja mão é mel, cujo pé é mel, adoça-me sem cessar,
cujos membros são doce mel, adoça-me sem cessar.

Meu adoçador do umbigo..., meu favorito da sua mãe,
meu..., de coxas mui esbeltas, ele é alface à beira d'água plantada.

Poema da Mesopotâmia, em Cantigas de Amor do Oriente Antigo, tradução de José Nunes Carreira, Ed. Cosmos, Lisboa, 1999

"TODA CIÊNCIA TRANSCENDENDO"



"TODA CIÊNCIA TRANSCENDENDO"
Entrei-me adonde não soube
e quedei-me não sabendo,
toda ciência transcendendo.
Eu não sabia onde entrava,
porém, quando ali me vi,
sem saber adonde entrava,
grandes coisas entendi:
não direi o que senti,
que mo quedei não sabendo,
toda ciência transcendendo.
De paz e de piedade
era a ciência perfeita,
em profunda soledade,
entendida a via recta:
era coisa tão secreta,
a fala subvertendo,
toda ciência transcendendo.
Estava tão embebido,
tão absorto e tão alheado,
que se quedou meu sentido
de todo o sentir privado:
e o espírito dotado
de entender não entendendo,
toda ciência transcendendo.
Que ali chega verdadeiro
de si mesmo desfalece:
quanto sabia primeiro
muito baixo lhe parece:
sua ciência tanto crece
que se queda não sabendo
toda ciência transcendendo.
Quanto mais alto se ascende,
tanto menos entendia
que negra nuvem se acende
que as trevas esclarecia:
por isso quem a sabia
queda sempre não sabendo
toda ciência transcendendo.
Este saber não sabendo
é de tão alto poder,
que os mais sábios revolvendo
jamais o podem vencer:
pois não chega o seu saber
a no' entender entendendo,
toda ciência transcendendo.
E é de tão alta excelência
este mais sumo saber
que faculdade ou ciência
não há para o compreender:
quem a si souber vencer
com um não saber sabendo,
irá sempre transcendendo.
E, se quiserdes ouvir,
consiste a suma ciência
em num subido sentir
da só divinal Essência:
obra é de sua clemência
o quedar não entendendo,
toda ciência transcendendo.

chove


Chove...

Mas isso que importa!,
se estou aqui abrigado nesta porta
a ouvir na chuva que cai do céu
uma melodia de silêncio
que ninguém ouve
senão eu?

Chove...

Mas é do destino
de quem ama
ouvir um violino
até na lama.


Poema: José Gomes Ferreira

A Flor do Maracujá


Pelas rosas, pelos lírios,
Pelas abelhas, sinhá,
Pelas notas mais chorosas
Do canto do sabiá,
Pelo cálice de angústias
Da flor do maracujá!
Pelo jasmim, pelo goivo,
Pelo agreste manacá,
Pelas gotas do sereno
Nas folhas de gravatá,
Pela coroa de espinhos
Da flor do maracujá!
Pelas tranças da mãe-d'água
Que junto da fonte está,
Pelos colibris que brincam
Nas alvas plumas do ubá,
Pelos cravos desenhados
Na flor do maracujá!
Pelas azuis borboletas
Que descem do Panamá,
Pelos tesouros ocultos
Nas minas do Sincorá,
Pelas chagas roxeadas
Da flor do maracujá!
Pelo mar, pelo deserto,
Pelas montanhas, sinhá!
Pelas florestas imensas
Que falam de Jeová!
Pela lança ensanguentada
Da flor do maracujá!
Por tudo o que o céu revela!
Por tudo o que a terra dá
Eu te juro que minh'alma
De tua alma escrava está!...
Guarda contigo esse emblema
Da flor do maracujá!
Não se enojem teus ouvidos
De tantas rimas em — a —
Mas ouve meus juramentos,
Meus cantos ouve, sinhá!
Te peço pelos mistérios
Da flor do maracujá!
Fagundes Varela (1841-1875)

«roubado» a modus vivendi -http://amata.anaroque.com/

UMBRAL

Outra palavra interessante de nossa Língua é "Umbral". Vem de "sombra", e tem pelo menos dois significados: um, aquele que Fernando Pessoa emprega na tradução de O Corvo de Edgar Allan Poe, o de "ombreira de porta, ou janela"; o outro, usado por certas pessoas dadas ao hermetismo, à metafísica, diz respeito a um estado entre o sono e a vigília, estado semelhante ao sonho, um estado meio hipnótico, uma das fases do sono e do sonho pra certos metafísicos leigos (digo, nem psicólogos nem psicopatologista, pelo menos até onde eu sei) Já a palavra delirium refere-se a um estado patológico da mente, sintoma de perturbaçõa orgânica cerebral, tanto podendo ser causado por demênica, tumor cerebral, trombose ou hemorragia cerebrais, algum sofrimento cerebral resultante de grave doença corpórea (coma hepático), e ainda intoxicação ou abstinência de drogas (o delirium tremens da abstinência alcoólica grave, por exemplo), pois bem, um estado patológico da mente rico em visões fantásticas, amedrontadoras (ou decerto prazerosas para alguns perversos intoxicados), alucinações e ilusões com forte conteúdo emocional que se exppressam claro por idéias delirantes, interpretações falsas patológicas da realidade - a quintessência da loucura.

Certa vez vi um charlatão, desses religiosos e cientistas ao mesmo tempo que exploram a a ignorância e o medo das pessoas para escravizá-las mentalmente e ganhar seguidores e dinheiro, discorrendo sobre o Umbral: região sombria da mente de existência quase física, plena de seres terríveis dos Infernos prestes a arrastar para lá almas dadas à desobediência, à incredulidade, à amoralidade, ao Pecado, aos vícios do carne e da alma... E todos nós teríamos de passar todas as noites pelo Umbral quando adormecemos... Nossa, como alguns dos ouvintes ficaram assustados!

O personagem do poema a seguir, bastante insignificante mas que se torna até apresentável para quem tem cultura poética e alguns dos conhecimentos acima, narra a experiência de alguém que estaria já cruzando o umbral entre a sanidade e a loucura, aceitando as próprias alucinações aterrorizantes como sendo até mesmo agradáveis... pelo menos são uma companhia.
NO UMBRAL – DELIRIUM
“Uma visita está batendo a meus umbrais...”


Já não considero mais
Estorvo
Ter-me tornado incapaz.

Já sorvo
Meu negro futuro em paz.

Observo,
Sempre está em meus umbrais,

Ser torvo
Que me é fiel demais:

É o Corvo.
– É ele! – É Nunca Mais!


Antônio Adriano de Medeiros

sábado, 9 de janeiro de 2010

(Finlândia-1937-1983)



O menino estava a brincar na neve
Passei por ali com uma lâmina de gelo
na mão
escrevendo poemas no ar
O que estás a fazer? perguntou-me o menino
que brincava na neve
Escrevo poemas no ar
não vês?
Sim, vejo
mas isso vai gelar-te a mão
disse-me o menino que estava a brincar na neve


Pentti Saariskoski


(versão de LP a partir da tradução espanhola de Fernando J. Uriz, reproduzida em Afinidades afectivas - antologia de la poesia nórdica, prólogo, selecção e tradução de Francisco J. Uriz, Libros del Innombrable, Saragoça, 2002, p. 91).

dia de Outono- Rainer Maria Rilke







Senhor: é tempo. Foi muito grande o verão.
Nos relógios de sol estira as tuas sombras,
deixa que pelo prado os ventos vão.

Manda aos últimos frutos a espessura,
dá-lhes do sul ainda mais dois dias,
força a plenitude neles, vê se envias
ao vinho forte a última doçura.

Quem não tem casa agora, já não constrói nenhuma,
quem agora está só, vai ficar só, sombrio,
perder o sono, ler, escrever cartas a fio,
e a um ir e vir inquieto nas áleas se acostuma,
vagueando enquanto as folhas lá vão num rodopio.
Senhor, já é tempo; foi tão longo o Verão



Rainer Maria Rilke


Trad. de Vasco da Graça Moura


silêncio-Ivan Minatti





Silêncio
de salgueiro
sobre um braço de água parada,
silêncio
de nuvens imóveis,
silêncio
de caminhos intransitivos.
Solidão
de relvas de outono,
solidão
de pássaro sobre o pântano,
solidão
de datas insaciáveis.
Dor
de sol ensanguentado,
dor
de luz na penumbra,
dor
do não-vivido.



Ivan Minatti (1924-), tradução de Aleksandar Jovanovic.


A formiga-Inger Hagerup






Pequena?
Eu?
Nem pensar.
Tenho o tamanho perfeito.
Encho-me completamente a mim mesma
ao comprido e em largura,
de cima a baixo.
Por acaso és tu maior
do que tu mesmo?





Inger Hagerup


(versão de LP, a partir da tradução espanhola de Francisco J. Uriz, reproduzida em Afinidades afectivas - antologia de la poesía nórdica, prólogo, selecção e tradução de Francisco J. Uriz, Libros del Innombrable, Saragoça, 2002, p. 93).
In http://arspoetica-lp.blogspot.com

a Criação , de Haydn




Felizes estes homens que podiam escrever da Criação,
confiadamente compor-por mais dores que sofressem
enquanto humanos e como seres viventes-
tão jubilantes cânticos do criar do Mundo.

Era belo, era bom, era perfeito o Mundo.
É certo que o cantavam quando apenas criado,
e o par humano pisava sem pecado
o jardim paradisíaco.

Nós nem mesmo em momentos únicos,
raríssimos, epifânicos
-e não só por não crermos no pecado-,
não podemos.


Jorge de Sena


Uma pequenina luz





Uma pequenina luz bruxuleante
não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta
une toute petite lumière
just a little light
una picolla... em todas as línguas do mundo

uma pequena luz bruxuleante
brilhando incerta mas brilhando
aqui no meio de nós
entre o bafo quente da multidão
a ventania dos cerros e a brisa dos mares
e o sopro azedo dos que a não vêem
só a adivinham e raivosamente assopram.
Uma pequena luz
que vacila exacta
que bruxuleia firme
que não ilumina apenas brilha.

Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda.
Muda como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Brilhando indeflectível.
Silenciosa não crepita não consome não custa dinheiro.
Não é ela que custa dinheiro.
Não aquece também os que de frio se juntam.
Não ilumina também os rostos que se curvam.
Apenas brilha bruxuleia ondeia
indefectível próxima dourada.

Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.
Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não:
brilha.
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Apenas como elas.
Mas brilha.
Não na distância. Aqui
no meio de nós.
Brilha .


Jorge de Sena


poema errático



atiro o poema no alvo da tarde.
seta errante, atinge um pássaro em voo solo.
descaem o sol e a ave, desmaiam
os azuis do céu, o tempo é
um vazio e os versos, brancos.

recolho do chão o poema errático,
sem pressa e em silêncio afastamo-nos
do lugar, enquanto desce, sem espantos,
a noite negra com suas estrelas -
sempre indiferentes aos sucessos terrestres.



Walter Cabral de Moura


POESIA



"Poesia também é atenção, ou seja, a leitura em múltiplos planos da realidade à nossa volta, que é a verdade em imagens. E o poeta, que vai desfazendo e recompondo essas imagens, é também um mediador: entre o homens e o deus, entre o homem e o outro homem, entre o homem e as regras secretas da natureza.
(…)
A arte de hoje é em grandíssima parte imaginação, ou seja,contaminação caótica de elementos e de planos.
(…)
A atenção é o único caminho para o inexprimível, a única via para o mistério. De facto, está solidamente ancorada no real, e só por alusões ocultas no real se manifesta o mistério.
(…)
Pedir a alguém que nunca se distraia, que escape sem repouso aos equívocos da imaginação, à preguiça dos hábitos, à hipnose dos costumes, é pedir-lhe que viva na sua máxima forma. É pedir-lhe alguma coisa muito perto da santidade, num tempo que parece apenas perseguir, com cega fúria e glaciar sucesso, o divórcio total entre a mente humana e a faculdade da atenção que lhe pertence."



(Cristina Campo; Os Imperdoáveis- Tradução de José Colaço Barreiros; Assírio & Alvim)


Heinrich Heine



Tive uma pátria bela há muito tempo.
Os carvalhos pareciam
Tão altos e o aroma das violetas era tão doce.
Era um sonho.
Ela beijava-me em alemão, falava em alemão
(Custa acreditar
Como soava tão bem) a palavra: “Amo-te!”
Era um sonho.


Heinrich Heine (13 de Dezembro de 1797 – 17 de Fevereiro de 1856)

Carpe Diem





Não perguntes (é impiedade saber), ó Leucônoe, que fim para mim e para ti
Os deuses deram, nem vá consultar a sorte junto aos oráculos babilônicos.
O que tiver que acontecer suporta!
Seja muitos invernos, seja o último dado por Júpiter,
O qual agora agita o mar Tirrenum contra os rochedos da costa,
Sê sensata, purifica o vinho e deixa de ter grandes esperanças em um tempo tão breve.
Enquanto falamos, foge o invejoso tempo.
Colha os frutos do dia, acreditando muito pouco no amanhã.


Horácio Flacco - Ode XI


(tradução de Anderson Sousa da Silva)

Picasso




Picasso
erra
quando pinta
e erra
quando ama.

Mas quando erra,
erra
violenta e
generosamente,
erra
com exuberante
arrogância,
erra
como o touro erra
seu papel de vítima,
sangrando
quem, por muito amar, fere
e sai ovacionado
com banderilhas na carne.

Pintor do excesso
e exuberância,
Picasso
é extravagância.
Ele erra,
mas nele,
o erro
mais que erro
- é errância.


Affonso Romano de Sant'Anna

MysticaVisio



Vinha passando pelo meu caminho
Um vulto estranhamente iluminado...
Para onde eu ia, o vulto ia a meu lado
E desde então, não andei mais sozinho!
Abraçou-me, beijou-me com um carinho
Que a um ser divino não seria dado...
E eu me elevava, sendo assim beijado
Muito acima do humano borborinho!
Falou-me de ilusões e de luares,
Da tribo alegre que povoa os ares...
- Assombrava-me aquela claridade!
Mas através daquelas falsas luzes
Pude rever enfim todas as cruzes
Que têm pesado sobre a Humanidade!


Augusto dos Anjos


Pau d'Arco, 1905 (O Comércio, 15/09/1905)