quarta-feira, 26 de agosto de 2009

ANÍBAL BEÇA- o que é a poesia



Anibal Beça (N.13 Set 1946/F. 25 de Agosto de 2009)



1) O que é poesia para você?

A poesia se há uma função para ela, é a de ter o poder de transformar o irreal no real e o real no imaginário. Tem o poder de humanizar um mundo que está zangado consigo. Este mundo em que vivemos em meio a tanta barbárie.
Creio no poder da poesia, que me dá razões para ver adiante e identificar um clarão de luz. Eu sou um trabalhador de metáforas, não um trabalhador de símbolos.
Eu considero a poesia uma medicina espiritual. Posso criar com palavras o que não encontro na realidade. É uma tremenda ilusão, mas positiva: não tenho outra ferramenta com que encontrar um sentido para minha vida ou para a vida daqueles do meu chão (vide “Filhos da Várzea”). Tenho o poder de outorgar-lhes beleza por meio de palavras e plasmar um mundo belo expressando também sua situação. No feio também há beleza. Tudo é matéria para o poema.

2) O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?

Ler muita poesia. No café, no almoço, no jantar. Ler sobre poesia. Imitar os mestres num primeiro momento. Depois saber cortar o umbigo. Poderia sugerir algumas leituras como pré-requisito: A poética de Aristóteles, Poesia de Massaud Moisés, As Vanguardas e seus manifestos de Gilberto Mendonça Teles, Poesia experiência de Mario Faustino, Poesia de T.S. Eliot, ABC da literatura e poesia Ezra Pound, Cartas a um jovem poeta de Rainer Maria Rilke, “Itinerário de Pasárgada” de Manuel Bandeira, entre muitos outros.

3) Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que destas escolhas?

Mario Quintana, Cecília Meireles, Manuel Bandeira e Jorge de Lima. O primeiro, pela descoberta da poesia, pela criatividade e por saber manejar com o mínimo um vasto universo poético. O segundo, pela musicalidade, pelo ritmo do verso, aliados às imagens, às ideias e pensamentos de modo singular O terceiro, pelo lirismo do cotidiano, das coisas banais, tratados na simplicidade com maestria. E por último, não nessa condição, senão o primeiro dos primeiros, pela genialidade.

"O modernismo e três de seus poetas", "Razão do poema", "A volta do poema", "O fantasma romântico" ensaios críticos de José Guilherme Merquior; "Signo e Sibila" e os dois volumes de "Ensaios escolhidos" de Ivan Junqueira e "Poesia e desordem", "Romantismo", "João Cabral - a poesia de menos" e "Escritos sobre poesia e alguma ficção", de Antonio Carlos Secchin. Pelo rigor, pela atualidade, pela discussão de idéias centradas na modernidade sem perder o seu vínculo com a tradição.


ANIBAL BEÇA é o nome literário de ANIBAL AUGUSTO FERRO DE MADUREIRA BEÇA NETO, poeta, tradutor, compositor, teatrólogo e jornalista, nasceu em Manaus, na Amazônia brasileira, em 13 de setembro de 1946. Trabalhou como repórter, redator e editor, em todos os jornais de Manaus. Foi diretor de produção da TV Cultura do Amazonas, Conselheiro de Cultura, consultor da Secretaria de Cultura do Amazonas. Vice-presidente da UBE-AM União Brasileira de Escritores, presidente da ONG “Gens da Selva”, onde atualmente exerce o cargo de vice-presidente, bem como de presidente do Sindicato de Escritores do Estado do Amazonas e presidente do Conselho Municipal de Cultura;.é membro da Academia Amazonense de Letras. Neste ano de 2009, completa 43 anos de atividade literária e 45 de atuação na música popular, tendo vencido inúmeros festivais de MPB por todo o Brasil. Em 1994 recebeu o Prêmio Nacional Nestlé, em sua sexta versão, com o livro "Suíte para os Habitantes da Noite", concorrendo com 7.038 livros de todo o Brasil.
Ao lado de seus afazeres literários e musicais, tem se destacado em prol da causa da integração cultural latino-americana, seja traduzindo escritores de países vizinhos, ou participando e organizando festivais e encontros de poesia. Representou o Brasil no IX Festival Internacional de Poesia de Medellín, no III Encontro Ulrika de escritores em Bogotá e no VI Encuentro Internacional de Escritores de Monterrey. Sua produção poética tem sido contemplada em importantes revistas: “Poesia Sempre” (Brasil), “Casa de las Américas” (Cuba), “Prometeo” (Colômbia), “Ulrika” (Colômbia), “Revista Armas & Letras” da Universidade de Nuevo León ( México), “Tinta Seca”( México), “Lectura” (Argentina), “Frogpond Haiku”( Estados Unidos), “Amazonian Literary Review” (Estados Unidos), “Mississippi review” (Estados Unidos).

LIVROS PUBLICADOS: Convite Frugal, Edições Governo do Amazonas (1966), Filhos da Várzea, Editora Madrugada (1984), Hora Nua, Editora Madrugada (1984), Noite Desmedida, Editora Madrugada (1987), Mínima Fratura, Editora Madrugada (1987), Quem foi ao vento, perdeu o assento, Edições Muraquitã (teatro, 1988), Marupiara – Antologia de novos poetas do Amazonas, Edições Governo do Amazonas (organizador, 1989), Suíte para os habitantes da noite, Paz e Terra (1995), Ter/na Colheita, Sette Letras (1999), Banda da Asa – poemas reunidos, Sette Letras, (1999), Ter/na Colheita, Editora Valer (2006, segunda edição), Noite Desmedida, Editora Valer (2006, segunda edição), e Folhas da Selva, Editora Valer (2006). Chá das quatro, Editora Valer (2006) Águas de Belém, Editora Muhraida(2006); Águas de Manaus, Editora Muhraida( 2006). PALAVRA PARELHA reunindo os livros Cinza dos Minutos, Chuva de Fogo, Lâmina aguda, Cantata de cabeceira e Palavra parelha, Edições Galo Branco, Rio, 2008.

CD – MÚSICA: ANIBAL BEÇA – O Poeta solta a voz (2001) e DUAS ÁGUAS – 2006
http://sambaquis.blogspot.com



Anibal Beça N.13 Set 1946/F. 25 de Agosto de 2009


Érico Nogueira



TRÊS POEMAS de ÉRICO NOGUEIRA



DILÚCULO

Um lume chega – ou vem do alto, ou vem de baixo,
a treva, devagar, expele um novo dia;
sorriem bocas, mas num outro pasto,
que neste não há boca que sorria.

A folha verde desprendeu-se do salgueiro,
vagou luzindo pelo vento largo:
secou a folha logo, por inteiro,
o lume naufragou, salgado como um barco.


GLOSA DE MOTE ALHEIO


Sem bússola, sem mapa ou astrolábio
com que se ache, amigo, a tua estrela,
apruma o pinho, põe no mastro a ave
que te pareça bem ali, de vela;
daquela funda treva não se sabe
como voltar, a altura não se anela:
te resta o mar pisado e repisado,
pescar, talvez, o que já foi pescado.

Essa mão ergue, amigo, num instante,
outra mão em seguida o arruína:
por isso não há rota, e o navegante
perde o que teve, ganha o que não tinha,
e sem saber se é quartzo, se diamante,
lapida o que lhe coube na partilha;
de um torso sem os membros quem cinzela
faz ave se calhar, destino, estela.


AS QUATRO ESTAÇÕES


1.
A noite, e tudo o que é escuro e cíclico
e liquefaz-se ao tempo do farol,
está predita em todos os testículos,
nas orquídeas que chegam com a estação,
embora não vejamos. Só o ouvido,
que pinça o inominado, pinça, então,
do rio a cuja beira estive, estou,
o ar da bolha, da que morre o grito.
Eu não ouvia bem naquele tempo
quando meu olho, então recém-aberto,
se iluminava, fixo no desenho
que as folhas têm olhadas mais de perto;
tanto pior, tanto mais fria a noite
de quem vai nu ao mar, vai nu ao monte.

2.
a João Ângelo

Durante o átimo em que se aniquilam
dos corpos toda sombra e traço dúbio,
quando o globo é mais túrgido e mais nítido,
tem mais saliva a língua, que mergulha,
é quando o espinho, antes imprevisto
em fruta incandescente assim, e úmida,
entala na garganta e não afunda
se não levar quem mergulhou consigo.
Eu cuidava que as águas eram rasas,
e que corais nem pérolas havia
senão os ossos que à maré mesquinha
apetecia abandonar na praia:
lambido o fogo, vi-me em água densa
abrindo a ostra ao fogo nada infensa.

3.
Amarelece o ar, a terra, a água;
o fogo amadurece e, doce, azula;
se incide sobre as pedras na penumbra,
ele descobre-lhes a face exata
e delas vai fazendo busto e estátua:
tendo subido aqui, a esta altura,
indiferente sob estio ou chuva,
vejo que pedras tenho só, talhadas,
mas pedras mesmo assim. Pergunto ao fogo
de que me vale a mim a galeria,
se em breve escorrerei ao negro poço
e passarei: “De nada valeria,
se a cerejeira não florisse agora
sob o vento que passa e a luz que doura.”

4.
E a nuvem torna, torna enfim o vidro
de que se enche aquele mar imóvel
onde o cardume acaba, e o rio que corre;
o louro seco, a taça já sem vinho
e a neve elementar no céu friíssimo
parecem proclamar que se dissolve
o quanto pelos lábios dança e escorre:
se o galho esplende, pesa sobre o abismo.
Neste penhasco, na aridez da pedra,
me apronto agora para ser levado,
para voltar enfim a ser areia,
e penso em tudo, e olho a todo lado;
não sei se é luz ou não o que há no gelo,
mas sei que é calmo, que não vou temê-lo.

+

Érico Nogueira nasceu em Bragança Paulista em 1979. Poeta e estudioso da Antigüidade greco-latina, ganhou o “Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura” de 2008 com O Livro de Scardanelli (É Realizações, 2008), de que selecionamos os poemas aqui publicados. Vive em São Paulo, onde trabalha como editor (Dicta & Contradicta) e professor de línguas e literaturas clássicas (Instituto Internacional de Ciências Sociais).


Haroldo Campos



Haroldo de Campos

GALAXIAS ( I )

e começo aqui e meço aqui este começo e recomeço e remeço e arremesso
e aqui me meço quando se vive sob a espécie da viagem o que importa
não é a viagem mas o começo da por isso meço por isso começo escrever
mil páginas escrever milumapáginas para acabar com a escritura para
começar com a escritura para acabarcomeçar com a escritura por isso
recomeço por isso arremeço por isso teço escrever sobre escrever é
o futuro do escrever sobrescrevo sobrescravo em milumanoites miluma-
páginas ou uma página em uma noite que é o mesmo noites e páginas
mesmam ensimesmam onde o fim é o comêço onde escrever sobre o escrever
é não escrever sobre não escrever e por isso começo descomeço pelo
descomêço desconheço e me teço um livro onde tudo seja fortuito e
forçoso um livro onde tudo seja não esteja um umbigodomundolivro
um umbigodolivromundo um livro de viagem onde a viagem seja o livro
o ser do livro é a viagem por isso começo pois a viagem é o comêço
e volto e revolto pois na volta recomeço reconheço remeço um livro
é o conteúdo do livro e cada página de um livro é o conteúdo do livro
e cada linha de uma página e cada palavra de uma linha é o conteúdo
da palavra da linha da página do livro um livro ensaia o livro
todo livro é um livro de ensaio de ensaios do livro por isso o fim-
comêço começa e fina recomeça e refina e se afina o fim no funil do
comêço afunila o comêço no fuzil do fim no fim do fim recomeça o
recomêço refina o refino do fum e onde fina começa e se apressa e
regressa e retece há milumaestórias na mínima unha de estória por
isso não conto por isso não canto por isso a nãoestória me desconta
ou me descanta o avesso da estória que pode ser escória que pode
ser cárie que pode ser estória tudo depende da hora tudo depende
da glória tudo depende de embora e nada e néris e reles e nemnada
de nada e nures de néris de reles de ralo de raro e nacos de necas
e nanjas de nullus e nures de nenhures e nesgas de nulla res e
nenhumzinho de nemnada nunca pode ser tudo pode ser todo pode ser total
tudossomado todo somassuma de tudo suma somatória do assomo do assombro
e aqui me meço e começo e me projeto eco do comêço eco do eco de um
começo em eco no soco de um comêço em eco no oco de um soco
no osso e aqui ou além ou aquém ou láacolá ou em toda parte ou em
nenhuma parte ou mais além ou menos aquém ou mais adiante ou menos atrás
ou avante ou paravante ou à ré ou a raso ou a rés começo re começo
rés começo raso começo que a unha-de-fome da estória não me come
não me consome não me doma não me redoma pois no osso do comêço só
conheço o osso o osso buço do comêço a bossa do comêço onde é viagem
onde a viagem é maravilha de tornaviagem é tornassol viagem de maravilha
onde a migalha a maravilha a apara é maravilha é vanilla é vigília
é cintila de centelha é favilha de fábula é lumínula de nada e descanto
a fábula e desconto as fadas e conto as favas pois começo a fala


* Trecho do poema Galáxias de Haroldo de Campos *

Haroldo Eurico Browne de Campos
seu primeiro livro é de 1949 poeta de vasta, profunda e sofisticada cultura, poliglota, aprendeu "os primeiros" idiomas no Colégio São Bento, como o latin, inglês, espanhol e francês., O Auto do Possesso quando, ao lado de Décio Pignatari, participava do Clube de Poesia. em 1952, Décio, Haroldo e seu irmão Augusto de Campos rompem com o Clube, por divergirem quanto ao conservadorismo predominante entre os poetas, conhecidos como Geração de 45". a crença em uma "crise no verso" o levou ao experimentalismo, à busca de novas formas de estruturação e sintaxe, em curtos poemas-objeto ou longos poemas em prosa.fundam, então, o grupo Noigandres, passando a publicar poemas na revista de mesmo título. nos anos seguintes defendeu as teses que levariam os três a inaugurar em 1956 o movimento concretismo, ao qual manteve-se fiel até o ano de 1963, quando inaugura um trajeto particular, centrando suas atenções no projeto do livro-poema "Galáxias". doutorou-se pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, sob orientação de Antônio Cândido. considerado o "mais barroco" dos concretistas, em 1999, o Prêmio Jabuti de poesia foi conferido para seu livro "Crisantempo: No Espaço Curvo Nasce Um" (1998). foi professor da PUC-SP, bem como na Universidade do Texas, em Austin. dirigiu até o final de sua vida a coleção Signos da Editora Perspectiva. "Transcriou" em português poemas de autores como Homero, Dante, Mallarmé, Goethe, Mayakovski, além de textos bíblicos, como o Gênesis e o Eclesiastes. com mais de 30 livros publicados, como "A Máquina do Mundo Repensada", último livro publicado em vida, onde declara já em seu título o diálogo com A Divina Comédia (Dante), Os Lusíadas (Camões), produziu numerosos e fundamentais ensaios de teoria literária, entre eles A Arte no Horizonte do Provável (1969).


Aníbal Beça



ÁGUAS DE MANAUS

Sou apenas um homem na paisagem
na tarde de silêncio e de mormaço.
Só o vento me anima na passagem
deixando no meu rosto o seu compasso.


Sou apenas um poeta na viagem
olhando pelo olhar dos olhos baços
a distância que abriga vaga margem
das águas da saudade nos meus passos.


Bem me quis esta vila que me habita
e bem me dei de encanto nos seus becos.
Contudo, não cantei sua desdita.

Dessa Manaus distante, restam crespas
pegadas, chão de rugas: minha pista
banhada nos banzeiros do Rio Negro



Aníbal Beça -N.13 Set 1946/F. 25 de Agosto de 2009




Anibal Beça. Poeta, tradutor, compositor, músico, teatrólogo e jornalista, nasceu em Manaus, na Amazônia brasileira, em 1946. Publicou Convite Frugal (1966), Filhos da várzea (Manaus: Ed. Madrugada, 1984 — abrigando o livro Hora nua); Marupiara — antologia de novos poetas do Amazonas (organizador. Manaus: Ed. Governo do Estado do Amazonas, 1985); Quem foi ao vento, perdeu o assento (teatro. Manaus: Ed. SEMEC, 1986); Itinerário poético da noite desmedida à mínima fratura (Manaus: Ed. Madrugada, 1987); Banda da asa (poesia reunida. Rio de Janeiro, Ed. 7Letras, 1998 — contendo o livro inédito Ter/na colheita); Filhos da várzea (2ª edição. Manaus: Editora Valer, 2002); Folhas da selva (Manaus: Editora Valer, 2006); Noite desmedida e Ter/na colheita, 2ª edição (Manaus: Editora Valer 2006); Palavra Parelha (poesia brasileira, Manaus, Edições Galo Branco, 2008. Site oficial: http://www.portalamazonia.com/anibal
__________________________________________________

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Hal Sirowitz- dois poemas


MIGALHAS

Não leves comida para o quarto,
disse a mãe. Vais ter mais bichos.
Eles dependem de pessoas como tu.
De outra forma, morreriam à fome.
Mas quem é que queres fazer feliz,
a tua mãe ou um monte de formigas?
O que é que elas fizeram por ti?
Nada. Elas não têm sentimentos.
Elas vão comer os teus doces. Mesmo assim
tráta-las melhor do que me tratas a mim.
Estás sempre a alimentá-las.
Mas nunca me ofereces nada a mim.

DECLARAÇÃO

Se o John F. Kennedy consegue levar a sua mãe
à inauguração, disse a mãe, & não se sente
envergonhado quando ela põe o braço à sua volta,
então porque é que tu não queres ser visto
comigo na rua? Ele é o Chefe Máximo
de todo o país, & tu nem sequer mandas
no teu quarto. Tenho de ser eu a limpá-lo por ti.
Nunca ouvi ninguém a chamar-lhe maricas
por andar com a mãe, & mesmo se
alguém chamasse, isso não o incomodava, porque
ele sabe que não é verdade. Nunca me mandaste
embora quando eu te estava a mudar as fraldas.
As mães são o grupo mais injustiçado do país.
Assim que os filhos se tornam suficientemente crescidos,
fingem que já não nos conhecem.

(poemas de Hal Sirowitz)
traduzidos por José Luís Peixoto

o poeta António Maria Lisboa

O Poeta precisamente só o será quando a sua imaginação for além da imaginação do Universo.

(António Maria Lisboa)

RUI PIRES CABRAL

Hoje, por exemplo, Oráculos de Cabeceira, de Rui Pires Cabral, onde logo na primeira página se lê assim:



“I felt that it was all unreal.”



Chega ao fim do dia

a hora mais lenta, quando o céu

é vago e as luzes se acendem

no prédio da frente.



Vemo-los por vezes

dentro das janelas, vultos

delicados como miniaturas

ou meros reflexos que passam

nos vidros.



Alguns prosseguem encargos

de sombra, outros detêm-se

a olhar a rua, no gesto

a expressão do seu puro

enigma.



E são como provas

de coisa nenhuma. Se acaso

nos fitam, parecem dizer:

a morte não será decerto

mais estranha que a vida.

Ovídio (romano.s.I d.C)



Se são muito fortes as cadeias que te seguram, dir-te-ei apenas que deves fazer grandes viagens e fugir para muito longe. Hás-de chorar; os teus lábios hão-de pronunciar o nome da bela que deixaste e, a meio caminho, os teus pés recusar-se - ão a caminhar. Mas quanto menos vontade tenhas de partir mais te deves esforçar por fazê-lo. Insiste e força os pés a caminhar contra vontade. E não peças que chova; não respeites o sábado, como acontece com os estrangeiros, nem Alia, famoso pelo desastre que teve. Não perguntes quantas milhas já fizeste, mas apenas quantas te faltam, nem inventes pretextos para ficares em terras próximas. Em vez de contares os dias ou de fazeres rodeios para descobrires o caminho de regresso a Roma, foge; até hoje, a única coisa que protegeu os Partos dos seus inimigos foi a fuga.


Ovídio,Arte de amar

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Herman de Coninck (poeta de expressão neerlandesa-1044-1997)




Chegou com a alegria desajeitada de uma camponesa
de quatro anos. Tem o olhar ríspido e coquette
da minha mãe de 75 anos aos quatro.
E quando essa mãe morreu, tentou
ser tão sensata que a sua cabeça
se inclinava enquanto dizia: «quando eu
morrer, hei-de chorar imenso, sabes.»

Não precisa de pai a não ser para as bonecas.
Como é que hei-de fazer, pergunto. «Sentares-te aqui
na cadeira, e leres o jornal,», disse ela. Brinca à vida,
uma horinha, e depois a outra coisa.
Ela ensina-me o que é a poesia: de um nevão
seguir apenas um floco. Com ela aquilo que quero
é sempre possível: que seja hoje.•



Herman de Coninck (poeta de expressão neerlandesa-1044-1997)


Os Hectares da Memória

Tradução colectiva revista, completada
e apresentada por Nuno Júdice

alberto pimenta- mas que memória




[MAS QUE MEMÓRIA]


mas que memória
podemos ter
de nós?
e de qual tempo?

deste tempo exterior
em que
depois de criados
e decifrados
os consensuais alfabetos
da exploração
da vida
chegou o projecto Stardust
com material inalterado
desde o início
do sistema solar,
que não nos diz
se então já havia actos de amor
e portanto
não nos diz nada (?)

é preciso emparedar o demente
que propõe que podia haver
o que não há.
e outros
como ele.

acham-se todos
cada vez mais
perdidos
no meio do próprio ruído,
carregando
males
e mails
como se a diferença
entre ambos estes termos
não fosse
apenas o espaço
de uma ou outra letra,
e a ressonância
da voz do homem
que treme fora como a terra dentro.


ALBERTO PIMENTA


Imitação de Ovídio, & ect, Lisboa, 2006.

Nuno Dempster



Tenho de repensar a minha vida,
disse-me, e acrescentou:
ser-se feliz é não ter esperança.
Lembrei-lhe o sol e o mar
que hoje vejo sozinho aqui na praia
e respondi não há quem viva assim,
ainda que a esperança não exista.
Mas vi-a olhar o céu,
dizendo que sorte é termos a Lua
- rege-nos as marés e o corpo -,
e que amava o seu rosto claro,
um espelho de luz na noite
onde se olhava já sem sonhos.
Nem suspeitou ser isso a esperança,
a lua e os espelhos sem mais nada,
a música que ouvíramos
e o mar além, atrás das dunas.

Nuno Dempster, in Dispersão - Poesia Reunida
ed, Sempre-em-Pé, Águas Santas, 2008

João Melo



Amada amada
porque suplicaste
que eu lançasse o meu esperma
contra o negro capim?
Avisaste-me é certo
que apenas te poderias dar
quando a lua furtiva se ocultasse
atrás das montanhas
Mas por um instante
imaginei loucamente
que fosse um acesso de romantismo.

Amada amada
porque suplicaste
que eu lançasse o meu esperma
contra o negro capim?
Avisaste-me é certo
que apenas te poderias dar
quando a lua furtiva se ocultasse
atrás das montanhas
Mas por um instante
imaginei loucamente
que fosse um acesso de romantismo.

João Melo

Rabia’a Al-Dawwya - de tantos ardores




De tantos ardores e apegos imoderados
faço correr fontes dos meus olhos que choram
e nenhuma lágrima minha voltou a subir.
Minha união com ele não dura
e meu olho ferido não dorme.

Rabia’a Al-Dawwya

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Alexandre O'Neill- No Reino da Dinamarca



Ao lado do homem vou crescendo


Defendo-me da morte quando dou
Meu corpo ao seu desejo violento
E lhe devoro o corpo lentamente


Mesa dos sonhos no meu corpo vivem
Todas as formas e começam
Todas as vidas

Ao lado do homem vou crescendo

E defendo-me da morte povoando
De novos sonhos a vida.

(Alexandre O'Neill- No Reino da Dinamarca)

Lília Silvestre Chaves - são duas luas



são duas luas sem violoncelo
sem o resplendor dos anjos
ou dos desesperados
apenas mais uma em noite de vidro
silente de músicos
duas luas místicas
- pálpebras sem mistério ou verdade

mas do sorvo dessas luas
nasceu o poema
sem documento ou fonte

apenas a luz sonâmbula da vida

Lilia Silvestre Chaves

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Rabi’a Al - Adawwya

Rabi’a
(perguntaram),
de onde vens?
Do outro mundo.
E aonde vais?
Ao outro mundo.
E que fazes neste mundo?
Entretenho-me.
De que modo te entreténs?
Como o pão deste mundo
e cumpro as ordens do outro.


Rabi’a Al - Adawwya

ÀLEX SUSANNA- nocturno

NOCTURNO

Na sombra qualquer passo significa.
Fecha-te e escuta:
verás surgir na obscuridade
as brasas da memória,
a gotejar de um deserto,
o cheiro húmido.
Fecha-te e escuta
e não esperes nada,
tudo te será dado:
na sombra os triunfos
contam-se por clarões,
e o clarão basta
no fundo do coração
para chegar a compreender.

ÀLEX SUSANNA


(de Palácio de Inverno, 1987, in Os Anéis do Tempo, tradução de Egito Gonçalves, Limiar, 1995 - os olhos e a memória)

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

o amor é um cão do inferno - Charles Bukowski


pelas avenidas
as pessoas sofrem;
elas sofrem a dormir, elas acordam
a sofrer;
até os edifícios sofrem,
as pontes
as flores sofrem
e não há salvação –
o sofrimento senta-se
o sofrimento paira
o sofrimento espera
o sofrimento é.

não perguntem por que há
bêbados
drogados
suicidas

a música é má
e o amor
e o argumento:

agora este lugar
enquanto escrevo isto

ou enquanto lês isto:
agora é o teu lugar.
versão de manuel a. domingos às 22:57
*
Um poema de amor

todas as mulheres
todos os seus beijos as
diferentes maneiras de amar e
falar e exigir.

as suas orelhas todas têm
orelhas e
gargantas e vestidos
e sapatos e
automóveis e ex-
-maridos.

a maioria
das mulheres é muito
quente e lembram-me torradas
com manteiga enquanto a manteiga
se derrete
no meio.

há um certo olhar no
olhar delas: elas já foram
possuídas elas já foram
enganadas. na realidade não sei o que
fazer por
elas.

sou
uma boa picha um bom
ouvinte
mas nunca aprendi a
dançar – estava ocupado
com coisas maiores.

mas gostei das diferentes
camas
fumar cigarros
olhar para os
tectos. não era possessivo nem
injusto. Somente
um estudante.

eu sei que todas têm
pezinhos e vão descalças pelo chão enquanto
lhes vejo os tímidos cus no
escuro. sei que gostam de mim, algumas até
me amam
mas eu amo muito
poucas.

algumas dão-me laranjas e vitaminas;
outras falam baixinho da
infância dos pais e das
paisagens; algumas são quase
loucas mas nenhuma delas é sem qualquer
motivo; algumas amam
bem, outras nem por
isso; a melhor na cama nem sempre é
a melhor noutras
situações; cada uma tem o seu limite como eu
tenho os meus limites e todos
aprendemos isso
rapidamente.

todas as mulheres todas as
mulheres todos os
quartos
tapetes e
fotografias e
cortinados, é
parecido como uma igreja
só que às vezes ouvem-se
risos.

as orelhas os
braços os
cotovelos os olhos
que procuram, a ternura e
a espera eu fiquei
preso eu fiquei
preso.
versão de manuel a. domingos às 22:45
montanhas mongóis brilham na luz
montanhas mongóis brilham na luz,
ouço o pulsar do sol,
o tigre é o mesmo para todos nós
e alto oh
bem alto no ramo
o rouxinol
canta.
versão de manuel a. domingos às 10:24
*
não se aprende nada com os clássicos
não durmo
há 3 noites
e 3 dias
e os meus olhos estão mais
vermelhos do que brancos;
rio-me ao
espelho,
e estive a ouvir
o tic-tac
do relógio
e o gás
do meu aquecedor
tem um cheiro
quente
e pesado, junto
com o som
dos carros,
carros presos
como ornamentos
à minha cabeça, mas
eu li
os clássicos
e no meu sofá
está uma puta
encharcada em vinho
que ouviu pela
primeira vez
a 9ª de Beethoven,
e educadamente
adormeceu
aborrecida.

pensa, meu velho, disse-me ela,
com a tua inteligência
ainda és capaz de ser o primeiro homem
a acasalar
na lua.
versão de manuel a. domingos às 10:22


adeus

adeus Hemingway adeus Céline (morrestes no mesmo dia)
adeus Saroyan adeus meu bom Henry Miller adeusTennessee
Williams adeus cães mortos nas auto-estradas adeus todo o
amor que nunca foi adeus Ezra é triste é sempre triste quando
alguém dá e depois alguém tira eu compreendo
eu compreendo e dou-te o meu carro e o meu isqueiro
e o meu cálice de prata e o telhado que afasta
a maior parte da chuva adeus Hemigway adeus Céline adeus
Saroyan adeus meu bom Henry Miller adeus Camus adeus Gorky
adeus equilibrista que cais enquanto rostos sem expressão
olham para cima depois para baixo e depois afastam a cara
zanguem-se com o sol, disse Jeffers, adeus Jeffers, eu só posso pensar
que a morte de gente boa e de gente má é igualmente triste
adeus D.H. Lawrence adeus à raposa dos meus sonhos e
ao telefone
foi mais difícil do que esperava
adeus Two Ton Tony adeus Flying Circus
fizeram o suficiente adeus Tennessee minha bicha alcoólica
esta noite estou a beber uma garrafa a mais de vinho
à tua saúde.
versão de manuel a. domingos às 19:20

depois de ler a imortal literatura do mundo

as crianças nas escolas
fecham ferozmente
os seus pesados
livros

e correm
sempre contentes
para o
pátio

ou

ainda mais
alarmante –

para as
suas
horríveis
casas.

não há nada mais
deprimente
do que
a imortalidade.
versão de manuel a. domingos às 19:01

o início

quando as mulheres deixarem
de levar espelhos
para todos os lados
talvez nessa altura
elas possam falar comigo
sobre
libertação.
versão de manuel a. domingos às 18:54

jogo do empurra


na verdade uma das coisas mais
terríveis é
estar na cama
noite após noite
com uma mulher que já não
queres comer.

elas envelhecem, deixam de ser
bonitas – elas até começam
a ressonar, a perder
sentido de humor.

às vezes, na cama, viraste para um lado,
os teus pés tocam os dela –
meu Deus, que horror! –
e a noite lá fora
para lá das cortinas
selando-vos aos dois
no
túmulo.

e de manhã vão à
casa de banho, cruzam-se no corredor, falam,
dizem coisas sem importância; fritam-se ovos, arrancam
motores.

mas vendo bem as coisas
estão 2 estranhos
a enfardar torradas
a queimar a cabeça entorpecida e as tripas com
café.

é assim em 10 milhões de casas
por toda a América –
vidas fora de prazo impelidas umas contra
as outras
e sem hipótese de
fuga.

tu entras no carro
e conduzes até ao trabalho
e lá há mais estranhos, a maioria deles
esposas e maridos de
alguém, e para além do sufoco do trabalho, eles
engatam e riem e apalpam, às vezes tentam
uma queca rápida algures –
não pode ser em casa –
e depois
conduzem de regresso a casa
e esperam pelo Natal ou pelo Dia do Trabalhador ou
pelo Domingo ou
por algo.
versão de manuel a. domingos às 11:00
minha


Ela repousa como uma coisa
Eu consigo sentir o grande e vasto vazio
da sua cabeça.
Mas ela está viva. Ela geme e
coça o nariz e
puxa o cobertor.
Em breve irei beijá-la boa noite
e iremos dormir.
e lá longe fica a Escócia
e debaixo de terra as
toupeiras correm.
Ouço motores na noite
e pelo céu uma mão
branca acena:
boa noite, amor, boa noite.
versão de manuel a. domingos às 12:54
certas coisas


certas coisas que nós suportamos
não nos dizem respeito,
e nós lidamos com elas
devido ao tédio ou ao medo ou ao dinheiro
ou à pouca inteligência;
a nossa vontade e a nossa esperança
cada vez mais pequenas,
tão pequenas que nem as suportamos,
nós agarramo-nos ao Ideal
mas perdemos o Rumo:
muita parra e pouca uva,
e vemos nomes que antes significavam sabedoria,
como sinais em cidades fantasma,
onde só as campas são reais.
versão de manuel a. domingos às 12:53
caixote do lixo


um cheiro intenso a fraqueza e crueldade
que fazemos com tudo isto?
as entranhas no caixote…
junto às latas de cerveja
aninhadas como um gato;
a vida não consegue ser menos ridícula
que a chuva
e enquanto apanho o elevador
para o 3º
passo pelo sr. Silva
junto à entrada
pálido como um morto
mas a andar por aí
a comprar doces e porcarias
e a enviar cartões de Natal;
e ao abrir a porta do meu quarto
uma luz suja turva-me a vista
garrafas caem
e uma voz diz
por que razão são os teus poemas
tão pessoais?
versão de manuel a. domingos às 12:51
os tubarões


os tubarões batem à minha porta
e entram e pedem favores;
a maneira como eles se sentam nas cadeiras
olhando em redor,
e pedem seja o que for:
lume, ar, dinheiro,
tudo o que conseguem –
cerveja, cigarros, cinquenta cêntimos, um euro,
cinco, dez,
tudo isto como se a minha sobrevivência estivesse assegurada,
como se o meu tempo não valesse nada
e a presença deles sim.

bem, todos nós temos os nossos tubarões, tenho a certeza,
e só há uma maneira de nos livrarmos deles
antes que nos mordam e comam até à morte –
deixar de os alimentar; eles encontrarão
alguém; tu alimentaste-os
das últimas doze vezes –
agora é tempo de voltarem
ao mar.
versão de manuel a. domingos às 10:57
e a luas e as estrelas e o mundo:


longas caminhadas à
noite –
isso é que é bom
para a
alma:
espreitar pelas janelas
ver mulheres casadas
cansadas
a tentar enxotar
os seus loucos
e bêbados
maridos.
versão de manuel a. domingos às 10:57
gelo para as águias


Estou sempre a lembrar-me dos cavalos
sob o luar
Estou sempre a lembrar-me de dar aos cavalos
açúcar
pequenos cubos de açúcar
parecidos com gelo,
e eles tinham cabeças como
águias
cabeças lisas que podiam morder
mas não mordiam.

Os cavalos eram mais reais do que
o meu pai
mais reais do que Deus
e eles podiam ter pisado os meus
pés mas não fizeram
podiam ter feito toda a espécie de horrores
mas não fizeram.

Eu tinha quase 5
mas ainda não me esqueci:
ó meu deus eles eram grandes e bons
com aquelas húmidas línguas vermelhas
a saírem da alma.
versão de manuel a. domingos às 10:56

um poema é uma cidade

um poema é uma cidade cheia de ruas e pregões
cheia de santos, heróis, pedintes, loucos,
cheia de banalidade e bebida,
cheia de chuva e trovões e períodos de
seca, um poema é uma cidade em guerra,
um poema é uma cidade a perguntar ao tempo porquê,
um poema é uma cidade a arder,
um poema é uma cidade cercada
com os barbeiros cheios de bêbados cínicos,
um poema é uma cidade onde Deus anda nu
pelas ruas como Lady Godiva,
onde cães ladram durante a noite, e afugentam
a bandeira; um poema é uma cidade de poetas,
muitos deles iguais uns aos outros
e invejosos e amargurados…
um poema é esta cidade agora,
a 50km de lugar nenhum,
às 9:09 da manhã,
o sabor a bebida e cigarros,
sem policia, sem amantes a passear pelas ruas,
este poema, esta cidade, a fechar as suas portas,
barricando-se, quase vazia,
de luto mas sem lágrimas, a envelhecer sem remédio,
as montanhas rochosas,
o oceano como uma magnólia a arder,
a lua sem qualquer grandeza,
a música de janelas partidas…

um poema é uma cidade, um poema é uma nação,
um poema é o mundo…

e agora entrego isto à lupa do editor
para a sua apreciação,
e a noite está noutro lugar
e mulheres deprimidas permanecem em fila,
cães seguem cães até ao estuário,
e sirenes anunciam navios
enquanto homens impacientam-se com coisas
que não conseguem fazer.
versão de manuel a. domingos às 10:53

como ser um grande escritor


tens que foder muitas mulheres
mulheres bonitas
e escrever alguns bons poemas de amor.

e não tens que te preocupar com a idade
e/ou novos talentos.

apenas bebe mais cerveja
mais e mais cerveja

e vai às corridas pelo menos uma vez
por semana

e vence
se possível.

aprender a vencer é difícil –
qualquer imbecil pode ser um bom perdedor.

e não te esqueças de Brahams
nem de Bach nem
da cerveja.

não faças exercício a mais.

dorme até ao meio-dia.

evita cartões de crédito
ou pagar seja o que for a
tempo e horas.

lembra-te que não há nenhum cu
no mundo que valha mais de $50
(em 1977).

e se tens a capacidade de amar
ama-te primeiro
mas nunca te esqueças da possibilidade de
derrota total
mesmo que a razão para a derrota
seja justa ou injusta –

sentir cedo o bafo da morte não é
assim tão mau.

afasta-te das igrejas e bares e museus,
e como a aranha sê
paciente –
o tempo é a nossa cruz,
mais o exílio
a derrota
a traição

tudo isso.

sê fiel à cerveja.

uma amante constante.

arranja uma grande máquina-de-escrever
e enquanto ouves os passos para cima e para baixo
lá fora

martela a coisa
martela com força

transforma-a num combate de pesos-pesados

transforma-a no touro na sua primeira investida

e lembra os velhos sacanas
que tão bem lutaram:
Hemingway, Céline, Dostoievsky, Hamsun.

se pensas que eles não enlouqueceram
em pequenos quartos
tal como tu agora

sem mulheres
sem comida
sem esperança

então não estás preparado.

bebe mais cerveja.
há tempo.
e se não houver
está tudo bem
na mesma.
versão de manuel a. domingos às 12:58

raparigas serenas e meigas em vestidos de linho


tudo o que conheço são putas, ex-protitutas,
loucas. eu vejo outros com mulheres,
serenas e meigas – eu vejo-os nos supermercados,
a caminharem juntos pelas ruas,
nos apartamentos: pessoas em
paz, a viver juntos. eu sei que a paz
deles é limitada, mas há
paz, muitas horas e dias de paz.

todas aquelas que conheço são viciadas em comprimidos, alcoólicas,
putas, ex-prostitutas, loucas.

quando uma parte
há outra que chega
pior que a anterior.

eu vejo tantos homens com raparigas serenas e meigas
em vestidos de linho
raparigas com rostos que não são traiçoeiros ou
predatórios.

“nunca tragam uma puta”, digo aos meus
poucos amigos, “ainda me apaixono por ela”.

“tu não suportarias uma mulher meiga, Bukowski.”

eu preciso duma mulher meiga. preciso duma
mais do que preciso desta máquina-de-escrever, mais do que
o meu carro, mais do que
Mozart; eu preciso tanto duma mulher assim que
consigo senti-la no ar, consigo senti-la
na ponta dos dedos, consigo ver passeios construídos
de propósito para ela por eles caminhar,
consigo ver almofadas para a sua cabeça,
consigo sentir o meu sorriso enquanto a espero,
consigo vê-la a fazer festas a um gato,
consigo vê-la a dormir,
consigo ver os chinelos dela ali no chão.

eu sei que ela existe
mas onde está ela
enquanto as putas continuam a encontrar-me?
versão de manuel a. domingos às 12:17

uma das melhores


ela usava uma peruca prateada
a cara estava cheia de base e rouge
e tinha abusado no batôn
os lábios demasiado pintados
e o seu pescoço era enrugado
mas ainda tinha o cu de uma jovem rapariga
e as pernas eram boas.
tirei-lhe as cuecas azuis que usava
subi-lhe o vestido, e com a televisão ligada
tomei-a de pé
enquanto lutávamos pelo quarto
(estou a foder a morte, pensei, estou
a ressuscitar os mortos, maravilhoso
tão maravilhoso
como comer azeitonas às 3 da manhã
com a cidade a arder)
vim-me.

vocês os jovens podem ficar com as vossas virgens
dêem-me antes mulheres maduras e quentes de salto alto
com cus que se esqueceram de envelhecer.

é claro que depois tu vais embora
ou embebedas-te
o que é a mesma
coisa.

bebemos vinho durante horas e vimos televisão
e quando fomos para a cama
dormir para esquecer
ela deixou os dentes postos
toda a noite.
versão de manuel a. domingos às 12:15

o sítio nem era mau de todo

ela tinha umas boas ancas
e umas boas gargalhadas
ela ria-se de tudo
e as cortinas eram amarelas
e eu acabei
saí de cima
e antes dela ir à casa de banho
procurou debaixo da cama e atirou-me
um velho trapo.
estava duro
teso com o esperma
de outros homens.
limpei-me aos lençóis.

quando regressou
e se curvou
vi todo aquele traseiro
e pôs Mozart
a tocar.
versão de manuel a. domingos às 21:59

se ensinasse escrita criativa, perguntou-me, o que lhes diria?

diria para terem um desgosto amoroso,
hemorróidas, dentes podres
beberem vinho barato,
evitar a ópera e o golfe e o xadrez,
mudarem a cabeça da cama
de parede para parede
e depois diria para terem
outro desgosto amoroso
e para nunca usarem computador
portátil,
evitarem almoços em família
ou serem fotografados num jardim
com flores;
para lerem Hemingway só uma vez,
passarem por Faulkner
ignorarem Gogol
verem fotografias da Getrude Stein
e lerem Sherwood Anderson na cama
enquanto comem bolachas de água e sal,
perceberem que as pessoas que falam de
liberdade sexual tem mais medo do que vocês.
para ouvirem E. Power Biggs a tocar
órgão na rádio enquanto enrolam
um Bull Durham às escuras
numa cidade desconhecida
com um dia para pagar a renda
depois de abandonar
amigos, família e trabalho.
para nunca se considerarem superiores e/
ou justos
e nunca tentar ser.
para terem outro desgosto amoroso.
observarem uma mosca no verão.
nunca tentar ter sucesso.
nunca jogar bilhar.
para se mostrarem verdadeiramente furiosos
quando descobrirem que têm um pneu furado.
tomarem vitaminas mas nunca fazer exercício físico.

depois disto tudo
inverter o processo.
ter um bom caso amoroso.
e aprender
que não há nada nem ninguém a saber tudo –
nem o Estado, nem os ratos
nem a mangueira do jardim nem a Estrela Polar.
e se algum dia me apanharem
a dar uma aula de escrita criativa
e lerem isto
eu dou-vos um 20
pelo cu
acima.
versão de manuel a. domingos às 17:27

raparigas a chegar a casa

as raparigas chegam a casa nos seus carros
e eu sento-me à janela e
observo.

há uma rapariga num vestido vermelho
a conduzir um carro branco
há uma rapariga num vestido azul
a conduzir um carro azul
há uma rapariga num vestido rosa
a conduzir um carro vermelho.

quando a rapariga do vestido vermelho
sai do carro branco
vejo-lhe as pernas

quando a rapariga do vestido azul
sai do carro azul
vejo-lhe as pernas
quando a rapariga do vestido rosa
sai do carro vermelho
vejo-lhe as pernas

a rapariga do vestido vermelho
que saiu do carro branco
tinha as melhores pernas

a rapariga do vestido rosa
que saiu do carro vermelho
tinha pernas assim-assim

mas não me esqueço da rapariga do vestido azul
que saiu do carro azul

vi-lhe as cuecas

ninguém imagina o agradável que pode ser
a vida por aqui
às 5:35 da tarde.
versão de manuel a. domingos às 15:17

um poema cruel


eles continuam a escrever
a despejar poemas –
jovens rapazes e professores universitários
mulheres que bebem vinho toda a tarde
enquanto os maridos trabalham,
eles continuam a escrever
com os mesmos nomes nas mesmas revistas
cada ano a escreverem pior,
publicam colectâneas de poesia
e despejam mais poemas
parece um concurso
é um concurso
mas o prémio é invisível.

eles não escrevem nem contos nem ensaios
nem romances
apenas
despejam poemas
todos parecidos com os dos outros
e cada vez menos originais,
e alguns dos rapazes cansam-se e desistem
mas os professores nunca desistem
e as mulheres que bebem vinho toda a tarde
nunca, mas mesmo nunca, desistem
e chegam outros rapazes com novas revistas
e há troca de cartas entre poetas e poetisas
alguns chegam a foder
e tudo é exagerado e aborrecido.

quando os poemas saem
eles reescrevem-nos
e enviam-nos para a próxima revista na lista,
e fazem leituras
todas as que conseguem fazer
a maior parte de borla
na esperança que alguém repare neles
que alguém os aplauda
lhes reconheça o talento
os felicite
eles estão convencidos da sua genialidade
há muito poucas dúvidas,
e muitos vivem no Grande Porto ou Grande Lisboa,
e as suas caras são como os poemas que escrevem:
semelhantes,
e conhecem-se uns aos outros e
reúnem e odeiam e admiram e escolhem e expulsam
e continuam a despejar mais poemas
mais e mais poemas
mais e mais poemas
o concurso dos pasmados:
tap tap tap, tap tap, tap tap tap, tap tap…
versão de manuel a. domingos às 12:36

eu

as mulheres não sabem amar,
disse-me ela.
tu sabes amar
mas as mulheres só querem
aproveitar-se.
eu sei isso porque sou uma
mulher.

hahaha, ri-me.

não te preocupes por teres acabado
com a Susan
porque ela só vai aproveitar-se de
outro.

falámos mais um pouco
depois eu disse adeus
desliguei
fui até à cagadeira e
dei uma boa cagadela
enquanto pensava, bem,
ainda estou vivo
e tenho a capacidade de deitar fora
o lixo do meu corpo.
e poemas.
e enquanto isso acontecer
tenho a capacidade de lidar com
traição
solidão
cutículas
gonorreia
e com os relatórios financeiros das
páginas de economia.

depois
levantei-me
limpei-me
despejei o autoclismo
e pensei:
é verdade:
eu sei como
amar.

puxei as calças para cima e fui
para a sala.
versão de manuel a. domingos às 11:33

os justos já herdaram

se sofro nas mãos
desta máquina de escrever
imaginem como iria sentir-me
entre os apanhadores
de alface em Salinas?

penso nos homens
que conheci em
fábricas
sem possibilidade
de fuga –
a sufocar enquanto vivem
a sufocar enquanto riem
com Bob Hope e Lucille
Ball enquanto
2 ou 3 crianças atiram
bolas de ténis contra
as paredes.

alguns suicídios ficam por
registar.
versão de manuel a. domingos às 11:22

e saberemos o que são as ilhas e o mar

eu sei que em breve
numa noite
em algum quarto
os meus dedos
tocarão
num suave
lindo
cabelo

músicas que nenhuma rádio
alguma vez passou

todas elas tristeza, arrastadas
pela corrente.
versão de manuel a. domingos às 11:18

cão

um cão
a andar sozinho pelo passeio num quente
verão
parece ter o poder
de dez mil deuses.

porquê?
versão de manuel a. domingos às 22:41

tu

tu és um animal, disse ela
com essa barriga grande e branca
e esses pés peludos.
nunca cortas as unhas
e tens mãos gordas
patas como um gato
com esse nariz brilhante e vermelho
e os maiores tomates
que alguma vez vi.
disparas esperma como uma
baleia dispara água daquele
buraco nas costas.

animal animal animal,
ela beijava-me,
o que queres para o
pequeno-almoço?
versão de manuel a. domingos às 22:29

doce música

é melhor que o amor pois não há
feridas: pela manhã
ela liga o rádio, Brahms ou Ives
ou Stravinsky ou Mozart. coze os
ovos e conta os segundos em voz alta: 56,
57, 58… descasca os ovos, e trá-los
à cama. depois do pequeno-almoço é
a mesma cadeira e ouvir músi-
ca clássica. ela vai no primeiro copo de
uísque e no terceiro cigarro. digo-lhe
tenho que ir às corridas. ela
está aqui há 2 noites e 2 dias. “quando
te poderei ver outra vez?” pergunto. ela
diz que depende de mim. eu
aceno com a cabeça e Mozart toca.
versão de manuel a. domingos às 22:08

alguns pensamentos pessoais

eles têm razão: talvez tenha sido demasiado fácil escrever sobre mim e cavalos e bebida, mas também não estou a tentar provar alguma coisa. ultimamente tem sido agradável fazer longos passeios embora o meu desejo por mulheres continue, penso que não tenho que estar sempre alerta para novas conquistas. andar sempre no mesmo não tem que ser aborrecido. deixa que as jovens fêmeas preocupem outros homens. muitas vezes sinto-me melhor sozinho. agora considero as pessoas mais agradáveis do que desagradáveis (estarei a fraquejar?) e embora ainda tenha noites e dias deprimentes a máquina de escrever nunca me falha. os leitores esperam que os seus poetas melhorem sempre mas com esta idade aguentar (a tenta em pé, haha) é um milagre. passeios longos, sim. e a capacidade de não me preocupar – às vezes – enquanto a nossa sociedade implode e luta não significa que sou uma vitima da arte. noites sozinho por trás das cortinas, sem ser rico ou pobre, pode ser satisfatório. chegará a loucura a horas? não sei e não procuro a resposta – só um pequeno lugar entre não saber, não querer saber e, finalmente, saber.
versão de manuel a. domingos às 17:58

esta máquina é uma fonte

o meu sistema é sempre o mesmo:
vai com calma
escreve um grande número de
poemas
com todo o teu
coração aberto e
não te preocupes com
os piores
de todos.

continua
continua sempre
quente
esquece a imortalidade
se é que algum vez
te lembras
dela.

o som desta máquina é
bom.

quanto mais papel
mais desejo.

continua
a martelar à vontade e espera pela
sorte.

que
pechincha.
versão de manuel a. domingos às 17:35
Mensagens antigas
Subscrever: Mensagens (Atom)
Charles Bukowski



Breve Biografia
Charles Bukowski (1920-1994) nasceu na Alemanha em 1920. Aos três anos foi viver para os EUA, tendo residido 15 anos em Los Angeles. Estudou literatura e jornalismo. Começou a escrever muito cedo e publicou os seus primeiros contos em 1944. Apenas terá começado a escrever poesia quando já tinha 35 anos. Trabalhou em bares, nos correios, estações de serviço, levando uma vida boémia à base de álcool, mulheres, apostas em corridas de cavalos e lutas de boxe. Foi várias vezes hospitalizado, devido a problemas relacionados com o consumo excessivo de álcool. De personalidade inconformada e iconoclasta, Bukowski nunca se deixou associar a qualquer movimento literário. Completamente independente, foi construindo uma obra com cerca de 40 títulos publicados. O seu primeiro livro de poesia data de 1959. Na sua campa, deixou o aviso: «Don't Try!»

O ESTRANHO – Murilo Mendes

O ESTRANHO – Murilo Mendes
 
 
Quantas vezes noturno me apareço
Na própria reveladora luz do dia:
Palpo-me tremendo sem me incorporar,
Flutuo numa atmosfera rarefeita
Anterior à forma organizada.
Alheio ao zumbido da criação
Perco antes de tudo a lembrança do batismo,
Dos sinais plásticos que me foram transmitidos.
Passo épocas inteiras sem me recordar
Que o Cristo morreu e ressuscitou comigo,
Que ouvi a voz de Abraão nas nuvens
E que me transformei de amor.
 
Outras vezes
Adivinho uma figura cantante me embalando
Sob o pretexto de me reconduzir
Ao lar perdido, ao fogo da montanha,
Onde antigos vestígios se guardavam
De fala celeste no santuário.
Toda de branca vestida a morte vejo:
Moça de nobre arquitetura clássica,
Ao véu voam seus velozes véus.
Dançando a todos engana,
Mas de seu mesmo riso nasce o fim.
Até que um dia vou-me aproximando
Dos arredores familiares do universo
Em que situo as órbitas espantadas:
E a lua emergindo em seu crescente,
Minha própria identidade me confere.

Elizabeth Lorenzotti

Tudo existe porque tem um nome
 
O rosário de jade sobre a Teogonia
O livro de Leonardo
Meu caderno de sonhos
Cristais de gengibre
A caixinha de Alhambra
A pedra cor-de-rosa
O hexágono da China
Potinhos de pedra-sabão de Minas
A obra em negro
Os escritos de Blake:
Tudo existe porque tem um nome
 
Elizabeth Lorenzotti
 

Mapa-Murilo Mendes

Mapa
Murilo Mendes

Me colaram no tempo, me puseram
uma alma viva e um corpo
desconjuntado. Estou
limitado ao norte pelos sentidos, ao sul pelo medo,
a leste pelo Apóstolo São Paulo, a oeste pela minha educação.
Me vejo numa nebulosa, rodando, sou um fluido,
depois chego à consciência da terra, ando como os outros,
me pregam numa cruz, numa única vida.
Colégio. Indignado, me chamam pelo número, detesto a hierarquia.
Me puseram o rótulo de homem, vou rindo, vou
andando, aos solavancos.

Danço. Rio e choro, estou aqui, estou ali, desarticulado,
gosto de todos, não gosto de ninguém, batalho com os espíritos do ar,
alguém da terra me faz sinais, não sei mais o que é o bem
nem o mal.
Minha cabeça voou acima da baía, estou suspenso,
angustiado, no éter,
tonto de vidas, de cheiros, de movimentos,
de pensamentos,
não acredito em nenhuma técnica.
Estou com os meus antepassados, me balanço em
arenas espanholas,
é por isso que saio às vezes pra rua combatendo
personagens imaginários,
depois estou com os meus tios doidos, às gargalhadas,
na fazenda do interior, olhando os girassóis do jardim.
Estou no outro lado do mundo, daqui a cem anos
levantado populações

Me desespero porque não posso estar presente a todos os atos da vida.
Onde esconder minha cara? O mundo samba na
minha cabeça.
Triângulos, estrelas, noite, mulheres andando,
presságios brotando no ar, diversos pesos e
movimentos me chamam a atenção,
o mundo vai mudar a cara,
a morte revelará o sentido verdadeiro das coisas.
Andarei no ar.
Estarei em todos os nascimentos e em todas
as agonias, me aninharei nos recantos do corpo da noiva,
na cabeça dos artistas doentes, dos revolucionários.
Tudo transparecerá:
vulcões de ódio, explosões de amor, outras caras
aparecerão na terra,
o vento que vem da eternidade suspenderá os passos,
dançarei na luz dos relâmpagos, beijarei sete
mulheres,
vibrarei nos cangerês do mar, abraçarei as almas no ar,
me insinuarei nos quatro cantos do mundo.

Almas desesperadas eu vos amo. Almas insatisfeitas, ardentes.
Detesto os que se tapeiam,
os que brincam de cabra-cega com a vida, os homens “práticos”
Viva São Francisco e vários suicidas e amantes
suicidas,
e os soldados que perderam a batalha, as mães bem mães,
as fêmeas bem fêmeas, os doidos bem doidos.
Vivam os transfigurados, ou porque eram perfeitos ou porque jejuavam muito...
Viva eu, que inauguro no mundo o estado de bagunça transcendente.
Sou a presa do homem que fui há vinte anos passados,
dos amores raros que tive,
vida de planos ardentes, desertos vibrando sob os dedos do amor,
tudo é ritmo do cérebro do poeta.
Não me inscrevo em nenhuma teoria,
estou no ar,
na alma dos criminosos, dos amantes desesperados
no meu quarto modesto da Praia de Botafogo,
no pensamento dos homens que movem o mundo,
nem triste nem alegre, chama com dois olhos andando,
sempre em transformação.

Federico García Lorca

SERENATA
(Homenaje a Lope de Vega)

Por las orillas del río
se está la noche mojando
y en los pechos de Lolita
se mueren de amor los ramos.

Se mueren de amor los ramos.

La noche canta desnuda
sobre los puentes de marzo.
Lolita lava su cuerpo
con agua salobre y nardos.

Se mueren de amor los ramos.

La noche de anís y plata
relumbra por los tejados.
Plata de arroyos y espejos.
Anís de tus muslos blancos.

Se mueren de amor los ramos.

De: Canciones (1921-1924)

POEMA PESSOAL-Murilo Mendes

POEMA PESSOAL – Murilo Mendes


Levanto-me da carruagem de paixões e plumas
Aparentemente guiada pelas irmãs Brontë.

Deu uma tristeza agora nos telhados.

As cigarras sublinham a tarde emparedada,
O trovão fechou o piano.
Surge antecipadamente o arco-íris,
Aliança temporária de Deus com o homem,
Sem a solidez da eucaristia:
Surge sobre encarcerados, órfãos, marginais,
Sobre os tristes e os sem-solução.

Dos quatro cantos de mim mesmo
Irrompe um Dedo terribilíssimo que me acusa
Porque sem os olhar deixo de lado
Os restos agonizantes do mundo.

Transformou-se agora o céu.
Céu patinado, que escureza.
Céu sempre futuro e amargo,
Como são fundamentais
Estes sofrimentos de segundo plano!

Mais o que mesmo lembrar?
Ah sim – esta arrastada caranguejola da vida.

antonio gamoneda (Espanha,n.1931)

Ainda

Amei. É incompreensível como o tremor das árvores.
Agora estou extraviado na luz porém sei que amei.
Eu vivia num ser e seu sangue deslizava pelas minhas veias e
a música me envolvia e eu mesmo era música.
Agora,
quem está cego nos meus olhos?
Umas mãos passavam sobre meu rosto e envelheciam docemente. Que
foi existir entre cordas e espíritos?
Quem fui nos braços da minha mãe, quem fui no meu próprio coração?
É estranho:
somente aprendi a desconhecer e esquecer. É estranho:
agora, o amor
habita no esquecimento.

trad. de António Cícero

ANTERO DE QUENTAL

Intimidade

Antero de Quental
(1842-1891)

Quando, sorrindo, vais passando, e toda
Essa gente te mira cobiçosa,
És bela - e se não te comparo a rosa,
É que a rosa, bem vês, passou de moda.

Anda-me as vezes a cabeça a roda,
Atrás de ti também, flor caprichosa!
Nem pode haver, na multidão ruidosa,
Coisa mais linda, mais absurda e doida.

Mas e na intimidade e no segredo,
Quando tu coras e sorris a medo,
Que me apraz ver-te e que te adoro, flor!

E não te quero nunca tanto (ouve isto)
Como quando por ti, por mim, por Cristo, Juras
- mentindo - que me tens amor.

A ESTÁTUA DO ALFERES – Murilo Mendes

A ESTÁTUA DO ALFERES – Murilo Mendes
 
 
Eu sou o supremo herói.
Choquei a revolução...
Há mais de 100 anos guardo
No meu ventre generoso
Uma turma de poetas
Que vivem o dia inteirinho
Tangendo as cordas da lira,
Em vez de atirarem bombas
N Marquês de Barbacena
E no rei de Portugal.
Quem dorme mais é Dirceu.
No meu corpo cabe tudo.
Cabe passado e presente,
 Mais do que tudo o futuro.
Senadores, deputados,
Se arrancham na minha sombra,
E outros dentre de mim.
Se eu não tivesse sofrido
- Por iniciativa própria –
Eles nunca poderiam viver nessa pagodeira.
Sou como o cavalo troiano,
Aqui dentro cabe todo mundo,
O Avô da farra sou eu,
 

Joaquín O. Giannuzzi

A HASTE CAÍDA

Uma rajada de vento quebrou
a haste do gladíolo vermelho.
Tombado junto à cerca de arame
é como um braço vencido por um súbito cansaço.
Em volta a paisagem observa
o seu próprio esplendor verde depois da chuva.
A flor vermelha esmorece
sob a intensidade do sol
e o caule extingue-se de volta à terra.
Sabemos vagamente como tudo isto acontece,
ébrios de identidade e permanência:
em poucos dias completar-se-á a dissolução.
Mas lenta é a morte
por dentro deste fim que acabaremos por esquecer.

LA RAMA CAÍDA:
Una ráfaga de viento ha quebrado/ la rama del gladiolo bermejo./ Caída junto a la cerca de alambre/ es como un brazo vencido por una brusca fatiga./ En el vasto entorno, el paisaje atiende/ a su propio verdor creado por la lluvia./ Ahora, la intensidad del sol/ marchita el bermejo hacia un marrón reseco/ y el tallo oscurece adherido a la tierra./ Muy vagamente sabemos por qué sucede esto ante nosotros/ ebrios de identidad y permanencia:/ unos pocos días consumarán la disolución/ pero lenta es la muerte/ en este final que olvidaremos.

Joaquín O. Giannuzzi
(Argentina, 1924-2004)

Murilo Mendes

ABSTRAÇÃO E AMOR – Murilo Mendes
 
 
1
 
Aproxima-te de mim, dá-me as mãos delicadas
E descansa a cabeça no meu ombro.
É melhor que não desnatres os cabelos,
Os louros, finos e obedientes cabelos
-essa parte dignificada do teu corpo,
A que melhor resistirá à morte.
 
Hesito entre o lado diurno e noturno do teu ser.
 
Aos olhos do mundo tu és apenas decorativa,
Mas eu pressinto claramente em ti
A que tem pudor da sua profundidade,
A que espera a anunciação dum forte drama
Que dividirá a vida como espada de dois gumes.
 
2
 
Talvez seja mais belo e favorável à poesia
Que nunca te manifestes totalmente a mim
E que continuemos a nos ver na obscuridade
Para que eu, guardando a eterna nostalgia de ti,
Jamais possa me sentir saciado.
 
3
 
Todos são fascinados pela tua vida visível,
Pela tua aparente suavidade.
Todos são fascinados pelo teu nome:
E ninguém conhece teu verdadeiro nome.
 
Há entre mim e ti zonas de sombra
Contornadas por anjos divinatórios.
Há entre mim e ti o mínimo necessário
Para assegurar tua invisibilidade.
 
4
 
Existes telefonicamente para mim
Às vezes não consigo te tornar bastante obscura
E me traio, pedindo a tua presença.
 
Quanto mais longe de ti mais te desejo
E te sinto mais branca e invulnerável.
 
Ainda não és um mito, ainda não estás
Fixada na invisível realidade.

Marina Tsvétaïeva

Eu não penso, não me queixo, nem discuto,
nem durmo.
Não desejo nem sol, nem lua, nem mar,
nem barco.

Não penso no calor que faz entre estas
paredes,
nem como o jardim está verde;
e esse presente, que tanto desejei,
já não o espero.

Não me anima nem a manhã, nem o eléctrico
o seu tilintar alegre,
vivo sem ver o dia, esquecendo-me, do tempo,
o ano e a hora.

Sobre uma corda estragada,
eu danço – pobre dançarina.
sou a sombra de uma sombra. Sou lunar
de duas sombrias luas.


Marina Tsvétaïeva

a condição


pelas avenidas
as pessoas sofrem;
elas sofrem a dormir, elas acordam
a sofrer;
até os edifícios sofrem,
as pontes
as flores sofrem
e não há salvação –
o sofrimento senta-se
o sofrimento paira
o sofrimento espera
o sofrimento é.

não perguntem por que há
bêbados
drogados
suicidas

a música é má
e o amor
e o argumento:

agora este lugar
enquanto escrevo isto

ou enquanto lês isto:
agora é o teu lugar.

Charles Bukowski
versão de manuel a. domingos

Ronaldo Costa Fernandes

LAMENTO DO MENINO TRISTE
Ronaldo Costa Fernandes


O azeite ainda se agarra
às paredes do frasco depois de esvaziado.
A água, leve, esvazia-se rápido,
às vezes até evapora, e não deixa resíduo,
nada se gruda à parede do frasco.
Ó mãe, faz permanecer em mim a água da alegria
e me livra do azeite do desengano.

Wislawa Szymborska

QUARTO DO SUICIDA


Vocês devem achar, sem dúvida, que o quarto esteve vazio.
Mas lá havia três cadeiras de encosto firmes.
Uma boa lâmpada para afastar a escuridão.
Uma mesa, sobre a mesa uma carteira, jornais.
Buda sereno, Jesus doloroso,
sete elefantes para boa sorte, e na gaveta — um caderno.
Vocês acham que nele não estavam nossos endereços?

Acham que faltavam livros, quadros ou discos?
Mas da parede sorria Saskia com sua flor cordial,
Alegria, a faísca dos deuses,
a corneta consolatória nas mãos negras.
Na estante, Ulisses repousando
depois dos esforços do Canto Cinco.
Os moralistas,
seus nomes em letras douradas
nas lindas lombadas de couro.
Os políticos ao lado, muito retos.

E não era sem saída este quarto,
aos menos pela porta,
nem sem vista, ao menos pela janela.
Binóculos de longo alcance no parapeito.
Uma mosca zumbindo — ou seja, ainda viva.

Acham então que talvez uma carta explicava algo.
Mas se eu disser que não havia carta nenhuma —
éramos tantos, os amigos, e todos coubemos
dentro de um envelope vazio encostado num copo.

Tradução: Ana Cristina Cesar

Luís Filipe Castro Mendes

Música Calada


Dizias que nos sobram as palavras:
e era o lugar perfeito para as coisas
esse escuro vazio no teu olhar.


E demorava a dura paciência,
fruto do frio nas nossas mãos vazias
que mais coisas não tinham para dar.


Dizia então a dor o nosso gesto
e durava nas coisas mais antigas
a solidão sem rasto que há no mar

Luís Filipe Castro Mendes

Manuel Alegre

Livreiro da Esperança

Há homens que são capazes
de uma flor onde
as flores não nascem.
Outros abrem velhas portas
em velhas casas fechadas há muito.
Outros ainda despedaçam muros
acendem nas praças uma rosa de fogo.
Tu vendes livros quer dizer
entregas a cada homem
teu coração dentro de cada livro.

Manuel Alegre

RENÉ CHAR



O Verão cantava sobre a sua rocha preferida
quando tu me apareceste,

o Verão cantava afastado de nós
que éramos silêncio,
simpatia, liberdade triste,
mar
mais ainda do que o mar,
cuja enorme comporta azul
brincava aos nossos pés.

O Verão cantava
e o teu coração nadava longe dele.
Eu beijava a tua coragem,
entendia a tua perturbação.


Estrada através do absoluto das vagas
em direcção a esses altos picos de escuma
onde navegam virtudes assassinas
para as mãos que seguram as nossas casas.

Não éramos crédulos.
Éramos rodeados.

Os anos passaram.
As tempestades morreram.
O mundo partiu.

Sofria
por sentir que era o teu coração que já não me conhecia.

Eu amava-te.
Na minha ausência de rosto e no meu vazio de felicidade.

Eu amava-te, mudando em tudo,
fiel a ti.


René Char
trad.de. margarida vale de gato

Maria Mercé Marçal

CANÇÃO DE FAZER CAMINHO
A Marina


Queres vir à minha barca?
A transbordar de violetas!
Iremos longe sem nos pesar
aquilo que aqui deixamos.

Sem saudades iremos longe
— seremos duas, seremos três.
Podeis vir, vinde à nossa barca,
a vela alba, o céu aberto.

Todos os braços terão seu remo
— seremos quatro, seremos cinco! —
e os nossos olhos, astros dispersos
os seus limites esquecerão.

Março conduz-nos, a ventania,
as loucas nuvens do coração.
Seremos vinte, ou já quarenta,
a lua será nosso estandarte.

Bruxas de ontem, bruxas do dia,
no alto mar nos acharemos.
Em tudo a vida brotará
como uma dança vegetal.

E sob a pele de onda salgada
seremos quinhentas, seremos mil.
Até que a conta perderemos.
Juntas faremos nossa a noite.

Maria Mercé Marçal

OLINDA BEJA

Afirmação


Hei-de cantar este sol este poente
esta terra lavrada pelo mar
este povo que amassa docemente
o pão espesso e escuro. Hei-de cantar
o eco das origens destas rochas
sólidas e puras. Deste chão em forma
de poema onde a nossa luz nascente
é a voz da manhã tépida e morna


hei-de cantar os búzios e as conchas. Areais
de corpos que se entregam. Acácias carmesim
divinizadas. Que mais
posso cantar?

Talvez o nada que há em mim…

Olinda Beja-in Água Crioula

VLADIMIR HOLAN

ELA PERGUNTOU-TE

Uma rapariga perguntou-te: O que é a poesia?
Tu querias responder-lhe: Tu também és, ah sim, tu também
- e tu a medo e surpreendido -,
o que prova o milagre,
tenho ciúmes da tua beleza madura,
e porque não posso nem beijar-te nem dormir contigo,
e porque não tenho nada e quem não tem nada para dar
deve cantar...

Mas tu não respondeste, permaneceste em silêncio
e ela não ouviu a canção.

Tradução inédita de Miguel Gonçalves.

Breve História de Um Sábio de Berlim





Herr Alleswisser fez um castelo de livros e, sem mais delongas, instalou-se nele; ponta a ponta, foi lendo a sua casa e, lendo, sentia-se feliz.
Um dia, de tanto ler paredes e pilares, o castelo ruiu; e Herr Alleswisser achou-se soterrado sob a sua cultura e viu-se nu, com fome, com sede, exposto à bruta crueza do Mundo.
Hoje, Herr Alleswisser é um sem abrigo e vive debaixo da ponte Erscheinigungsbrücker, onde passam os carros que seguem para Berlim Oriental.
Só quando confrontado com a vertente prática das ruas que apenas conhecia como ideia nesses livros que lia é que Herr Alleswisser compreendeu que a Literatura, só por si, não constitui a Cultura. Que ser culto, implica viver na mesma proporção em que se teoriza, sob pena de o sabor de uma carne ou de um peixe não ser a carne ou a peixe mas apenas uma sensação da saliva que surge à boca ao pensar-se uma iguaria abstracta que não é mais que metáfora.
Ao descobrir isso, Herr Alleswisser obteve o impensável: perdeu tragicamente o seu castelo, para encontrar na condição de sem-abrigo aquela completude que buscava.

Dulcineia, meus Quijotes, está ao virar da esquina, não ao virar da página!



Publicada por Miguel Joao Ferreira in http://persona08.blogspot.com/

Jean-Claude Renard

O LIMITE DAS CINZAS – Jean-Claude Renard


Eis a lenha que eu trouxe.

O fogo não transpõe o limite das cinzas
Mas o calor do fogo entranha-se na casa.

Uma fenda se abriu nos tijolos gelados,
A barreira da ausência.
Um agasalho de ar para os membros, os móveis,
A alma no desabrigo.

Agora nos parece alvejar uma sombra
Nos ângulos da noite,
Um começo de luz, qual ponte transparente
De uma ilha para outra.
Mais manso que a palavra, alguma coisa pura levanta sua voz

E que diz talvez mais.
Aquilo que já encontro,
E em que já estou pegando
Me perde ao me queimar.

Ao longe está luzindo a vívida matéria
Que permite a aliança entre as águas e a brasa
Sem que nenhum dos dois padeça alteração?

Cresce em mim um vazio – em que brota um apelo feito para a
resposta e essência singular
daquilo que o criou.
E mesmo, de repente, no nada fecundo e no espaço de tempo que
Só se cumpre com a eternidade,
A árvore para mim é livre e necessária
E seu mistério quer que eu lhe seja também.

Acenderei seu nome
Naquela morte aberta onde o oculto verão ganha a doçura dos seios.


Tradução de Cláudio Veiga

stéphane mallarmé ( França, 1842 -1898)

BRISE MARINE

La chair est triste, hélas! et j´ai lu tous les livres.
Fuir! là-bas fuir ! Je sens que des oiseaux sont ivres
D´être parmi l´écume inconnue et les cieux!
Rien, ni les vieux jardins reflétés par les yeux
Ne retriendra ce coeur qui dans la mer se trempe
O nuits ! ni la clarté déserte de ma lampe
Sur le vide papier que la blancheur défend
Et ni la jeune femme allaitant son enfant.
Je partirai ! Steamer balançant ta mâture,
Lève l´ancre pour une exotique nature!
Un Ennui, désolé par les cruels espoirs,
Croit encore à l´adieu suprême des mouchoirs!
Et, peut-être, les mâts, invitant les orages
Sont-ils de ceux qu´un vent penche sur les naufrages
Perdus, sans mâts, sans mâts, ni fertiles îlots...
Mais, ô mon coeur, entends le chant des matelots!




BRISA MARINHA

Tradução: Augusto de Campos

A carne é triste, sim, e eu li todos os livros.
Fugir! Fugir! Sinto que os pássaros são livres,
Ébrios de se entregar à espuma e aos céus imensos.
Nada, nem os jardins dentro do olhar suspensos,
Impede o coração de submergir no mar
Ó noites! nem a luz deserta a iluminar
Este papel vazio com seu branco anseio,
Nem a jovem mulher que preme o filho ao seio.
Eu partirei! Vapor a balouçar nas vagas,
Ergue a âncora em prol das mais estranhas plagas!
Um Tédio, desolado por cruéis silêncios,
Ainda crê no derradeiro adeus dos lenços!
E é possível que os mastros, entre ondas más,
Rompam-se ao vento sobre os náufragos, sem mastros,
sem Mastros,nem ilhas férteis a vogar...
Mas, ó meu peito, ouve a canção que vem do mar!

Obs minha(A.P). Poema belíssimo, a começar pelo 1º verso...
Na tradução perfeita de Augusto de Campos,substituí Rompam-se por se rompam , de acordo com a sintaxe do português de Portugal . Retomo em virtude de o meu amigo Carlos Machado me ter escrito o sesuinte e que acho pertimente:

TAVARES, Miguel Souza

O MEDITERRÂNEO*

Miguel Sousa Tavares


Não gosto de catedrais, do peso das pedras, da dimensão excessiva das naves, da mitologia de um Deus em cujo nome foram construídas e que aqui convoca e esmaga os seus crentes. Não gosto da profusão de altares de castiçais de talha dourada, de sacrários e cânticos e painéis. Não gosto da arquitectura que não é à escala humana, nem nos meios utilizados nem nos fins que representa.

Prefiro a extensão plana das mesquitas, o seu jogo de colunas e sombras, o despojamento geométrico dos seus azulejos. Prefiro mil vezes a herança do mundo árabe morto em Granada do que os símbolos da Reconquista cristã que o sepultou.

Mil vezes a leveza do mundo mediterrânico do que o sufoco das catedrais e castelos do Sacro Império Romano - Germânico. Mil vezes os templos gregos, entre resina e mar e a quietude das oliveiras, do que os castelos de Inglaterra e as florestas de bétulas do Norte. Mil vezes as kasbahs de Marrocos do que os castelos feudais da Europa, mil vezes Granada do que Versalhes.

E antes um Olimpo de Deuses de cada coisa do que um Deus único, antes o Al Andaluz do que os Reis Católicos, antes Roma do que o Papado, antes a luz e a democracia gregas do que a escuridão medieval.

Falo da nossa herança, o Mediterrâneo – a mais extraordinária civilização humana, a civilização da luz, da arte, da arquitectura, da democracia, do direito, da navegação e da descoberta, do mar e do deserto, das ilhas e dos golfos, das vinhas, dos olivais e dos pinhais, das estátuas profanas, das colunas e dos azulejos, dos pátios, dos terraços e das varandas, da cal, do branco e do azul. É a civilização do Egipto, de Creta, de Atenas, de Roma, de Volubilis, de Tânger. Das cidades portuárias, de Alexandria a Lisboa e das Ilhas Gregas, da Sicília, de Malta, de Chipre, da Sardenha. São três mil anos a contemplar as estrelas do céu, a ouvir o som da água nas fontes e a tentar decifrar o mistério da morte.

Antes que a ideia de Deus esmagasse os homens, antes doa autos de fé, das perseguições religiosas da Inquisição e do fundamentalismo islâmico, o Mediterrâneo inventou a arte de viver. Os homens viviam livres dos castigos de Deus e das ameaças dos Profetas: na barca da morte até à outra vida, como acreditavam os egípcios. E os deuses eram, em vida dos homens, apenas a celebração de cada coisa: a caça, a pesca, o vinho, a agricultura, o amor. Os deuses encarnavam a festa e a alegria da vida e não o terror da morte.

Antes da queda de Granada, antes das fogueiras da Inquisição, antes dos massacres da Argélia, o Mediterrâneo ergueu uma civilização fundada na celebração da vida, na beleza de todas as coisas e na tolerância dos que sabem que, seja qual for o Deus que reclame a nossa vida morta, o resto é nosso e pertence-nos – por uma única, breve e intensa passagem. É a isso que chamamos liberdade – a grande herança do mundo do Mediterrâneo.

TAVARES, Miguel Souza. In Não te deixarei morrer, David Crockett. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

Henri Thoreau

Fumo

Ligeiro fumo alado! Ó ave de Ícaro,
fundindo as asas na ascenção da fuga,
pássaro mudo, anúncio da alvorada,
sobre as aldeias como em torno a um ninho;
Ou sonho a despedir-se, impura forma
de nocturna visão, erguendo a túnica;
Pela noite, as estrelas encobrindo,
e pelo dia denegrindo o sol;
Vai tu, incenso meu, suplica aos deuses
que nos perdoem tão formosa chama.


Henri Thoreau ( EE.UU da América ... 1817 - 1862)

Percy B. Shelley

CANÇÃO PARA OS HOMENS DE INGLATERRA


Homens de Inglaterra, porquê lavrar
Para os senhores que vos derrubam?
Porquê tecer com esforço e cuidado
As ricas roupas que vestem os vossos tiranos?

Porquê alimentar, e vestir, e proteger,
Do berço até à sepultura,
Aqueles ingratos zângãos que
Exauririam o vosso suor como beberiam também o vosso sangue?

Porquê, Abelhas de Inglaterra, forjar
Tantas armas, grilhetas e chicotes
Se esses zângãos sem ferrão podem destruir
O produto forçado da vossa labuta?

Será que tendes lazer, conforto, calma,
Abrigo, comida, o doce bálsamo do amor?
O que é então que comprais tão caro
Com a vossa dor e com o vosso medo?

O grão que semeais, colhe-o outro;
A riqueza que encontrais, fica outro com ela;
As roupas que teceis, outro as veste;
As armas que forjais, as usa outro.

Semeai grão, - mas não deixeis que nenhum tirano o colha;
Encontrai riqueza, - não deixeis nenhum impostor acumulá-la;
Tecei roupas, - não deixeis nenhum ocioso usá-las;
Forjai armas, - a usar em vossa defesa.

Recolhei às vossas caves, buracos e cubículos;
Nas mansões que embelezais, outro lá vive.
Porquê sacudir as grilhetas que forjastes? Vedes
O aço que temperastes brilhar sobre vós.

Com o arado e a pá, e a enxada e o tear,
Cavai a vossa sepultura e construí o vosso túmulo,
E tecei a vossa mortalha, até que a bela
Inglaterra seja o vosso sepulcro.

Percy B. Shelley, in A Máscara da Anarquia, trad. Célia Henriques (com VST/AP), pp. 103-104, &etc, Setembro de 2008.

GOMES LEAL

O VISIONÁRIO OU SOM E COR

1

Eu tenho ouvido as sinfonias das plantas.


Eu sou um visionário, um sábio apedrejado,
passo a vida a fazer e a desfazer quimeras,
enquanto o mar produz o monstro azulejado
e Deus, em cima, faz as verdes primaveras.

Sobre o mundo onde estou encontro-me isolado,
e erro como estrangeiro ou homem doutras eras,
talvez por um contrato irónico lavrado
que fiz e já não sei noutras subtis esferas.

A espada da Teoria, o austero Pensamento,
não mataram em mim o antigo sentimento,
embriagam-me o Sol e os cânticos do dia...

E obedecendo ainda a meus velhos amores,
procuro em toda a parte a música das cores,
? e nas tintas da flor achei a Melodia.

2

O vermelho deve ser como o som duma trombeta

(Um cego)


Alucina-me a cor! ? A rosa é como a Lira,
a Lira pelo tempo há muito engrinaldada,
e é já velha a união, a núpcia sagrada,
entre a cor que nos prende e a nota que suspira.

Se a terra, às vezes, brota a flor, que não inspira,
a teatral camélia, a branca enfastiada,
muitas vezes, no ar, perpassa a nota alada
como a perdida cor dalguma flor que expira...

Há plantas ideais de um cântico divino,
irmãs do oboé, gémeas do violino,
há gemidos no azul, gritos no carmesim...

A magnólia é uma harpa etérea e perfumada,
e o cacto, a larga flor, vermelha, ensanguentada,
tem notas marciais, soa como um clarim.


in Claridades do Sul

FRANCIS PONGE

O INSIGNIFICANTE

"O que há de mais atrativo que o azul, a não ser uma nuvem, na dócil claridade?
Por isso prefiro ao silêncio uma teoria qualquer e, mais ainda, a uma página branca um escrito quando passa por insignificante.
É todo meu exercício e meu suspiro higiênico."


APOCALIPSES
1
Com a aurora a ressumar, este sinal: em minha janela, uma árvore nua.
2
Um grito esquartejou a aurora.
Ao homem que retomara o espelho, pareceu-lhe que uma nova noite o invadia.
Suplicava que lhe fosse poupada essa insustentável evidência.

(Trad de Júlio Castañon Guimarães)




Francis Ponge é, por excelência, o poeta das coisas que exigem definições, das coisas partidas, das coisas naturais, das coisas inanimadas e animadas. Ele descreve o universo, os meteoros, a chuva, o fogo. Encanta-se com os moluscos, ostras, caracóis. Busca a todo momento dar voz às coisas silenciosas. Traz à luz o mundo mágico da natureza. No Proemas, Ponge diz que “o homem julga a natureza absurda, ou misteriosa, ou madrasta. Bem. Mas a natureza não existe a não ser pelo homem”. Ele projeta, idealiza o homem harmonizado com os quatro elementos: a terra, o fogo, a água e o ar.Pedro Maciel -- in www.culturapara.art.br/.../francisponge/francisponge.htm

António Lobo Antunes- crónica

Que é do seu carro, pai?
Há tantos automóveis a chegarem, porque carga de água não é o dele que chega? Passei de médico a doente, senhor, tive um cancro que o Henrique operou como só ele sabe fazer, sofri como um cachorro, radioterapia, quimioterapia, um internamento doloroso, venho para os exames periódicos
10:41 Quinta-feira, 6 de Ago de 2009

Quando tenho de ir ao Hospital de Santa Maria julgo sempre que vou encontrar o meu pai, de bata, capote e cachimbo, a olhar ao microscópio. Cada porta é a porta do gabinete dele, com as fotografias dos meus mestres na parede, as lâminas, os livros. Era um pai diferente do pai de casa, meio pai, meio doutor, muito mais simpático, quase afectuoso. Apresentava-me
- O meu rapaz
ele que nunca me chamou
- Meu rapaz
fora dali. Até me mostrava o Serviço e parecia ter orgulho em mim, eu que, mau aluno, tão poucos motivos de orgulho lhe dava. Um professor dizia
- O Lobo Antunes tem dois filhos: um é bom, o outro é uma nódoa
e no entanto, que estranho, o meu pai, sempre impiedoso, não parecia totalmente descontente com a nódoa, que multiplicava as asneiras, não ia às aulas e passava o tempo a escrever. Dava-me a impressão de achar que eu estava fadado para altos destinos embora nunca falasse nisso, dava-me a impressão que qualquer coisa em mim o envaidecia:
- O António tem faísca
soltava ele de vez em quando
- O António tem faísca
e estou para saber onde foi descobrir a faísca porque o António apanhava notas miseráveis, e só não chumbou mais ainda porque os examinadores eram amigos do pai dele. Lembro-me do bilhete que o catedrático de Anatomia mandou após uma reprovação estrondosa
O seu filho esteve aqui e não respondeu a uma única pergunta; como calcula não tive outro remédio senão, etc
e o meu pai a exibir-me o bilhete
- Olha para isto
fingindo não reparar nos cadernos em que eu lutava com a Imortalidade, indiferente a ossos, músculos e articulações. Passei os estágios de Obstetrícia a disparar extintores de incêndio nos corredores e a namoriscar enfermeiras, os meses de Pediatria na secção de prematuros porque a assistente parecia apaixonada por mim e os seus dedos estavam sempre nos sítios em que eu tinha de tocar e de repente, um dia, diante de um rapaz a morrer, dei conta, estupefacto, da grandeza de trabalhar com o sofrimento e esforcei--me por ser menos nódoa por respeito para com a dor. Apetecia-me ter dez vidas, nove para escrever e uma para curar pessoas, julgo que me tornei um profissional sério e enquanto médico, pai, não o desiludi, embora fosse muito difícil tentar, ao mesmo tempo, compor livros e ajudar os outros. A convicção que não passava de um clínico honesto como tantos, ao passo que apenas eu podia realizar com palavras o que sentia existir dentro de mim não me tornou complicada a escolha e penso que tenho realizado o que o meu pai, sem nunca o ter formulado, sonhava: julgo que sempre quis ser um artista mas faltavam-lhe a sensibilidade e os meios de expressão. A técnica é o menos, aprende-se, custa, leva séculos mas aprende-se, o resto, a tal faísca, ou se nasce com isso ou não vale a pena: a gente entra numa livraria e pasma: milhares de livros, e apenas quatro ou cinco escritores. Em Portugal quantos haverá? Não mais que dois, três na melhor das hipóteses. O resto são fabricantes de parágrafos, para quê doirar a pílula, e creio que o meu pai tinha a dolorosa consciência disto. Mas era um excelente neuropatologista e o seu opus magnum, a Classificação Histológica dos Tumores do Sistema Nervoso Central, uma obra, para a época, importante, formulada numa prosa escorreita a que não faltava elegância e a que sobrava rigor, se assim me posso exprimir porque o rigor nunca sobra. E eu envaidecia-me de si. Em consequência dessa vaidade, também, quando entro no Hospital de Santa Maria acho que vou encontrá-lo e nos pátios, por instinto, procuro o seu carro. Não o descubro e imagino logo que deve tê-lo arrumado mais longe. Há tantos automóveis a chegarem, porque carga de água não é o dele que chega? Passei de médico a doente, senhor, tive um cancro que o Henrique operou como só ele sabe fazer, sofri como um cachorro, radioterapia, quimioterapia, um internamento doloroso, venho para os exames periódicos
(- Estou tranquilo mas atento
disse o Luís na última consulta)
existem bastantes probabilidades de estar curado, não se preocupe comigo pai, espero conseguir acabar o meu trabalho: terminei há pouco um livro, falta-me o último, depois se vê. Mas, caramba, gostava que nos cruzássemos no hospital, no seu hospital, como nas alturas em que ia procurá--lo à hora do almoço para a boleia até casa. Gostava de o ver tirar o capote e a bata, pôr o casaco, descermos até cá baixo, voltarmos a Benfica, já não meio pai, meio doutor, pai apenas. É que não ia ter consigo há muito tempo, não, mentira, anteontem, ontem, esta manhã, há cinco minutos se tanto: os anos não passaram, ainda me falta fazer má figura em vários exames, envergonhá-lo um bocado. O seu rapaz, o que tem faísca, o que vai mudar a literatura. E já agora, acessoriamente, acabar o curso porque isso dos artistas é incerto, o que vai ser dele? Por sorte não foi mal, não morre à míngua. E gostei de
fazer clínica, garanto-lhe, como garanto que enquanto médico não deixei mal o seu nome, não deixei mal o nome do João. Os livros são uma questão entre mim e a eternidade, esses não morrem, ao passo que o seu rapaz, o das faíscas, vai-se. Não merece a pena estarmos para aqui com tretas, vai-se. Mas, entre nós, sabe como é que me apetecia ir? Batia-lhe à porta do gabinete, via-o tirar o capote e a bata, pôr o casaco, descíamos até cá baixo e fazíamos de conta que estávamos a voltar para Benfica, ou antes o meu pai fazia de conta que me estava a levar para Benfica. Vê a ideia? Nada de enterros, de cerimónias, de solenidades: estávamos apenas a regressar a casa. A propósito de casa, em que sítio deixou o carro, senhor?

Blaga Dimitrova

Ars Poetica

Escreve cada um dos teus poemas
como se fosse o último.
Nesta era, atomicamente saturada,
carregada com terrorismo,
voando com velocidade supersónica,
a morte chega com uma brusquidão aterrorizadora.
Envia cada uma das tuas palavras
como se fosse a última carta antes da execução,
um apelo gravado no muro de uma prisão.
Não tens o direito de mentir,
nem o de brincar às escondidas.
Não terás simplesmente tempo
para corrigir os teus erros.
Escreve cada um dos teus poemas,
concisamente, impiedosamente,
com sangue - como se fosse o último.

Blaga Dimitrova

Pierre Emmanuel

MEUS OLHOS MINHAS MÃOS – Pierre Emmanuel


Meus olhos minhas mãos meu reino aí se encontra
Meus olhos minha boca e o côncavo das mãos.
Nele de noite enxergo: o dia me é fantasma
Com o vento dialogo: e nada digo aos meus.
Eu que bem poderia um céu na mão beber
A borra tão somente em mim posso guardar.

Crispar eu não consigo os dedos em mais nada
Os meus olhos se abrindo as pálpebras queimaram
O que foge de mim é o bem que me restou
E que perdido está livrando-me da sede.
Minha língua secou, molhá-la tento em vão
Proferida a palavra esvai-se logo em luz.

Mas então que sou eu? Oblato da miséria
Que o ser reduz a fome ao lhe ofertar o seio.
Eu morro sem cessar para as coisas que espero
Esta morte porém de morrer me preserva.
Quanta luz tu me dás ó nada ó meu segredo
Na verdade é ser Deus ser pobre desse jeito.

Tradução de Cláudio Veiga

A RAPOSA – Charles Tomlinson

A RAPOSA – Charles Tomlinson


Quando vi a raposa, estava ela de joelhos
na neve: nada levaria a dizer
que, curvado sobre as patas da frente quebradas,
o bicho estava morto – a não ser porque imóvel.

Defronte de mim, um cúmulo inclinava-se
através do campo no cimo do monte. O vento
tinha-o escarpado como um alpe todo de neve, e
para onde foi agora o monte?

Não havia outro caminho:
tirei lá as pernas
e as botas e voltei aos meus trilhos,
mas já um milhão de partículas de neve sopradas, fluindo, os enchiam.

De topo abobadado e depois cômico,
o cúmulo zombava de mim,
como se todo o monte
infestado de raposas fosse um crânio de raposa.

Curvas de vieira e veios
em puro empilhado ondulavam e luziam, mas o que
havia eu de fazer com tanta beleza
olhada por ele?

Era como escalar por entre as suas fontes brancas,
enquanto o vento cruzado
torturava os joelhos e cada
passo falhado era um mergulho no cegante interior do monte.

Mirabai

Perto do rio uma flauta!
Coração despedaçado,
que resolução é essa
que o flautista desfaz com um sopro?

Águas turvas, roupas escuras,
e Krishna mais negro que nunca –
uma nota da flauta de bambu,
tão pura que deixa Mira fora de si.

Vê, Senhor, este corpo trôpego,
Liberta-o do seu tormento!


Mirabai ( 1498 – 1550 )

Rainer Maria Rilke

O POETA

Já te despedes de mim, Hora.
Teu golpe de asa é o meu açoite.
Só: que fazer da boca, agora?
Que fazer do dia, da noite?

Sem paz, sem amor, sem tecto,
caminho pela vida afora.
Tudo aquilo em que ponho afecto
fica mais rico e me devora.

Rainer Maria Rilke

Soeiro Pereira Gomes, Crónicas

As crianças da minha rua
As crianças da minha rua estiveram na praia - e vieram tristes.
- Coitadinhas, têm saudades do mar - disse-me alguém, talvez a pensar no último flirt do seu último veraneio de pessoa bem vivida.
Mas as crianças da minha rua não têm saudades: só eu sei por que estiveram na praia - e vieram tristes.
*
A minha rua é suja, esburacada, carcomida de velhice. Não tem passeios, porque ali ninguém passeia , nem nome nas esquinas. Mas chamam-lhe a Rua de Detrás, certamente porque as casas, atarracadas, ficam detrás de vivendas dominadoras, e a gente que nelas mora anda sempre atrás nas passadas da vida.
Rua de gente que trabalha. Em certas horas, é silenciosa e quieta; noutras, movimentada e garrulha. Tem fluxos e refluxos , como as águas do mar. As crianças da minha rua não conheciam o mar, mas adoravam a rua.
Pelas tardes cálidas de Verão, os moradores vinham para a soleira das portas, e ali ficavam a tomar o ar, que é fresco e gratuito, e a contar as novidades velhinhas da sua vida sempre igual.
As crianças - umas raquíticas, outras semi-nuas - vinham também (agora já não vêm) espalhar-se em grupos a brincar. E então a rua convertia-se no mundo encantador da sua imaginação. Havia buracos que eram precipícios; pedras que semelhavam castelos; montes de lixo convertidos em florestas. O mar era o fio de água que escorria pelas valetas; os bocados de madeira flutuavam como barcos, os papéis rasgados transformavam-se em peixes. Até a areia, que o vento arrastava aos montões, era removida, com mil cuidados, nas latas enferrujadas.
Nada faltava às crianças da minha rua. Não: faltava-lhes iodo – dissera aquele senhor que tinha saudades do último flirt.
E , certo dia deste Verão, as crianças da minha rua lá foram para a praia, todas iguais nos seus babeiros de riscado, que mãos caridosas talharam em horas de contrição.
Instalaram-se num recanto da praia, sob olhares vigilantes. De manhã, tomavam banho pela mão dos banheiros. Um, dois ... – a respirar. Depois secavam ao sol o fatinho de algodão azul, colado ao corpo enfezado, a tiritar. De tarde, voltavam para o recanto, em filas, duas a duas, e ficavam a revolver a areia, em grupos silenciosos.
Distante, no extremo da praia, outras crianças brincavam. Meninos que possuíam barcos de corda, peixes de borracha coloridos, baldes caprichosos - um mundo de brinquedos.
*
Chegaram há dias. Possuíam um mundo de fantasias, e agora já não olham para o fio de água que escorre pelas valetas, e, nos montes de lixo, as latas e papéis velhos jazem abandonados.
As crianças da minha rua estiveram na praia – e vieram tristes. Mas só eu e elas sabemos porquê.

Soeiro Pereira Gomes, Crónicas

Afonso Henriques Neto

Do significado

A paisagem não vale a pena.
Pesa dizê-lo assim tão duramente,
mas o que posso fazer contra os mascarados
que penetraram os altos muros
e agora coabitam os aposentos desolados?
Já não vale a pena a manhã.
Os embuçados chegaram em surdina
e foram destroçando todos os pilares,
todas as primaveras, as lúcidas esperanças,
vultos tão horrendos que paralisaram o dia.
A noite não significa mais nada.
As casas dormem e não significam nada.
O vento cortou-se em mil fatias de desespero.
Que dimensão canta além da treva,
a face repousada, os olhos claros?

Afonso Henriques Neto

Charles Bukowski

« J'ai un projet, devenir fou »
Charles Bukowski

Rabia’a Al- Adawwya

A Rabi’a perguntaram:
“O que é o amor?”
Ela respondeu: “O amor veio da eternidade
e vai até a eternidade
e jamais foi encontrado, nos setenta mil mundos,
quem dele tenha provado
sem absorver-se em Deus.
Daí vem o ditado:
“Ele os ama e eles O amam”.


Rabia’a Al- Adawwya ( 717-810 )

SU DONGPO

Sobre a pintura de um ramo florido
"Primavera Precoce", de Wang




Quem disse que a pintura deve parecer-se com a realidade?
Quem o disse vê com olhos de não entendimento
Quem disse que o poema deve ter um tema?
Quem o disse perde a poesia do poema
Pintura e poesia têm o mesmo fim:
Frescura límpida, arte para além da arte
Os pardais de Bian Lun piam no papel
As flores de Zhao Chang palpitam
Porém o que são ao lado destes rolos
Pensamentos-linhas, manchas-espíritos?
Quem teria pensado que um pontinho vermelho
Provocaria o desabrochar da primavera?


SU DONGPO (China, 1035-1101)
-trad. Adelino Ínsua)

Charles Tomlinson

A LIÇÃO

Este ano, as cotovias
voam tão cedo e tão alto,
significando, dizes, que este Verão
vai ser quente e seco,
e quem sou eu
para discutir tal profecia?

Vinte anos aqui passados ainda não
me ensinaram a ler com precisão
nem os sinais do tempo nem os sinais do céu:
continuo com o olhar de um recém-chegado,
um olhar citadino:
contudo há ainda tempo
para aprender mais coisas
sobre a estação e o canto:
Verão após Verão.

Charles Tomlinson

antonio machado

Se le vio, caminando entre fusiles
por una calle larga,
salir al campo frio,
aun con estrellas, de la madrugada.
Mataron a Federico
cuando la luz asomaba.
El peloton de verdugos
no oso mirarle a la cara.
Todos cerraron los ojos;
rezaron: ni Dios te salva!
Muerto cayo Federico
sangre en la frente y plomo en las entrañas
que fue en Granada el crimen
sabed - pobre Granada! - en su Granada!
Se les vio caminar...
Labrad, amigos,
de piedra y sueno, en el Alhambra,
un tumulo al poeta,
sobre una fuente donde llora el agua,
y eternamente diga:
el crimen fué en Granada! en su Granada!


Antonio Machado