domingo, 14 de agosto de 2011

CADERNO DE ENTARDECER

1

aproximam-se as aranhas do meu projecto de vida,
asas se as tivessem levariam daqui quanto eu risquei
em nome dos vossos interesses, assim o entardecer,

ah as aranhas, as teias, pavores que suporto na pele,
esses livros de versos incompletos, as pedras vazias,
como se nada fosse e ninguém quisesse aparecer,

2

guardai-vos dos dentes, a fera não vem nos livros
desta manhã, anda a jogar ao arco na rua disfarçada
de ternas crianças, se não estivermos atentos nem
as árvores servirão de refúgio, nem os bares, nem o medo,

3

manhã de pequenos corvos sobre coimbra, desfiam-se
as horas como dantes e é tão triste e voam assim baixo
que a terra se encolhe mal lavrada. deste monte, deste
mundo, deste lugar privilegiado no céu da tua boca

onde nem o sol aquece, nem a lua arrefece, longe e gasta.
os motores das chuvas, tudo o que esqueço e se perde
é já deste século, ah isso é tão triste como as manhãs,
como a ronda do cão pelas varandas secretas, sujas,

4

não faltará papel impresso, teremos leis, livros e peles de
animais para fazermos os nossos vestidos. menos uma pena,
menos a opinião dos outros, áparte essas palavras vazias,
e uma rua que se percorre com as mãos nos bolos, triste,

5

escrevo-os, lembrem-se quando pela noite se aproximam
de dentes cerrados, de canos serrados. o chão será de papel,
escrevo-os, e tão torvos os olhos os dedos, lembram-se
da arma perdida em cada palavra, escrevo-os à mesa do café,

6

além está o boi, que é como quem diz, não foi nem podia ser
senão o cartaz dos animais velhos. debaixo de que pedra
colaram o cartaz do seu anúncio? um outro boi assoma
e já se vê o próprio calcanhar da história a amarelecer,

7

era uma vez a mentira nas lentes de uns óculos de sol,

8

mentem as asas do rosto, mentem as pedras do caminho
em definitivo, esvoaçam os pássaros tão lentos e carnívoros,

9

diziam-no cá como em budapeste, mas era demasiado tarde
e, num abrir e fechar de flores, apodreceu a primavera,
os seus fogos de lar, as suas esquinas sem heróis, sem deuses,

10

éramos muitos mais que os mortos, cantávamos na estrada
e andávamos com os pés ensanguentados, aquilo parecia
a conjugação do último dos verbos perdidos, um coração
guardado numa pequena caixa de cartão, ou uma fuga,

11

parecido com as velhas peças de louça nos mármores
dos aparadores, vigiavam-se, afiavam as navalhas
e, sentados, resguardavam todas as palavras do silêncio,

12

assustada, entre a folhagem do jardim dos livros,
tecia o seu pano de linho, os lanhos da vingança,

13

nada lhe digo, sem mágoa, é o tempo que se perde
entre as pedras do ofício. é o verão, os campos
mais secos e um nó na garganta do rio que apodrece,

14

porque me aproximo desta mulher que não tem cores
nem olhos, leio nas suas mãos os anos da fome
guardados num sobrescrito, é um cigarro abandonado,

15

perdemos as cinzas, as terras, os cereais de pragana
e as armas da boca, as rotas já não são as mesmas,
o pó dos caminhos é da cor de um estranho medo,

16

no sabor amargo dos tanques, nada, ninguém cresce,
abrem-se as mãos, ensanguentadas?, e o que cai
no tronco da rapariga das angústias? o regresso
à antiga praia dentro da cabeça, aos teus lábios?

17

em torno dos granitos, os óleos, sobre as águas,
o teu nome como uma torre de fogo e incenso:
e se fingíssemos os invernos? se a língua tocasse,
nos sinos do corpo, o requiem, ou esses venenos?

18

aproximamos os lábios dos lábios, mordemos
a abelha pousada nas costas da mão da acácia,
há um beijo perdido entre as folhas e o amargo
lençol, sobre o teu ombro deixo as palavras,

19

as tuas mãos são as mãos da noite, esse mel
que a língua recolhe no silêncio do corpo.
tocas as raízes, as tardes, as colchas brancas
estendidas, como esses pássaros do outono,

20

esses vales fingidos dividem o horizonte, três aguarelas
marcam o espaço tangente, os rostos vigiam-se, lâminas
em vez de pão em cada manhã, dizem que é coimbra
e eu voo, passa o tempo e a terra de novo se mistura

na voz dos pássaros cantores, no pregão gravado no vinil,
corram as cortinas, é tarde, leio os jornais de ontem,
adormeço rangendo os dentes, rápidos, os corvos descem,
do alto das colinas? mas o olhar desaparece, incomodado,

21

sob as chuvas as palavras caem, ou ecos de palavras,
dissolvem-se, revestidas de um acre mistério onde
os retratos dividem ambas as mãos pelas sombras,
desertos, árvores, entre as naus e os náufragos de outubro,

22

só e em silêncio? apenas ramos de acácias, noites
mortas (as mãos doem?), só e em silêncio? os olhos
perdem-se nos armários e nos mapas do sono,

escrevo, pronuncio, abro a cabeça à fala, importa
um boletim meteorológico, um deus arrependido,
exangue, bíblico, a suicidar-se no bolso do casaco?

e poderia aproximar a língua, em silêncio? enlaçar-te,
estremecer e surpreender-te (as coisas que acontecem
no fio de uma vida) então, é assim o entardecer? na loja
dos horrores, entre restos de deuses, de terra e de anjos,

24

escrevo uma carta, inutilmente a escrevo, adormeço
a desenhar, inutilmente adormeço, que é feito do sonho
e da cobra do medo? conto as pedras, as folhas, os dias,
os lábios, os dedos, os rodeios, as letras do meu nome

(José Viale Moutinho)

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