terça-feira, 25 de setembro de 2012

Coração pequeno





Coração pequeno



"o projétil que disparei
durante a grande guerra
deu a volta ao globo
e acertou-me nas costas


no momento menos adequado
quando já estava certo
de ter esquecido tudo


as culpas dele
as minhas culpas


pois quis como os outros
apagar a memória
as caras de ódio


a história confortava-me
tinha combatido a opressão
e o Livro dizia
-É ele o Caim


tantos anos pacientemente
tantos anos inutilmente
Coração pequeno

lavei com a água da piedade
a fuligem, o sangue, as ofensas
para que a sublime beleza
o encanto da existência
e talvez mesmo o bem
me habitassem
pois como todos
tinha o desejado voltar
à baía da infância
ao país da inocência


o projétil que disparei
com uma arma de pequeno calibre
contrariando as leis da gravidade
deu a volta ao globo
e acertou-me nas costas
como a dizer
- nada será perdoado
a ninguém


eis-me pois sentado solitário
sobre um tronco de árvore cortada
muito exactamente no meio
de uma batalha esquecida


e teço aranha grisalha
considerações amargas



sobre a imensidão da memória
sobre a pequenez do coração"



Zbigniew Herbert
(Polónia 1924/ 1998)



in DiVersos,
Poesia e Tradução, 17
Edições Sempre-em-Pé




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