1
aproximam-se as aranhas do meu projecto de vida,
asas se as tivessem levariam daqui quanto eu risquei
em nome dos vossos interesses, assim o entardecer,
ah as aranhas, as teias, pavores que suporto na pele,
esses livros de versos incompletos, as pedras vazias,
como se nada fosse e ninguém quisesse aparecer,
2
guardai-vos dos dentes, a fera não vem nos livros
desta manhã, anda a jogar ao arco na rua disfarçada
de ternas crianças, se não estivermos atentos nem
as árvores servirão de refúgio, nem os bares, nem o medo,
3
manhã de pequenos corvos sobre coimbra, desfiam-se
as horas como dantes e é tão triste e voam assim baixo
que a terra se encolhe mal lavrada. deste monte, deste
mundo, deste lugar privilegiado no céu da tua boca
onde nem o sol aquece, nem a lua arrefece, longe e gasta.
os motores das chuvas, tudo o que esqueço e se perde
é já deste século, ah isso é tão triste como as manhãs,
como a ronda do cão pelas varandas secretas, sujas,
4
não faltará papel impresso, teremos leis, livros e peles de
animais para fazermos os nossos vestidos. menos uma pena,
menos a opinião dos outros, áparte essas palavras vazias,
e uma rua que se percorre com as mãos nos bolos, triste,
5
escrevo-os, lembrem-se quando pela noite se aproximam
de dentes cerrados, de canos serrados. o chão será de papel,
escrevo-os, e tão torvos os olhos os dedos, lembram-se
da arma perdida em cada palavra, escrevo-os à mesa do café,
6
além está o boi, que é como quem diz, não foi nem podia ser
senão o cartaz dos animais velhos. debaixo de que pedra
colaram o cartaz do seu anúncio? um outro boi assoma
e já se vê o próprio calcanhar da história a amarelecer,
7
era uma vez a mentira nas lentes de uns óculos de sol,
8
mentem as asas do rosto, mentem as pedras do caminho
em definitivo, esvoaçam os pássaros tão lentos e carnívoros,
9
diziam-no cá como em budapeste, mas era demasiado tarde
e, num abrir e fechar de flores, apodreceu a primavera,
os seus fogos de lar, as suas esquinas sem heróis, sem deuses,
10
éramos muitos mais que os mortos, cantávamos na estrada
e andávamos com os pés ensanguentados, aquilo parecia
a conjugação do último dos verbos perdidos, um coração
guardado numa pequena caixa de cartão, ou uma fuga,
11
parecido com as velhas peças de louça nos mármores
dos aparadores, vigiavam-se, afiavam as navalhas
e, sentados, resguardavam todas as palavras do silêncio,
12
assustada, entre a folhagem do jardim dos livros,
tecia o seu pano de linho, os lanhos da vingança,
13
nada lhe digo, sem mágoa, é o tempo que se perde
entre as pedras do ofício. é o verão, os campos
mais secos e um nó na garganta do rio que apodrece,
14
porque me aproximo desta mulher que não tem cores
nem olhos, leio nas suas mãos os anos da fome
guardados num sobrescrito, é um cigarro abandonado,
15
perdemos as cinzas, as terras, os cereais de pragana
e as armas da boca, as rotas já não são as mesmas,
o pó dos caminhos é da cor de um estranho medo,
16
no sabor amargo dos tanques, nada, ninguém cresce,
abrem-se as mãos, ensanguentadas?, e o que cai
no tronco da rapariga das angústias? o regresso
à antiga praia dentro da cabeça, aos teus lábios?
17
em torno dos granitos, os óleos, sobre as águas,
o teu nome como uma torre de fogo e incenso:
e se fingíssemos os invernos? se a língua tocasse,
nos sinos do corpo, o requiem, ou esses venenos?
18
aproximamos os lábios dos lábios, mordemos
a abelha pousada nas costas da mão da acácia,
há um beijo perdido entre as folhas e o amargo
lençol, sobre o teu ombro deixo as palavras,
19
as tuas mãos são as mãos da noite, esse mel
que a língua recolhe no silêncio do corpo.
tocas as raízes, as tardes, as colchas brancas
estendidas, como esses pássaros do outono,
20
esses vales fingidos dividem o horizonte, três aguarelas
marcam o espaço tangente, os rostos vigiam-se, lâminas
em vez de pão em cada manhã, dizem que é coimbra
e eu voo, passa o tempo e a terra de novo se mistura
na voz dos pássaros cantores, no pregão gravado no vinil,
corram as cortinas, é tarde, leio os jornais de ontem,
adormeço rangendo os dentes, rápidos, os corvos descem,
do alto das colinas? mas o olhar desaparece, incomodado,
21
sob as chuvas as palavras caem, ou ecos de palavras,
dissolvem-se, revestidas de um acre mistério onde
os retratos dividem ambas as mãos pelas sombras,
desertos, árvores, entre as naus e os náufragos de outubro,
22
só e em silêncio? apenas ramos de acácias, noites
mortas (as mãos doem?), só e em silêncio? os olhos
perdem-se nos armários e nos mapas do sono,
escrevo, pronuncio, abro a cabeça à fala, importa
um boletim meteorológico, um deus arrependido,
exangue, bíblico, a suicidar-se no bolso do casaco?
e poderia aproximar a língua, em silêncio? enlaçar-te,
estremecer e surpreender-te (as coisas que acontecem
no fio de uma vida) então, é assim o entardecer? na loja
dos horrores, entre restos de deuses, de terra e de anjos,
24
escrevo uma carta, inutilmente a escrevo, adormeço
a desenhar, inutilmente adormeço, que é feito do sonho
e da cobra do medo? conto as pedras, as folhas, os dias,
os lábios, os dedos, os rodeios, as letras do meu nome
(José Viale Moutinho)
domingo, 14 de agosto de 2011
CADERNO DE ENTARDECER
Publicada por M.A. à(s) 10:19
Etiquetas: José Viale Moutinho
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