quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

René Char (1907-1988), França, tradução de Soledade Santos





J’habite une douleur





Não entregues o cuidado de governar o coração a essas ternuras semelhantes ao outono do qual imitam o ritmo plácido e a agonia afável. O olhar enruga-se precocemente. O sofrimento conhece poucas palavras. É melhor que te deites sem fardos: sonharás com o futuro e a cama ser-te-á leve. Sonharás que a tua casa não tem vidros. Estás impaciente para te unires ao vento, ao vento que numa noite percorre um ano. Outros cantarão a encarnação melodiosa, a carne que não personifica senão o feitiço da ampulheta. Tu condenarás a gratidão que se repete. Mais tarde, identificar-te-ão a um qualquer gigante desintegrado, senhor do impossível.

E no entanto.

O que fizeste apenas aumentou o peso da tua noite. Voltaste à pesca nas muralhas, à canícula sem verão. Estás furioso contra o teu amor no centro de uma conivência aflita. Idealizas a casa perfeita que nunca verás edificada. Para quando a safra do abismo? Mas tu vazaste os olhos do leão. Tu julgas ver a beleza passar por cima das lavandas negras...

O que é que te ergueu, ainda uma vez, um pouco mais alto, sem te convencer?

Não há morada pura.

René Char (1907-1988), França, tradução de Soledade Santos

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