domingo, 14 de agosto de 2011

LÁGRIMAS DOS OLHOS, COMO CENTELHAS DE SÍLEX


Lágrimas dos olhos, como centelhas de sílex,
como uma palavra justa, arrancar para que serve?
Nada há de especial. A palavra é como fogo,
e o coração do homem não vive de soluços.
Não é absolutamente isso que me atormenta.
Mas levantarmo-nos de madrugada, à chegada do dia,
e dizer a quem vai à frente:
- Felicidade! –
Dar-lhes uma canção, com toda a alegria,
que proteja como uma autêntica armadura,
das palavras que soam vãs e falsas.
Queremos do homem não a centelha mas o fogo.

Margarita Aliger
Tradução de Manuel de Seabra.



Margarita Aliger nasceu em Odessa no ano de 1915. Foi operária, bibliotecária e jornalista. Já em meados da década de 1930, fez estudos de Literatura em Moscovo. Tornou-se conhecida durante a II Guerra Mundial, muito por culpa de um poema, Zoyá, sobre uma jovem estudante enforcada pelos nazis. Zoyá foi publicado em 1942. Margarita tinha-se estreado em 1938 com God rojdéniia. Faleceu no dia 1 de Agosto de 1992.
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OS POEMAS QUE ESCREVAS



Os poemas que escrevas,
ainda que muitos, são
um só, inacabável,
interceptado um dia:

sufocante abertura
por onde irás descendo
a um poço, uma vertigem,
com uma única saída

que, enfim, vislumbrarás
quando já não tiveres olhos.
JOSÉ BENTO *


Sítios, Assírio & Alvim, Lisboa, 2011.
*além de poeta,exímio tradutor de poesia espanhola

PREVISÃO DO TEMPO


Por que insistem os jornais em nos fazer previsão de chuva?

Podem até ter razão, mas o que não informam é que
depois virá o sol. Depois sempre vem o sol,
mesmo para os que morrem. Ou não é isso
o que prometem todas as religiões e os novos dias?

Entretanto vai continuar a chover, melhor estar prevenido.

Walter Cabral de Moura

A MENINA DO BRINQUEDO QUEBRADO

A menina do brinquedo quebrado

Esse poema eu o senti há oito dias, quando fui na segunda-feira da semana passada tomar o café da manhã numa padaria no bairro de Petrópolis, em Natal. De repente me veio à mente a imagem de uma menina com um brinquedo quebrado nas mãos, e que a todos o mostrava, entre esperançosa e desconsolada, mas estranhamente orgulhosa de seu brinquedo quebrado. Era um sentimento tão nobre que pensei que não iria conseguir transcrevê-lo, e fiquei muito feli z ao vê-lo assim em versos tão simples.

Agora lembro de algo que me ocorreu uns dez dias antes, quando de plantão num hospital psiquiátrico público de Natal. Atendi a um casal, um mestre de obras e sua mullher, ambos na faixa dos vinte e poucos anos; o pedreiro estava tendo sucesso na profissão, era inclusive o responsável pelo pagamento dos demais funcionários. Como a empresa demorou a repassar-lhe o dinheiro, ele ficou sem dormir, e com idéias de que o estavam tentando prejudicar deliberadamente, irritadiço, ansioso. É que muita gente ia cobrar-lhe o dinheiro, e ele n]ao tinha como atender aps queixosos. Não sei como descrever o desespero daquela jovem mulher diante da poissibilidade de o marido estar enlouquecendo logo naquele momento em progredia na profissão... Temi pelo píor diante do quadro, isso era por volta da uma hora da tarde. Felizmente, após uma boa soneca provocada por sedativos potentes, o homem, lá pelas dezoito e trinta horas, estava bem disposto e equilibrado, próprio a enfrentar a vida, e pude atender ao pedido da mulher para liberá-lo de volta á sua cidade,. na periferia da Grande Natal.

Ah, como ninguém é obrigado a saber francês, traduzo os versos de Baudelaire no poema "Ao leitor", em epígrafe no meu: "Hipócrita leitor, meu igual (semelhante), meu irmão".

absaam



A MENINA DO BRINQUEDO QUEBRADO
"Hypocrite lecteur, mon semblable, mon frère!"

Eu vi a menina
que ia e que vinha
e em suas mãos tinha
um brinquedo quebrado.

E a todos mostrava
o seu sonho desfeito
- Ainda terá jeito
o brinquedo quebrado?

Há quem passe apressado,
há quem dê atenção;
há quem pegue na mão
o brinquedo quebrado.

Um se irrita, outro ri,
um tenta consolar;
outro quer consertar
o brinquedo quebrado.

Um estica, outro puxa,
há quem dê um aperto...
Mas não tem mais conserto
o brinquedo quebrado...

* * *

Tu conheces aquela menina
que senta na calçada
triste e desconsolada,
seu corpinho abraçado
a um briquedo quebrado?

Pois ela é nossa mãe,
vida, amante e amada;
nossa irmã que por nada
perde a estranha esperança
de voltarmos a ser
novamente a criança
que ela pôde ver
- manhã ensolarada!

O brinquedo sou eu
e és tu - Somos nós!
Desgraçado o que é
de si próprio o algoz;
e que se aos demais
diz sempre estar melhor,
a si mesmo não nega
que se torna pior.

Ainda que cansada
persiste no caminho.
Acha em seu coração
- poço estranho! - um carinho.
E o brinquedo quebrado
por seus dedos tocado
soluça qual um pinho.

Só por ela lembrado,
só por ela guardado,.
só por ela escutado...
O brinquedo quebrado.

Porque assim é aquela menina...

- Tu a conheces, leitor!


Antônio Adriano de Medeiros
agos - 2011

Uma alegria dolorosa


De que nos serve, no sábado à noite, quando a solidão
dos abandonados vem ter connosco à mesa dos cafés,
termos sido aquele a quem se disseram palavras de amor,
terem-nos tocado e olhado, esperado por nós,
enquanto ao longe os automóveis passavam, as pessoas,
apressadas, continuavam a procurar, febris, a felicidade?
Rompem-se as cordas, soam nos rios tristes da memória
os sinos da miséria e da escuridão. E se chove,
a melancolia que nos oprime já não se dilui nessa água suave.
A rapariga que podíamos ter amado, a última,
contempla as folhas verdes das árvores, sorri,
e imagina, sentada ao nosso lado, uma alegria dolorosa,
sem pensar em nós, distraída da densidade baça do nosso olhar.
E à uma da manhã, quando o cansaço vem,
e no espelho da casa de banho de um bar o rosto
se nos revela atormentado, os poros gordurosos,
dirigimo-nos devagar para a saída, dizemos boa-noite,
e é só nossa é a morte secreta, esse abandono.



João Camilo

A Ambição Sublime
Fenda
2001

CADERNO DE ENTARDECER

1

aproximam-se as aranhas do meu projecto de vida,
asas se as tivessem levariam daqui quanto eu risquei
em nome dos vossos interesses, assim o entardecer,

ah as aranhas, as teias, pavores que suporto na pele,
esses livros de versos incompletos, as pedras vazias,
como se nada fosse e ninguém quisesse aparecer,

2

guardai-vos dos dentes, a fera não vem nos livros
desta manhã, anda a jogar ao arco na rua disfarçada
de ternas crianças, se não estivermos atentos nem
as árvores servirão de refúgio, nem os bares, nem o medo,

3

manhã de pequenos corvos sobre coimbra, desfiam-se
as horas como dantes e é tão triste e voam assim baixo
que a terra se encolhe mal lavrada. deste monte, deste
mundo, deste lugar privilegiado no céu da tua boca

onde nem o sol aquece, nem a lua arrefece, longe e gasta.
os motores das chuvas, tudo o que esqueço e se perde
é já deste século, ah isso é tão triste como as manhãs,
como a ronda do cão pelas varandas secretas, sujas,

4

não faltará papel impresso, teremos leis, livros e peles de
animais para fazermos os nossos vestidos. menos uma pena,
menos a opinião dos outros, áparte essas palavras vazias,
e uma rua que se percorre com as mãos nos bolos, triste,

5

escrevo-os, lembrem-se quando pela noite se aproximam
de dentes cerrados, de canos serrados. o chão será de papel,
escrevo-os, e tão torvos os olhos os dedos, lembram-se
da arma perdida em cada palavra, escrevo-os à mesa do café,

6

além está o boi, que é como quem diz, não foi nem podia ser
senão o cartaz dos animais velhos. debaixo de que pedra
colaram o cartaz do seu anúncio? um outro boi assoma
e já se vê o próprio calcanhar da história a amarelecer,

7

era uma vez a mentira nas lentes de uns óculos de sol,

8

mentem as asas do rosto, mentem as pedras do caminho
em definitivo, esvoaçam os pássaros tão lentos e carnívoros,

9

diziam-no cá como em budapeste, mas era demasiado tarde
e, num abrir e fechar de flores, apodreceu a primavera,
os seus fogos de lar, as suas esquinas sem heróis, sem deuses,

10

éramos muitos mais que os mortos, cantávamos na estrada
e andávamos com os pés ensanguentados, aquilo parecia
a conjugação do último dos verbos perdidos, um coração
guardado numa pequena caixa de cartão, ou uma fuga,

11

parecido com as velhas peças de louça nos mármores
dos aparadores, vigiavam-se, afiavam as navalhas
e, sentados, resguardavam todas as palavras do silêncio,

12

assustada, entre a folhagem do jardim dos livros,
tecia o seu pano de linho, os lanhos da vingança,

13

nada lhe digo, sem mágoa, é o tempo que se perde
entre as pedras do ofício. é o verão, os campos
mais secos e um nó na garganta do rio que apodrece,

14

porque me aproximo desta mulher que não tem cores
nem olhos, leio nas suas mãos os anos da fome
guardados num sobrescrito, é um cigarro abandonado,

15

perdemos as cinzas, as terras, os cereais de pragana
e as armas da boca, as rotas já não são as mesmas,
o pó dos caminhos é da cor de um estranho medo,

16

no sabor amargo dos tanques, nada, ninguém cresce,
abrem-se as mãos, ensanguentadas?, e o que cai
no tronco da rapariga das angústias? o regresso
à antiga praia dentro da cabeça, aos teus lábios?

17

em torno dos granitos, os óleos, sobre as águas,
o teu nome como uma torre de fogo e incenso:
e se fingíssemos os invernos? se a língua tocasse,
nos sinos do corpo, o requiem, ou esses venenos?

18

aproximamos os lábios dos lábios, mordemos
a abelha pousada nas costas da mão da acácia,
há um beijo perdido entre as folhas e o amargo
lençol, sobre o teu ombro deixo as palavras,

19

as tuas mãos são as mãos da noite, esse mel
que a língua recolhe no silêncio do corpo.
tocas as raízes, as tardes, as colchas brancas
estendidas, como esses pássaros do outono,

20

esses vales fingidos dividem o horizonte, três aguarelas
marcam o espaço tangente, os rostos vigiam-se, lâminas
em vez de pão em cada manhã, dizem que é coimbra
e eu voo, passa o tempo e a terra de novo se mistura

na voz dos pássaros cantores, no pregão gravado no vinil,
corram as cortinas, é tarde, leio os jornais de ontem,
adormeço rangendo os dentes, rápidos, os corvos descem,
do alto das colinas? mas o olhar desaparece, incomodado,

21

sob as chuvas as palavras caem, ou ecos de palavras,
dissolvem-se, revestidas de um acre mistério onde
os retratos dividem ambas as mãos pelas sombras,
desertos, árvores, entre as naus e os náufragos de outubro,

22

só e em silêncio? apenas ramos de acácias, noites
mortas (as mãos doem?), só e em silêncio? os olhos
perdem-se nos armários e nos mapas do sono,

escrevo, pronuncio, abro a cabeça à fala, importa
um boletim meteorológico, um deus arrependido,
exangue, bíblico, a suicidar-se no bolso do casaco?

e poderia aproximar a língua, em silêncio? enlaçar-te,
estremecer e surpreender-te (as coisas que acontecem
no fio de uma vida) então, é assim o entardecer? na loja
dos horrores, entre restos de deuses, de terra e de anjos,

24

escrevo uma carta, inutilmente a escrevo, adormeço
a desenhar, inutilmente adormeço, que é feito do sonho
e da cobra do medo? conto as pedras, as folhas, os dias,
os lábios, os dedos, os rodeios, as letras do meu nome

(José Viale Moutinho)

Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias

Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias
para te dizer, com a simplicidade do bater do coração,
que afinal ao pé de ti apenas sinto as mãos mais frias
e esta ternura dos olhos que se dão.
Nem asas, nem estrelas, nem flores sem chão
- mas o desejo de ser a noite que me guias
e baixinho ao bafo da tua respiração
contar-te todas as minhas covardias.
Ao pé de ti não me apetece ser herói
mas abrir-te mais o abismo que me dói
nos cardos deste sol de morte viva.
Ser como sou e ver-te como és:
dois bichos de suor com sombra aos pés.
Complicações de luas e saliva


(José Gomes Ferreira)