Era uma vez uma mulher que engomava palavras.
Sim, leram bem.
Ela passava palavras a ferro. Como? Era simples.
Abria o seu dicionário Cândido Figueiredo na letra pretendida e tirava a palavra para fora, com todo o cuidado. Esta tarefa revelava uma hermeneuta disfarçada de dona de casa. Porque ela passava as palavras a ferro para as esvaziar de polissemias e outras ambiguidades, procurando isolar o signo linguístico para o definir com a máxima clareza. Achava que na vida, as palavras deviam ser muito bem passadas a ferro antes de vestidas. Tinha começado por passar a ferro as palavras verdade, amor, medo, nuvem, gato e chocolate.
A palavra verdade tinha-se tornado invisível, a palavra gato tinha-se eriçado, a palavra chocolate tinha-se derretido e a palavra amor tinha suspirado.
A palavra nuvem tinha-se evaporado e a palavra Deus, inexplicavelmente, não tinha corpo e por isso não a tinha conseguido remover da folha de papel.
Tinha-me esquecido da palavra medo: essa tremia tanto, que o ferro não a conseguiu passar e desistiu.
No momento em que esta história aconteceu, tinha a palavra alegria em cima da tábua. Procurava, pela persistência, algo que apenas se consegue pelo acaso: descobrir o sentido da palavra alegria. Não uma minúscula alegria, disfarçada de paradigma da alegria, mas a alegria inicial e imaculada. Queria estrear a palavra alegria e vesti-la pela primeira vez. O pano que forrava a tábua era um enorme silêncio azul e a palavra alegria estava a dar realmente muito trabalho a engomar. Seria da gola do g, da manga comprida do l ou do remendo do i? Os bolsos dos dois “a” também pediam paciência e atenção.
E depois, tinha de se borrifar a palavra, não com gotas de água, mas com lágrimas.
Quando a começou a passar às avessas, revelou-se a tristeza. Lembrava um vestido de festa, sempre com rugas e memórias imperfeitas das suas anteriores alegrias. As palavras podem revelar-se bem mais teimosas do que um tecido, pois têm pregas acumuladas. Estava perdida nestes pensamentos quando ouviu um insistente toque de campainha. Esqueceu-se do ferro em cima da palavra alegria, enquanto atendia o belo homem que, sem saber, se tinha enganado no andar.
A palavra acabou por se queimar e o calor que devorava as letras iluminou o seu coração. Teve uma pequena epifania no seu quotidiano banal.
Só mais tarde, quando lhe cheirou a queimado, ficou a pensar se conseguiria remendar a alegria ou se a teria perdido para sempre.
Maria João Freitas
Texto originalmente publicado na revista nós do jornal i de 1 de Agosto, a convite do seu editor Pedro Rolo Duarte.
terça-feira, 6 de abril de 2010
A menina que engomava palavras
Publicada por M.A. à(s) 01:28
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