sábado, 12 de setembro de 2009

Fernando Pessoa- Bernardo Soares


"A fraternidade tem subtilezas"
Hoje, como me oprimisse a sensação do corpo aquela angústia antiga que por vezes extravasa, não comi bem, nem bebi o costume, no restaurante, ou casa de pasto, em cuja sobreloja baseio a continuação da minha existência. E como, ao sair eu, o criado verificasse que a garrafa de vinho ficara em meio voltou-se para mim e disse: «Até logo, sr. Soares, e desejo as melhoras.»

Ao toque do clarim desta frase simples a minha alma aliviou-se como se num céu de nuvens o vento de repente as afastasse. E então reconheci o que nunca claramente reconhecera, que nestes criados de café e de restaurante, nos barbeiros, nos moços de frete das esquinas, eu tenho uma simpatia espontânea, natural, que não posso orgulhar-me de receber dos que privam comigo em maior intimidade, impropriamente dita…
A fraternidade tem subtilezas.

Uns governam o mundo, outros são o mundo. Entre um milionário americano, um César ou Napoleão, ou Lenine, e o chefe socialista da aldeia – não há diferença de qualidade mas apenas de quantidade. Abaixo estamos nós, os amorfos, o dramaturgo atabalhoado William Shakespeare, o mestre-escola John Milton, o vadio Dante Alighieri, o moço de fretes que me fez ontem o recado, ou o barbeiro que me conta anedotas, o criado que acaba de me fazer a fraternidade de me desejar aquelas melhoras, por eu não ter bebido senão metade do vinho.


Bernardo Soares,Livro do Desassossego (Pessoa 1888-1935)

antigo egipto-anónimo


Quando me dá as boas-vindas
De braços bem abertos
Sinto-me como aqueles viajantes que regressam
Das longínquas terras de Punt.

Tudo se muda; o pensamento, os sentidos,
Em perfume rico e estranho.

E quando ela entreabre os lábios para beijar
Fico com a cabeça leve, fico ébrio sem cerveja.


(Anonimo-Antigo Egipto)
trad. por Helder Moura Pereira

Joaquim Namorado



O QUE É, ERA

Quando Cristóvão Colombo descobriu a América
a América estava lá ;

o sangue já circulava
antes de descrever Harvey a sua circulação ;

A gente respirava sem saber
que respirar é uma oxidação ;

Tudo existe
O que se inventa é a descrição.

Joaquim Namorado

as orquídeas-Francisco Morales Santos



COISA CERTA


As orquídeas não tecem
nem penteiam;
o mais que fazem
é desfiar a neblina
para tomar do céu
o fulgor, sua cobertura,
mas a selva
se ocupa de que vivam
obsequiando-lhes leito nos tocos
e em não poucas
de suas melhores árvores.
Imitando-as, claro,
em outra selva mais densa, ao acaso,
insurge uma espécie bípede
que busca, por toda costa,
viver como a orquídea.

Francisco Morales Santos (Guatemala, 1940)

Tradução: Anibal Beça

Jorge de Sena- poema


jorge de sena - 1919-1978


Foi necessário que a família doasse, como era seu desejo, todo o seu espólio literário, biblioteca e objectos pessoais, para que, finalmente Portugal cumprisse o seu grande desejo de voltar à pátria e aqui repousar para sempre.

Jorge de Sena foi só um dos maiores poetas portugueses. Nunca tolerou ditaduras - malquisto e perseguido em Portugal no tempo de Salazar, foi para o Brasil - ele que tinha formação na marinha de guerra (creio), tornou-se professor no Brasil e aí desenvolveu parte da sua obra, se tornou brasileiro e publicou o primeiro dos seus grandes estudos camonianos.Instalada a ditadura no Brasil, foi para os USA, para a prestigiada - e que o prestigiou também - Universidade de Santa Bárbara, na Califórnia - onde viveu até à sua morte e onde atribuíram o seu nome- Cátedra Jorge de Sena - ao departamento dedicado a estudos portugueses e espanhóis.Antes recebera um prémio de poesia em Itália.Sempre quis regressar a Portugal após a revolução «dos cravos» que O desiludiu bastante, aquando dos dois primeiros anos. Não o quiseram por cá -ele que tinha lugar como professor universitário em qualquer grande universidade do mundo. Só agora se cumpre esse seu desejo -português que sempre foi, foi também brasileiro no Brasil e morreu como americano. Hoje os seus restos mortais são trasladados para um lugar que é quase uma espécie de quase panteão.
Foi, como disse, GRANDE: na postura democrática, na criação e na crítica literária e de artes, nomeadamente cinema, na ficção - contos, novelas,teatro e o inacabado e no magnífico romance Sinais de Fogo -e na poesia. Dir-se-ia: mais vale tarde do que nunca...Mas só o trazem porque ele tudo doou à Pátria que pouco interesse mostrou por ele.Em vida concederam-lhe, um ano antes da sua morte,(1977) a condecoração máxima num 10 de Junho,dia de Camões e de todos nós,em que pronunciou o mais veemente e melhor discurso oficial produzidos desde 1974 nesse Dia de Portugal.está esquecido, praticamente, nos programas do ensino secundário.Pátria ingrata para ele e para tantos.

Desculpem o grande prelúdio, e já agora aqui vai um dos seus poemas (já divulguei outros):

Amo-te muito, meu amor,
e tanto, que, ao ter-te, amo-te mais e mais ainda
depois de ter-te, meu amor. Não finda
com o próprio amor do teu encanto.

Que encanto é o teu? Se continua enquanto
sofro a traição dos que, viscosos, prendem,
por uma paz da guerra a que se vendem,
a pura liberdade do meu canto,

um cântico da terra e do seu povo,
nesta invenção da humanidade inteira
que a cada instante há que inventar de novo,

tão quase é coisa ou sucessão que passa...
Que encanto é o teu? Deitado à tua beira,
sei que se rasga, eterno, o véu da Graça.

JORGE DE SENA, 1919-1978


Ver também http://hardmusica.pt/noticia_detalhe.php?cd_noticia=2999
ou
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jorge_de_Sena

Jorge de Sena



CARTA A FERNANDO PESSOA


Meu caro Amigo


Se me não engano, é esta a segunda carta que V. recebe depois de morto. A outra, como deve estar lembrado, escreveu-lha Carlos Queiroz, que o conheceu pessoalmente. Não tive eu tanta honra, o que, pode crer, é um dos meus desgostos verdadeiros. No entanto, não lamento o desencontro. Apenas a curiosidade ficaria satisfeita; e, em contrapartida, jamais o Álvaro de Campos ou o Alberto Caeiro se revestiriam, a meus olhos, daquelas pungentes personalidades que lhes permitiu, e aos outros, o seu espírito sem realidade nenhuma. Porque esta é a verdade, meu Amigo: toda a sua tendência para a “despersonalização”, para a criação de poetas e escritores “heterónimos” e não pseudónimos, significa uma desesperada defesa contra o vácuo que V. sentia em si próprio e à sua volta. Quando V. criou o Álvaro de Campos, o Alberto Caeiro e o Ricardo Reis, quando fez deles um grupo de amigos seus, defendeu-se contra si próprio – e só não o tendo eu conhecido pessoalmente, não tendo, pois, assistido à irremediável ausência de qualquer deles, era possível cumprir-se em mim (ou noutros em idênticas circunstâncias, e para quem, também, a poesia não seja uma forma definitiva como um título consolidado) o que deve ter sido um dos mais melancólicos sonhos da sua vida.

V. não foi um mistificador, nem foi contraditório. Foi complexo, da pior das complexidades – a sensação do vácuo dentro e fora, V. não foi um poeta do Nada, mas, pelo contrário, poeta do excessivamente virtual, de toda a consciência trágica de probabilidade, que a crença no Destino não exclui.

Os seus heterónimos (e V. quando escreveu em seu próprio nome não foi menos heterónimo do que qualquer deles) não são as personagens independentes, protagonistas do “drama em gente”, do qual V. falou. Embora V. os visse, e os ouvisse e, por conta deles, se inspirasse, não representam um drama, nem vivem, em comum, o romance das “vidas que V. não queria ter”, segundo a expressão de Casais Monteiro – porque as biografias, que lhes deu, são ainda bem pouco para o que eles disseram... Poderei, com maior piedade do que lhe permitiu, a V., a sua lucidez devoradora, afirmar que essas vidas vieram depois, e amassadas com lágrimas que V. considerou imerecidas, que não quis gastar sobre a sua própria vida?

Quem lê as poesias assinadas com o seu nome, e as outras assinadas Álvaro de Campos, e depois as compara com as de Alberto Caeiro e Ricardo Reis, não sentirá como eu senti, que só a estes dois últimos pertencia a possibilidade poética de se erguerem, totalmente, acima do “Indefinido”? Esse Lucrécio e esse Horácio, com quem V. tentou raivosamente limitar-se; através dos quais tentou existir com o possível mínimo de ser; pela boca de Caeiro, afirmando o valor intacto do mundo exterior, embalsamado assim num devir inocente; pela boca de Reis, amando o quanto de gratuito a vida lhe podia conceder, uma vez que V. e a sua Lídia abstracta transformassem num só dia a vida inteira –

Inscientes (...) voluntariamente
Que há noite antes e após
O pouco que duramos.

- esse Lucrécio e esse Horácio, ambos tão incansáveis, tão resignado e indiferente o primeiro, e tão altivo o segundo, eram a sua revolta intelectual.


O Álvaro de Campos e o Pessoa que a V. ficou das sobras, esses eram da sua revolta sentimental. Eram quotidianos; eram o seu chegar à janela e ver a rua; eram a sua mágoa, quer de não estar em toda a parte, quer de estar em parte nenhuma, apesar do paliativo, que a V., quando em seu nome, lhe provinha de uma auto-submissão intelectual terrivelmente activa. Por isso o Álvaro de Campos escreveu a “Ode Marítima” e a “Tabacaria”; por isso o Fernando Pessoa escreveu os poemas da “Mensagem” e “O Menino da sua Mãe”. Ambos recordam a infância; e, para ambos, o passado é, como a infância, uma lembrança misteriosa que se não apaga. Lembrança de quê? Infância de quem? Muitas vezes perguntaram isso, mas a resposta era um silêncio e, mesmo (bem sabemos, não é?), um consultor dos astros, como verificação...


Não, meu Amigo! O D. Sebastião da “Mensagem” parece-se tão extraordinariamente com o Menino Jesus do “Guardador de Rebanhos” (“era o deus que faltava”...), que quase se suspeita da objectividade de “O Menino de sua Mãe”! É essa a fonte do espantoso vácuo que o cercava, meu Amigo: o vácuo da Terra, da qual o Sol se levanta, mas da qual não nasce!...

A noite, que V. poeticamente sentiu, como raríssimos poetas portugueses, com uma densidade e uma profundidade que a solidão lhe ensinou, foi o seu grande refúgio: nela a sua lucidez se alongava e expandia, é certo que dolorosamente, mas sem encontrar um objecto para o ataque, uma imagem a que antepor um cruel espelho.

Hoje, que a solidão e a lucidez perderam, para V., todo o sentido que tinham, reconheça comigo, que, se a elas ficou devendo uma inspiração sincera, lhes ficou devendo, também, o constante perigo de não conseguir se o grande Poeta que foi. A presença desse perigo é constante na sua obra; chega a tornar-se um dos temas fundamentais: e momentos houve, nos quais V. se comprazia em mergulhar nessa

... espécie de loucura
que é pouco chamar talento,

como se ela fosse, por si própria, uma virtualidade de expressão poética. Todavia, assemelhava-se a uma virtualidade poética: era um saber o som das asas cortando o ar... Assas tão grandes!... Tão consoladoras essas grandes asas!... E, depois, dizer o quê?... Se o dizer fosse o que fosse equivalia a restringir, a criar pequenos e pretensos mitos, em substituição dos outros maiores, tal como as palavras tinham sido criadas para esconjurar esses outros...


Não creio, portanto, que a morte o tenha prejudicado, meu Amigo: V. não diria mais do que disse; V. tinha dito sempre a mesma coisa – maravilhosamente, de quantas maneiras possíveis.

Veja, no entanto, as “Malhas que o Império tece”! Porque V., à parte o seu caso único na história das literaturas, para ser algo do Super-Camões que anunciara, não precisava de ter publicado uma espécie de Lusíadas, e de deixar as Líricas dispersas por revistas, ou amontoadas num baú, entregues às mãos do acaso e da amizade...


As suas obras estão sendo publicadas. O grande público decorará o seu nome; muitas pessoas o lerão; algumas o hão-de entender e amar. Outras desconfiarão de V. Outras, ainda, lamentarão secretamente aquela complexidade, de que já falámos, e que não pode servir de garantia a profecias ou realidades, para uso do “gado vestido dos currais dos Deuses”. Será tido como mistificador. Será tido como contraditório. Mas V., meu Amigo, já o sabia... E aquele sorriso vago, que flutuar aquém dos seus retratos, para quem será, não é verdade?


Creia na imensa admiração e no imenso respeito do
Jorge de Sena
In Fernando Pessoa & Cª Heterónima

eugenio montale-1896-1981



ENCONTRO

Hesitámos por um momento
e pouco depois reconhecemos
que sofríamos da mesma doença.
Não existe definição
para esta maravilhosa tortura,
há quem lhe chame spleen
e quem fale em melancolia.
Mas se aceitamos o jogo
nas suas margens encontramos
um sinal inteligível
que pode dar sentido ao todo.


Eugenio Montale, "Poesia" (Diário Póstumo, 19696), tradução de José Manuel de Vasconcelos,
Assírio & Alvim, Lisboa, Junho 2004

Teixeira de Pascoaes


Poeta quer dizer Possesso. Não devemos confundir os artistas do verso com os criadores de Poesia. Os primeiros interessam apenas à Literatura, ao passo que os segundos têm um interesse vital e universal, como uma flor ou uma estrela.





Teixeira de Pascoaes
(in Aforismos )

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Josefina Plá

Desconcerto

Ao descascar a palavra esperança encontrei polpa de maçã
e caroço de pedra.
Ao descascar a palavra amor achei pele de pêssego
e carne de cinza.
Ao descascar a palavra verdade, encheu as minhas mãos
e ao chegar à minha boca não existia


Josefina Plá (1903-Ilhas Canarias;199 9-Paraguay)
A poeta nasceu nas Canárias, mas foi para o Paraguay,onde viveria sempre, aos 18 anos.

Para saber mais:
Jsefina Plá, 33 poermas-traduzidos porAlfredo Fresia, para ed. Fluviais, Lisboa,2002

blaise cendrars,moravagine

moravagine

Ó jovem, considera a secura
dos trágicos que se perdem em facécias. Não esqueças
que não existe alguma vez progresso
quando o coração petrifica. É
preciso que toda a ciência se
ordene à semelhança dum fruto que
se dependure na ponta de uma árvore
de carne e que amadureça
ao sol da paixão,
histologia, fotografia, campainha
eléctrica, telescópios, pássaros,
amperes, ferro de passar,
etc. – Tudo isto é para deslumbrar a porra da hu-
manidade.


O teu rosto é tão diferente
tão comovente molhado de
lágrimas e pronto a rebentar
de riso.





blaise cendrars,moravagine
trad. e pref. ruy belo
livros cotovia
1992

Adriano Botelho de Vasconcelos

9.1 Um cabelo longo com o resto de túmulo aberto numa rua
principal da cidade. O Tiba abriria em cada uma das letras
dos poemas a sua aurora
com tintas há muito afinadas no número de portas
que não se abriram. O sol na taça partida pela lebre agora sobe
o umbral da janela onde a ninfa está perto do meu poema,
descalça e pronta para pedir uma lua
mais aberta que resgatasse o último namorado
que com a cintura tirou um quarto de hotel que sem lâmpadas caiu
do último andar da noite : os polícias vieram à paisana, pretendiam
escrever o melhor romance de um crime que não podiam
testemunhar. Uma noite por este postigo não faz o crime.
Chamem um carcereiro cubano distante da sua terra natal
para dizer se uma utopia tirada de um contentor
pode salvar um país quando Fidel
está acordado sobre o sono
que Lenine prefere passear com duas
algemas.

10. O soba fechou o estádio com todos os teus troféus
que foram recolhidos pelos mesmos três ourives
que os jogaram para dentro do WC onde puderam
desfazer os seus
brilhos. Faço contas do teu ódio através das antiguidades
dos teus terços. Todos os gafanhotos que desceram
com o céu preso em suas asas
conheceram a tua
lavra.

10.1 Fomos para o tapete onde por descuido deixei
uma guarda aberta, não me tinha protegido com cotovelos
e ombros e uma forte razão para não cair no primeiro
assalto. As estrelas que são arrancadas do chão são anéis
da dor mais fina. Tentaste desferir mais um golpe quando
duas mães corriam para o ringue para fazerem de mim o último
dos seus filhos. O árbitro ficou impávido, tinha medo de erguer
as regras e já contava a minha desistência
quando a primeira mãe me disse que corresse pela calçada
onde Deus andou descalço. O soba desceu do camarote forrado
com tapetes vermelhos, parou onde estava o sino, tocou-o
com importância e já diante de ti ordenou que levasses os murros
para lá do tapete manchado de sangue. O árbitro pediu licença
para arrancar uma folha do livro
que os advogados deixaram numa estante
próxima do apóstolo que inventou o cálice para as vitórias.
Parece até que os teus punhos tinham uma dívida antiga
que querias saldar através do meu desfalecimento,
podias sempre escolher uma carpideira sem salários. O público
escolheu: já podia olhar através da praça
onde os heróis são cuidados com palavras que precisam
de ser repetidas. Olhaste para o soba e ele não te pediu
que usasses os joelhos para que pudesses voltar a dirigir
uma guerra. Ficaste zangado porque não tinhas como arrancar
o tapete do último assalto e colocá-lo
no coração do País depois de todos só poderem
usar três palavras para todas as necessidades
do coração.

11. Preciso de uma outra idade vivida por uma ideia
que saiba que desta árvore guardarei com lentidão
o movimento da folha que cai para fazer surgir
uma outra força e estação. A verdade dói menos
do que a velhice, mas todo o relato vem de uma derrota
que nos fez acreditar forçosamente que Deus escolhe
com atenção o dia mais
frágil para nos convencer que a nossa folha
é o que em cada instante já não podemos pegar com fascínio
e afinidades que valorizam os detalhes e espessura
da Sua arte.

[…]

Adriano Botelho de Vasconcelos
in Olímias
pag 56, 57, 58, 59
edição UEA, Luanda 2005

Adriano Botelho de Vasconcelos nasceu em Malange aos 8 de Setembro de 1955

Obras publicadas: “ Voz da Terra” ( 1974), “ Vidas de só revoltar” ( 1975), Células de ilusão Armada” ( 1983) , Anamnese ( 1984), “ Emoções” ( 1988), “ Abismos de silêncio” ( 1992),
“ Tábua” Grande premio Sonangol de Literatura ex -aequo ( 2003), “ Boneca de Pano: Colectânea do conto infantil angolano ( 2005), Caçadores de sonhos: antologia do conto angolano” (2005), “ Todos os sonhos: antologia da poesia moderna angolana” ( 2005), “ Olímias (2005), editou os jornais “ Unidade e luta” (1974), Angolê- Artes e Letras” ( 1984), “Maioria Falante” ( RJ) e concebeu o Webdesign do site da UEA ( União dos Escritores Angolanos)

Adriano Botelho de Vasconcelos

6. Oh, Kimbela, a morte do teu marido
podes chorar todos os dias no cemitério apoiada nos serviços
das floristas! Não posso deixar de me inclinar perante
o teu vale de lamentações onde se afunda a tua última fantasia
e do baú cheio de pó tiras a foto mais antiga do liceu.
Olhas para trás das nossas vidas e tudo se pode medir
pelo número certo dos degraus das vossas auroras.
Tudo se encaixa, o Diabo não foi capaz de alterar a fartura
da oferta que o céu soltou para o teu regaço e até exiges
que toda a sanzala te ofereça um dia de romaria e de lágrimas…
mas a morte de tantos irmãos, Oh Kimbela!.
é a mais dura subtracção da minha vida porque é um veio
de sangue que se cortou e nos abre o fundo da existência
( há uma parte da pátria que se parte
dentro de mim e só posso ter em minhas mãos
os estilhaços mais inclementes)
para que nos encontremos com a nossa própria fraqueza
e a odiemos. E Deus- apesar de O termos como os únicos
ouvidos e olhos que descobrem os criminosos – não facilita
em dizer “ Venham por aqui” : assim poderíamos ter África
como se quer um tecto
sobre nossas
vidas.

Adriano Botelho de Vasconcelos
in Olímias
edição UEA, 2005

Gerardo Diego

BALOUÇO

A cavalo no gonzo do mundo
um sonhador brincava ao sim e ao não

As chuvas de cores
emigravam para o país dos amores

Bandos de fores
Flores de sim ........Flores de não

Facas no ar
Que lhe rasgam as carnes
Formam uma ponte

Sim............Não

Cavalga o sonhador
Pássaros arlequins
cantam o sim......cantam o não

Gerardo Diego

Augusto Abelaira- Bolor

Ignoro porquê (o Concerto para a mão esquerda?), interrompo o esforço de ir escurecendo ( em verdade azulando) este caderno. Quando recomeço, volvidos alguns minutos, ponho um sinal na página cento e quinze-lembrar-me-ei assim, ao chegar lá, da minha inquietação, a curiosidade há-de obrigar os meus dedos a voltarem aqui, os meus olhos poderão ler as seguintes palavras (então por completo esquecidas, agora ainda por escrever):

Pouco depois de nos levantarmos e enquanto me barbeava, a Maria dos Remédios disse, através da porta:
- Costumas pensar muitas vezes na Catarina?
Demorei a resposta. Porque diabo lhe teria passado hoje aquela ideia pela cabeça- hoje e não há seis anos? Logo pela manhã, em vez de uma dessas frases iguais a muitas outras ( de paredes sólidas e sem janelas), teria eu deixado escapar algumas palavras transparentes, reveladoras de que a Catarina estava, continua a estar, no mais íntimo dos fundos, no mais íntimo de mim?
Com a máquina de barbear em punho, com o meu rosto bem na minha frente, lancei-me à procura do momento preciso em que acordei, dos minutos simultaneamente longos e apressados que precedem a decisão final de sair da cama, a conversa sobre o Aníbal Soares, a obrigação inadiável de o ir ver ao hospital, o...
Para além da porta fechada, os passos da Maria dos Remédios afastavam-se- aparentemente desinteressara-se de ouvir a resposta, pelo menos desinteressara-se de uma resposta precipitada, preferia conceder-me alguns momentos de reflexão.
Não muitos; os passos regressavam:
Achava-la bonita?
Ao mesmo tempo fico espantado comigo próprio: vivo contigo; Maria dos Remédios, há tantos anos, e nunca suspeitei desse teu vício ( a aritmética dos sentimentos).
-Ela era muito bonita-digo. Acabada a barba, abrira a porta e, em vez do meu, tinha agora em frente o rosto da Maria dos Remédios. Acrescento, receoso de uma ruga que lhe descia da testa, um pouco acima do nariz: -Não posso dar outra resposta, percebes?
- Sim, poderias dizer: a Catarina era feia.
-Saberias que eu teria mentido.
-E também que tinhas adivinhado o meu desejo de ouvir- adoçou levemente a voz, imitando a voz que me faltara:Tu és mais bonita...
-Desejavas, de facto?
-Não.
Perguntaste«Costumas pensar muitas vezes na Catarina?» E também: «Achava-la muito bonita?» Vou responder-te agora de outra maneira: «Receia, sim, a concorrência das mulheres que não conheço- as que conhecerei daqui a quatro ou cinco meses. Daqui a quatro ou cinco meses terás envelhecido quatro ou cinco meses, essas mulheres não terão envelhecido um único segundo. Daqui a quatro ou cinco meses terão rigorosamente a idade que tiverem, a idade com que as conhecerei daqui a quatro ou cinco meses, eu que não as terei conhecido quatro ou cinco meses antes».

(Augusto Abelaira- Bolor)

Francisco Morales Santos

COISA CERTA


As orquídeas não tecem
nem penteiam;
o mais que fazem
é desfiar a neblina
para tomar do céu
o fulgor, sua cobertura,
mas a selva
se ocupa de que vivam
obsequiando-lhes leito nos tocos
e em não poucas
de suas melhores árvores.
Imitando-as, claro,
em outra selva mais densa, ao acaso,
insurge uma espécie bípede
que busca, por toda costa,
viver como a orquídea.

Francisco Morales Santos (Guatemala, 1940)

Tradução: Anibal Beça

Dino Buzzati- o tempo humano

Sobre o tempo humano, este excerto de "O Deserto dos Tártaros", de Dino Buzzati, é fabuloso. Arrumando o computador, encontrei esta página, que tinha digitalizado. Partilho convosco.

«Estendido na cama estreita, fora do halo de luz do candeeiro a petróleo, enquanto fantasiava sobre a sua vida, Giovanni Drogo foi inesperadamente dominado pelo sono. E contudo, justamente naquela noite – oh, se tivesse sabido talvez não tivesse tido vontade de dormir -justamente naquela noite principiava para ele a irremediável fuga do tempo.
Até então avançara pela despreocupada idade da primeira juventude, uma estrada que em crianças nos parece infinita, em que os anos passam devagar e com passos suaves, de modo que ninguém se apercebe da sua passagem. Caminha-se tranquilamente, olhando em redor com curiosidade, não é preciso ter pressa, ninguém atrás nos urge e ninguém nos espera, e também os nossos companheiros avançam sem preocupações, detendo-se amiúde para brincar. Das casas, às portas, a gente crescida saúda-nos benevolente e faz-nos sinal indicando o horizonte com sorrisos cúmplices; o coração começa assim a bater de desejos heróicos e ternos, saboreia-se a expectativa das coisas maravilhosas que nos aguardam mais adiante; não, ainda não se vêem, mas é certo, é absolutamente certo que um dia lá chegaremos.
Falta muito ainda? Não, basta atravessar aquele rio lá ao fundo, ultrapassar aquelas colinas verdes. Ou será que já chegámos? Não serão estas árvores, estes prados, esta casa branca, aquilo que procurávamos? Por alguns instantes temos a impressão de que sim e gostariamos de ficar por ali. Depois ouvimos dizer que o melhor está mais adiante e fazemo-nos de novo à estrada estrada sem esforço.
E assim se prossegue caminho numa espera confiante, e os dias são longos e tranquilos, o Sol brilha alto no céu e parece nunca ter vontade de chegar ao ocaso.
Mas a certa altura, quase instintivamente, voltamo-nos para trás e vemos que uma cancela se fechou nas nossas costas, obstruindo-nos a via do regresso. Então sentimos que algo mudou, o Sol já não parece imóvel, desloca-se rapidamente, ai de nós, nem temos tempo de o fixar pois já se precipita no confim do horizonte; apercebemo-nos de que as nuvens já não ficam estagnadas nos golfos azuis do céu, fogem encavalitando-se umas nas outras, tal é a sua urgência; percebemos que o tempo passa e que também a estrada um dia deverá terminar.
A certa altura encerram atrás de nós um pesado cancelo, fecham-no com a velocidade de um raio não nos dando tempo para voltar para trás. Mas Giovanni Drogo naquele momento dormia, alheado, e sorria no sono como fazem as crianças.
Passarão dias antes que Drogo perceba o que aconteceu. Então, será como um despertar. Olhará em redor, incrédulo; depois sentirá um rumor de passos que se aproximam atrás de si, e verá os que despertaram primeiro que ele correndo ofegantes e ultrapassando-o para chegar cedo. Sentirá o pulsar do tempo a marcar avidamente o compasso da vida. Às janelas já não se assomarão figuras risonhas, apenas rostos frios e indiferentes. E se ele perguntar se ainda falta muito para chegar, também estes farão um gesto a indicar o horizonte, mas desprovido de bondade e alegria. Entretanto perderá de vista os companheiros, um porque ficou para trás, exausto, outro porque se adiantou, fugindo, e agora não é mais do que um ponto minúsculo no horizonte.
Para lá daquele rio – dirão as pessoas - mais dez quilómetros e já chegaste. Mas a verdade é que nunca mais – os dias tornam-se cada vez mais pequenos, os companheiros de viagem cada vez mais raros, e às janelas vêem-se apáticas figuras pálidas que abanam a cabeça.
Até que Drogo ficará completamente só e no horizonte surgirá a faixa de um mar desmedido e imóvel, cor de chumbo. Então já estará cansado, as casas que ladeiam o caminho terão quase todas as janelas fechadas, e as raras pessoas visíveis responder-lhe-ão com um gesto desconsolado: o bom estava lá atrás, muito atrás, e ele passou-lhe diante sem se aperceber. Oh, agora é demasiado tarde para retroceder, atrás dele não pára de crescer o fragor da multidão que o segue, impelida pela mesma ilusão, mas ainda invisível na branca estrada deserta.
Giovanni Drogo agora dorme no interior do terceiro reduto. Sonha e sorri. Pela derradeira vez chegam-lhe de noite as doces imagens de um mundo inteiramente feliz. Que desgraça se pudesse ver-se a si próprio como será um dia, lá onde a estrada termina, parado na margem do mar de chumbo sob um céu cinzento e monótono, e em redor nem uma casa, nem um homem, nem uma árvore, nem sequer um fio de erva, tudo assim desde tempos imemoriais.»

Dino Buzzati, O Deserto dos Tártaros, Cavalo de Ferro 2006

Afonso Romano de Sant'Anna

A Implosão da Mentira

Afonso Romano de Sant'Anna

Mentiram-me.
Mentiram-me ontem
e hoje mentem novamente.
Mentem de corpo e alma completamente.
E mentem de maneira tão pungente
que acho que mentem sinceramente.
Mentem sobretudo impunemente.
Não mentem tristes,
alegremente mentem.
Mentem tão nacionalmente
que acho que mentindo história afora
vão enganar a morte eternamente.

Mentem, mentem e calam
mas nas frases falam e desfilam de tal modo nuas
que mesmo o cego pode ver a verdade em trapos pelas ruas.
Sei que a verdade é difícil e para alguns é cara e escura,
mas não se chega à verdade pela mentira
nem à democracia pela ditadura.


Mentem, mentem caricaturalmente,
mentem como a careca mente ao pente,
mentem como a dentadura mente ao dente
mentem como a carroça à besta em frente,
mentem como a doença ao doente,
mentem como o espelho transparente
mentem deslavadamente como nenhuma lavadeira mente ao ver a nódoa sobre o rio
mentem com a cara limpa e na mão o sangue quente,
mentem ardentemente como doente nos seus instantes de febre,
mentem fabulosamente como o caçador que quer passar gato por lebre
e nessa pilha de mentiras a caça é que caça o caçador
e assim cada qual mente indubitavelmente.

Mentem partidariamente,
mentem incrivelmente,
mentem tropicalmente,
mentem hereditariamente,
mentem, mentem e de tanto mentir tão bravamente
constróem um país de mentiras diariamente.

Vinicius de Morais

Pátria minha

A minha pátria é como se não fosse, é íntima
Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
É minha pátria. Por isso, no exílio
Assistindo dormir meu filho
Choro de saudades de minha pátria.

Se me perguntarem o que é a minha pátria, direi:
Não sei. De fato, não sei
Como, por que e quando a minha pátria
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa
Em longas lágrimas amargas.

Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos...
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias, pátria minha
Tão pobrinha!

Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho
Pátria, eu semente que nasci do vento
Eu que não vou e não venho, eu que permaneço
Em contato com a dor do tempo, eu elemento
De ligação entre a ação e o pensamento
Eu fio invisível no espaço de todo adeus
Eu, o sem Deus!

Tenho-te no entanto em mim como um gemido
De flor; tenho-te como um amor morrido
A quem se jurou; tenho-te como uma fé
Sem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto a jeito
Nesta sala estrangeira com lareira
E sem pé-direito.

Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no Maine, Nova Inglaterra
Quando tudo passou a ser infinito e nada terra
E eu vi alfa e beta de Centauro escalarem o monte até o céu
Muitos me surpreenderam parado no campo sem luz
À espera de ver surgir a Cruz do Sul
Que eu sabia, mas amanheceu...

Fonte de mel, bicho triste, pátria minha
Amada, idolatrada, salve, salve!
Que mais doce esperança acorrentada
O não poder dizer-te: aguarda...
Não tardo!

Quero rever-te, pátria minha, e para
Rever-te me esqueci de tudo
Fui cego, estropiado, surdo, mudo
Vi minha humilde morte cara a cara
Rasguei poemas, mulheres, horizontes
Fiquei simples, sem fontes.

Pátria minha... A minha pátria não é florão, nem ostenta
Lábaro não; a minha pátria é desolação
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta
E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular
Que bebe nuvem, come terra
E urina mar.

Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
Uma quentura, um querer bem, um bem
Um libertas quae sera tamen
Que um dia traduzi num exame escrito:
"Liberta que serás também"
E repito!

Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa
Que brinca em teus cabelos e te alisa
Pátria minha, e perfuma o teu chão...
Que vontade me vem de adormecer-me
Entre teus doces montes, pátria minha
Atento à fome em tuas entranhas
E ao batuque em teu coração.

Não te direi o nome,

Derek Walcott

MAPA DO NOVO MUNDO – ARQUPÉLAGOS – Derek Walcott


Ao cabo desta frase, choverá
À beira-chuva, uma vela.

A vela aos poucos perderá de vista as ilhas;
A fé nos portos de uma raça inteira
sumirá na neblina.

A guerra de dez anos terminou.
O cabelo de Helena: uma nuvem grisalha.
Tróia: um fosso branco de cinzas
junto ao mar onde garoa.

A garoa se reteza como as cordas de uma harpa.
Um homem de olhos nublados toma em mãos a chuva
e tange o primeiro verso da Odisséia.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Soledade Santos- TO BE ALONE

TO BE ALONE

«To be alone is one of life's greatest delights»
D. H. Lawrence

uma chávena de chá sobre a mesa
um gato de barro um castiçal
algumas flores conchas livros
um caderno dois novelos
de lã e uma revista de tricot –
espólio de uma tarde à chuva
nessas delícias da solidão
que D H Lawrence cantou


Soledade Santos

José Manuel Arango



Os que têm por ofício lavar as ruas
(madrugam, Deus ajuda-os)
encontram nas pedras, um dia após outro, rastos de sangue

E também os lavam: é o seu ofício
E depressa
não se dê o caso de os primeiros transeuntes os espezinharem

José Manuel Arango


(versão de L.P. -original reproduzido em La poesia del siglo XX em Colombia, edição de Ramón Cote Baraibar, Visor, Madrid, 2006, p. 276).
In http://arspoetica-lp.blogspot.com/2009/06/jose-manuel-arango.html

Al- Hallaj ( 857-922 )




Eu te desejo,
não pela alegria da recompensa,
como se espera dos eleitos;
desejo-te para meu castigo.
Já abandonei todos os dons que sonhei desejar,
menos o êxtase de estar contigo
na hora de meu suplício.


Al- Hallaj ( 857-922 )

Daniel Filipe

Andorinha secreta de um verão,
que só nós dois sabemos, te revelas.
De que longínqua e solitária estrela
vieste iluminar-me o coração?

De que planeta ainda inominado?
De que mistério astral, corpo solar,
patagónia celeste, ignoto mar,
provém o teu perfil sereno e amado?

(Daniel Filipe)


Para saber mais sobre este poeta: http://www.astormentas.com/biografia.aspx?t=autor&id=Daniel+Filipe

blaise cendrars,moravagine

moravagine

Ó jovem, considera a secura
dos trágicos que se perdem em facécias. Não esqueças
que não existe alguma vez progresso
quando o coração petrifica. É
preciso que toda a ciência se
ordene à semelhança dum fruto que
se dependure na ponta de uma árvore
de carne e que amadureça
ao sol da paixão,
histologia, fotografia, campainha
eléctrica, telescópios, pássaros,
amperes, ferro de passar,
etc. – Tudo isto é para deslumbrar a porra da hu-
manidade.


O teu rosto é tão diferente
tão comovente molhado de
lágrimas e pronto a rebentar
de riso.





blaise cendrars,moravagine
trad. e pref. ruy belo
livros cotovia
1992

cecília meireles

MULHER AO ESPELHO

Hoje, que seja esta ou aquela,
pouco me importa.
Quero apenas parecer bela,
pois, seja qual for, estou morta.

Já fui loura, já fui morena,
já fui Margarida e Beatriz,
já fui Maria e Madalena.
Só não pude ser como quis.

Que mal fez essa cor fingida
do meu cabelo, e do meu rosto,
se é tudo tinta: o mundo, a vida,
o contentamento, o desgosto?

Por fora, serei como queira,
a moda, que vai me matando.
Que me levem pele e caveira
ao nada, não me importa quando.

Mas quem viu, tão dilacerados,
olhos, braços e sonhos seus,
e morreu pelos seus pecados,
falará com Deus.

Falará, coberta de luzes,
do alto penteado ao rubro artelho.
Porque uns expiram sobre cruzes,
outros, buscando-se no espelho.