sábado, 9 de janeiro de 2010

(Finlândia-1937-1983)



O menino estava a brincar na neve
Passei por ali com uma lâmina de gelo
na mão
escrevendo poemas no ar
O que estás a fazer? perguntou-me o menino
que brincava na neve
Escrevo poemas no ar
não vês?
Sim, vejo
mas isso vai gelar-te a mão
disse-me o menino que estava a brincar na neve


Pentti Saariskoski


(versão de LP a partir da tradução espanhola de Fernando J. Uriz, reproduzida em Afinidades afectivas - antologia de la poesia nórdica, prólogo, selecção e tradução de Francisco J. Uriz, Libros del Innombrable, Saragoça, 2002, p. 91).

dia de Outono- Rainer Maria Rilke







Senhor: é tempo. Foi muito grande o verão.
Nos relógios de sol estira as tuas sombras,
deixa que pelo prado os ventos vão.

Manda aos últimos frutos a espessura,
dá-lhes do sul ainda mais dois dias,
força a plenitude neles, vê se envias
ao vinho forte a última doçura.

Quem não tem casa agora, já não constrói nenhuma,
quem agora está só, vai ficar só, sombrio,
perder o sono, ler, escrever cartas a fio,
e a um ir e vir inquieto nas áleas se acostuma,
vagueando enquanto as folhas lá vão num rodopio.
Senhor, já é tempo; foi tão longo o Verão



Rainer Maria Rilke


Trad. de Vasco da Graça Moura


silêncio-Ivan Minatti





Silêncio
de salgueiro
sobre um braço de água parada,
silêncio
de nuvens imóveis,
silêncio
de caminhos intransitivos.
Solidão
de relvas de outono,
solidão
de pássaro sobre o pântano,
solidão
de datas insaciáveis.
Dor
de sol ensanguentado,
dor
de luz na penumbra,
dor
do não-vivido.



Ivan Minatti (1924-), tradução de Aleksandar Jovanovic.


A formiga-Inger Hagerup






Pequena?
Eu?
Nem pensar.
Tenho o tamanho perfeito.
Encho-me completamente a mim mesma
ao comprido e em largura,
de cima a baixo.
Por acaso és tu maior
do que tu mesmo?





Inger Hagerup


(versão de LP, a partir da tradução espanhola de Francisco J. Uriz, reproduzida em Afinidades afectivas - antologia de la poesía nórdica, prólogo, selecção e tradução de Francisco J. Uriz, Libros del Innombrable, Saragoça, 2002, p. 93).
In http://arspoetica-lp.blogspot.com

a Criação , de Haydn




Felizes estes homens que podiam escrever da Criação,
confiadamente compor-por mais dores que sofressem
enquanto humanos e como seres viventes-
tão jubilantes cânticos do criar do Mundo.

Era belo, era bom, era perfeito o Mundo.
É certo que o cantavam quando apenas criado,
e o par humano pisava sem pecado
o jardim paradisíaco.

Nós nem mesmo em momentos únicos,
raríssimos, epifânicos
-e não só por não crermos no pecado-,
não podemos.


Jorge de Sena


Uma pequenina luz





Uma pequenina luz bruxuleante
não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta
une toute petite lumière
just a little light
una picolla... em todas as línguas do mundo

uma pequena luz bruxuleante
brilhando incerta mas brilhando
aqui no meio de nós
entre o bafo quente da multidão
a ventania dos cerros e a brisa dos mares
e o sopro azedo dos que a não vêem
só a adivinham e raivosamente assopram.
Uma pequena luz
que vacila exacta
que bruxuleia firme
que não ilumina apenas brilha.

Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda.
Muda como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Brilhando indeflectível.
Silenciosa não crepita não consome não custa dinheiro.
Não é ela que custa dinheiro.
Não aquece também os que de frio se juntam.
Não ilumina também os rostos que se curvam.
Apenas brilha bruxuleia ondeia
indefectível próxima dourada.

Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.
Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não:
brilha.
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Apenas como elas.
Mas brilha.
Não na distância. Aqui
no meio de nós.
Brilha .


Jorge de Sena


poema errático



atiro o poema no alvo da tarde.
seta errante, atinge um pássaro em voo solo.
descaem o sol e a ave, desmaiam
os azuis do céu, o tempo é
um vazio e os versos, brancos.

recolho do chão o poema errático,
sem pressa e em silêncio afastamo-nos
do lugar, enquanto desce, sem espantos,
a noite negra com suas estrelas -
sempre indiferentes aos sucessos terrestres.



Walter Cabral de Moura


POESIA



"Poesia também é atenção, ou seja, a leitura em múltiplos planos da realidade à nossa volta, que é a verdade em imagens. E o poeta, que vai desfazendo e recompondo essas imagens, é também um mediador: entre o homens e o deus, entre o homem e o outro homem, entre o homem e as regras secretas da natureza.
(…)
A arte de hoje é em grandíssima parte imaginação, ou seja,contaminação caótica de elementos e de planos.
(…)
A atenção é o único caminho para o inexprimível, a única via para o mistério. De facto, está solidamente ancorada no real, e só por alusões ocultas no real se manifesta o mistério.
(…)
Pedir a alguém que nunca se distraia, que escape sem repouso aos equívocos da imaginação, à preguiça dos hábitos, à hipnose dos costumes, é pedir-lhe que viva na sua máxima forma. É pedir-lhe alguma coisa muito perto da santidade, num tempo que parece apenas perseguir, com cega fúria e glaciar sucesso, o divórcio total entre a mente humana e a faculdade da atenção que lhe pertence."



(Cristina Campo; Os Imperdoáveis- Tradução de José Colaço Barreiros; Assírio & Alvim)


Heinrich Heine



Tive uma pátria bela há muito tempo.
Os carvalhos pareciam
Tão altos e o aroma das violetas era tão doce.
Era um sonho.
Ela beijava-me em alemão, falava em alemão
(Custa acreditar
Como soava tão bem) a palavra: “Amo-te!”
Era um sonho.


Heinrich Heine (13 de Dezembro de 1797 – 17 de Fevereiro de 1856)

Carpe Diem





Não perguntes (é impiedade saber), ó Leucônoe, que fim para mim e para ti
Os deuses deram, nem vá consultar a sorte junto aos oráculos babilônicos.
O que tiver que acontecer suporta!
Seja muitos invernos, seja o último dado por Júpiter,
O qual agora agita o mar Tirrenum contra os rochedos da costa,
Sê sensata, purifica o vinho e deixa de ter grandes esperanças em um tempo tão breve.
Enquanto falamos, foge o invejoso tempo.
Colha os frutos do dia, acreditando muito pouco no amanhã.


Horácio Flacco - Ode XI


(tradução de Anderson Sousa da Silva)

Picasso




Picasso
erra
quando pinta
e erra
quando ama.

Mas quando erra,
erra
violenta e
generosamente,
erra
com exuberante
arrogância,
erra
como o touro erra
seu papel de vítima,
sangrando
quem, por muito amar, fere
e sai ovacionado
com banderilhas na carne.

Pintor do excesso
e exuberância,
Picasso
é extravagância.
Ele erra,
mas nele,
o erro
mais que erro
- é errância.


Affonso Romano de Sant'Anna

MysticaVisio



Vinha passando pelo meu caminho
Um vulto estranhamente iluminado...
Para onde eu ia, o vulto ia a meu lado
E desde então, não andei mais sozinho!
Abraçou-me, beijou-me com um carinho
Que a um ser divino não seria dado...
E eu me elevava, sendo assim beijado
Muito acima do humano borborinho!
Falou-me de ilusões e de luares,
Da tribo alegre que povoa os ares...
- Assombrava-me aquela claridade!
Mas através daquelas falsas luzes
Pude rever enfim todas as cruzes
Que têm pesado sobre a Humanidade!


Augusto dos Anjos


Pau d'Arco, 1905 (O Comércio, 15/09/1905)

"A Piaff"- Jorge de Sena






Esta voz que sabia fazer-se canalha e rouca,
ou docemente lírica e sentimental,
ou tumultuosamente gritada para as fúrias santas do "Ça ira",
ou apenas recitar meditativa, entoada dos sonhos perdidos,
dos amores de uma noite que deixam uma memória gloriosa,
e dos que só deixam, anos seguidos, amargura e um vazio ao lado
nas noites desesperadas da carne saudosa que se não conforma
de não ter tido plenamente a carne que a traiu,
esta voz persiste graciosa e sinistra, depois da morte,
como exactamente a vida que os outros continuam vivendo
ante os olhos que se fazem garganta e palavras
para dizerem não do que sempre viram mas do que adivinham
nesta sombra que se estende luminosa por dentro
das multidões solitárias que teimam em resistir
como melodias valsando suburbanas
nas vielas do amor
e do mundo.

Quem tinha assim a morte na sua voz
e na vida. Quem como ela perdeu
toda a alegria e toda a esperança
é que pode cantar com esta ciência
do desespero de ser-se um ser humano
entre os humanos que o são tão pouco.


terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Tesão




Consegues saborear o suor da flor do loendro
numa tarde de verão?
É que, sabes, o que me apetecia mesmo
era perder-me no despudor do seu vermelho
e roçar-me até cair na incandescência de suas pétalas



Miguel Godinho


o rosto evidente






Sempre o rosto da amada é transparente,
por ele passa o mundo, passa gente,
vão, por si sós, desde a boca do Verão
aos cabelos do Inverno
as árvores mais claras e as mais fortes.

Sempre o rosto da amada é infinito,
uma escada que sobe como um grito
e nunca pára, suspenso entre o dia e a noite,
no violento espaço que ocupam duas mãos,
todos os frutos, os peixes que navegam com o sol,
os dragões soltos pela Primavera
e mesmo o filho que um dia partiu e volta agora,
todo o corpo mordido pelas vorazes pulgas da miséria.

Sempre o rosto da amada é solidário
ao tempo e, rico e vário,
vai do vermelho ao rosa,
repousa no azul, salta no mar.
É varado de balas na Bolívia,
bombardeado no Vietname,
feito radiografia no Biafra.
Fiel é no entanto o rosto à vida
e tanto que palpita, ri e chora.

Sempre o rosto da amada é evidente.
Resta o rosto da amada,
o resto é no seu rosto que se sente.


SAN MARTINO DEL CARSO-Ungaretti



SAN MARTINO DEL CARSO
Valloncello dell'Albero Isolato, 27 de agosto de 1916

Destas casas
nada sobrou
excepto alguns
pedaços de muro

De quantos
me foram próximos
não sobrou
nem tanto

No coração porém
nenhuma cruz me falta

É o meu coração
o país mais destroçado


SAN MARTINO DEL CARSO
Valloncello dell'Albero Isolato il 27 agosto 1916

Di queste case
non è rimasto
che qualche
brandello di muro

Di tanti
che mi corrispondevano
non è rimasto
neppure tanto

Ma nel cuore
nessuna croce manca

È il mio cuore
il paese più straziato


disciplina

Disciplina

O trabalho começa ao romper do dia. Mas nós começamos,
um pouco antes do romper do dia, a reconhecer-nos
nas pessoas que passam na rua. Ao descobrir os raros
transeuntes, cada um sabe que está sozinho
e que tem sono - perdido no seu próprio sonho,
cada um sabe no entanto que com o dia abrirá os olhos.
Quando a manhã chega, encontra-nos estupefactos
a fixar o trabalho que agora começa.
Mas já não estamos sozinhos e ninguém mais tem sono
e pensamos com calma os pensamentos do dia
até que o sorriso vem. Com o regresso do sol
estamos todos convencidos. Mas às vezes um pensamento
menos claro - um esgar - surpreende-nos inesperadamente
e voltamos a olhar para tudo como antes do amanhecer.
A cidade clara assiste aos trabalhos e aos esgares.
Nada pode turvar a manhã. Tudo pode
acontecer e basta levantar a cabeça
do trabalho e olhar. Rapazes que se escaparam
e que ainda não fazem nada passam na rua
e alguns até correm. As árvores das avenidas
dão muita sombra e só falta a erva
entre as casas que assistem imóveis. São tantos
os que à beira-rio se despem ao sol.
A cidade permite-nos levantar a cabeça
para pensar estas coisas, e sabe bem que em seguida a baixamos.

Cesare Pavese
Trabalhar cansa
Livros Cotovia, 2008
Tradução De Carlos Leite

Os prazeres da leitura

Os prazeres da leitura

No seu leito de moribundo o meu pai lê
As memórias de Casanova.
Eu vejo a noite cair,
Algumas janelas que se iluminam na rua.
Numa delas uma jovem lê
Junto ao vidro.
Há muito tempo que não ergue os olhos,
Mesmo com a escuridão a chegar.

Enquanto ainda há um resto de luz,
Desejo que ela levante a cabeça,
E eu consiga ver-lhe a cara
Que já consigo imaginar,
Mas o livro deve ser intrigante.
Além disso, que silêncio,
Cada vez que volta uma página,
Consigo ouvir o meu pai, que também volta uma,
Como se eles lessem o mesmo livro.



Charles Simic
Previsão de Tempo para Utopia e Arredores
Assírio & Alvim, 2002

árvore

Árvore

Pertenço de fazer imagens. Opero por semelhanças.
Retiro semelhanças de pessoas com árvores
de pessoas com rãs
de pessoas com pedras
etc etc.

Retiro semelhanças de árvores comigo.

Não tenho habilidade pra clarezas.
Preciso de obter sabedoria vegetal.
(Sabedoria vegetal é receber com naturalidade uma rã no talo.)
E quando esteja apropriado para pedra, terei também
sabedoria mineral.


Manoel de Barros

O Poema

O Poema

Tudo está
no som. Uma canção.
Raramente uma canção. Deveria

ser uma canção - com
pormenores, vespas,
uma genciana - algo
imediato, tesouras

abertas, olhos
de mulher - centrífuga
ao despertar, centrípeta



William Carlos Williams
Antologia Breve
Assírio & Alvim, 1993
Tradução de José Agostinho Baptista