terça-feira, 6 de abril de 2010

Eu não sou professor



Eu não sou professor



Eu não sou professor
Para te ensinar a amar,
Também os peixes não precisam de um professor
Que os ensine a nadar
E os pássaros de um professor
Que os ensine a voar.
Nada pelos teus próprios meios.
Voa pelos teus próprios meios.
O amor não tem manuais
E os maiores amantes da história
Não sabiam ler.

Nizar Qabbani

ARTE MENOR



Desta pedra tosca
de que fui formado
tento esculpir
um melhor retrato.

Ó bruta matéria
de magma e carste
em que o cinzel
tem dificuldade!

De onde vieram
tuas tais durezas,
donde foram expulsas,
de que profundezas?

Sendo tão precário
o material,
resultará obra
dúbia, parcial.

Há mais: contribui
pra não ficar bom
ter o escultor
limitado dom.

Nessas circunstâncias
a ninguém estranha –
melhor se a pedra
voltasse à montanha.

Walter Cabral de Moura

Acto ou qualquer outra Coisa





Acto ou qualquer outra coisa. Eu sei, aquela mulher
tão tranquila
vendo da janela do quarto o porto
vendo dos barcos o fumo rente aos mastros
eu sei

essa mulher bem podia ter o nome quando
por detrás da janela observa
outras coisas que não são barcos e mastros.

Talvez os homenzinhos de azul despertem seus desejos
ou só o azul desbotado, mas não
não nessa janela nesse porto de cidade que não sei
e ela sabe

envolta no vestido, ruivo o cabelo,
envolta nas madeiras da portada.
O chão deve ranger sob os seus pés.


João Miguel Fernandes Jorge, in "Continentes e Desertos"

A menina que engomava palavras

Era uma vez uma mulher que engomava palavras.

Sim, leram bem.
Ela passava palavras a ferro. Como? Era simples.
Abria o seu dicionário Cândido Figueiredo na letra pretendida e tirava a palavra para fora, com todo o cuidado. Esta tarefa revelava uma hermeneuta disfarçada de dona de casa. Porque ela passava as palavras a ferro para as esvaziar de polissemias e outras ambiguidades, procurando isolar o signo linguístico para o definir com a máxima clareza. Achava que na vida, as palavras deviam ser muito bem passadas a ferro antes de vestidas. Tinha começado por passar a ferro as palavras verdade, amor, medo, nuvem, gato e chocolate.
A palavra verdade tinha-se tornado invisível, a palavra gato tinha-se eriçado, a palavra chocolate tinha-se derretido e a palavra amor tinha suspirado.
A palavra nuvem tinha-se evaporado e a palavra Deus, inexplicavelmente, não tinha corpo e por isso não a tinha conseguido remover da folha de papel.
Tinha-me esquecido da palavra medo: essa tremia tanto, que o ferro não a conseguiu passar e desistiu.
No momento em que esta história aconteceu, tinha a palavra alegria em cima da tábua. Procurava, pela persistência, algo que apenas se consegue pelo acaso: descobrir o sentido da palavra alegria. Não uma minúscula alegria, disfarçada de paradigma da alegria, mas a alegria inicial e imaculada. Queria estrear a palavra alegria e vesti-la pela primeira vez. O pano que forrava a tábua era um enorme silêncio azul e a palavra alegria estava a dar realmente muito trabalho a engomar. Seria da gola do g, da manga comprida do l ou do remendo do i? Os bolsos dos dois “a” também pediam paciência e atenção.
E depois, tinha de se borrifar a palavra, não com gotas de água, mas com lágrimas.
Quando a começou a passar às avessas, revelou-se a tristeza. Lembrava um vestido de festa, sempre com rugas e memórias imperfeitas das suas anteriores alegrias. As palavras podem revelar-se bem mais teimosas do que um tecido, pois têm pregas acumuladas. Estava perdida nestes pensamentos quando ouviu um insistente toque de campainha. Esqueceu-se do ferro em cima da palavra alegria, enquanto atendia o belo homem que, sem saber, se tinha enganado no andar.
A palavra acabou por se queimar e o calor que devorava as letras iluminou o seu coração. Teve uma pequena epifania no seu quotidiano banal.
Só mais tarde, quando lhe cheirou a queimado, ficou a pensar se conseguiria remendar a alegria ou se a teria perdido para sempre.
Maria João Freitas

Texto originalmente publicado na revista nós do jornal i de 1 de Agosto, a convite do seu editor Pedro Rolo Duarte.