quarta-feira, 19 de agosto de 2009

O ESTRANHO – Murilo Mendes

O ESTRANHO – Murilo Mendes
 
 
Quantas vezes noturno me apareço
Na própria reveladora luz do dia:
Palpo-me tremendo sem me incorporar,
Flutuo numa atmosfera rarefeita
Anterior à forma organizada.
Alheio ao zumbido da criação
Perco antes de tudo a lembrança do batismo,
Dos sinais plásticos que me foram transmitidos.
Passo épocas inteiras sem me recordar
Que o Cristo morreu e ressuscitou comigo,
Que ouvi a voz de Abraão nas nuvens
E que me transformei de amor.
 
Outras vezes
Adivinho uma figura cantante me embalando
Sob o pretexto de me reconduzir
Ao lar perdido, ao fogo da montanha,
Onde antigos vestígios se guardavam
De fala celeste no santuário.
Toda de branca vestida a morte vejo:
Moça de nobre arquitetura clássica,
Ao véu voam seus velozes véus.
Dançando a todos engana,
Mas de seu mesmo riso nasce o fim.
Até que um dia vou-me aproximando
Dos arredores familiares do universo
Em que situo as órbitas espantadas:
E a lua emergindo em seu crescente,
Minha própria identidade me confere.

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