quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Érico Nogueira



TRÊS POEMAS de ÉRICO NOGUEIRA



DILÚCULO

Um lume chega – ou vem do alto, ou vem de baixo,
a treva, devagar, expele um novo dia;
sorriem bocas, mas num outro pasto,
que neste não há boca que sorria.

A folha verde desprendeu-se do salgueiro,
vagou luzindo pelo vento largo:
secou a folha logo, por inteiro,
o lume naufragou, salgado como um barco.


GLOSA DE MOTE ALHEIO


Sem bússola, sem mapa ou astrolábio
com que se ache, amigo, a tua estrela,
apruma o pinho, põe no mastro a ave
que te pareça bem ali, de vela;
daquela funda treva não se sabe
como voltar, a altura não se anela:
te resta o mar pisado e repisado,
pescar, talvez, o que já foi pescado.

Essa mão ergue, amigo, num instante,
outra mão em seguida o arruína:
por isso não há rota, e o navegante
perde o que teve, ganha o que não tinha,
e sem saber se é quartzo, se diamante,
lapida o que lhe coube na partilha;
de um torso sem os membros quem cinzela
faz ave se calhar, destino, estela.


AS QUATRO ESTAÇÕES


1.
A noite, e tudo o que é escuro e cíclico
e liquefaz-se ao tempo do farol,
está predita em todos os testículos,
nas orquídeas que chegam com a estação,
embora não vejamos. Só o ouvido,
que pinça o inominado, pinça, então,
do rio a cuja beira estive, estou,
o ar da bolha, da que morre o grito.
Eu não ouvia bem naquele tempo
quando meu olho, então recém-aberto,
se iluminava, fixo no desenho
que as folhas têm olhadas mais de perto;
tanto pior, tanto mais fria a noite
de quem vai nu ao mar, vai nu ao monte.

2.
a João Ângelo

Durante o átimo em que se aniquilam
dos corpos toda sombra e traço dúbio,
quando o globo é mais túrgido e mais nítido,
tem mais saliva a língua, que mergulha,
é quando o espinho, antes imprevisto
em fruta incandescente assim, e úmida,
entala na garganta e não afunda
se não levar quem mergulhou consigo.
Eu cuidava que as águas eram rasas,
e que corais nem pérolas havia
senão os ossos que à maré mesquinha
apetecia abandonar na praia:
lambido o fogo, vi-me em água densa
abrindo a ostra ao fogo nada infensa.

3.
Amarelece o ar, a terra, a água;
o fogo amadurece e, doce, azula;
se incide sobre as pedras na penumbra,
ele descobre-lhes a face exata
e delas vai fazendo busto e estátua:
tendo subido aqui, a esta altura,
indiferente sob estio ou chuva,
vejo que pedras tenho só, talhadas,
mas pedras mesmo assim. Pergunto ao fogo
de que me vale a mim a galeria,
se em breve escorrerei ao negro poço
e passarei: “De nada valeria,
se a cerejeira não florisse agora
sob o vento que passa e a luz que doura.”

4.
E a nuvem torna, torna enfim o vidro
de que se enche aquele mar imóvel
onde o cardume acaba, e o rio que corre;
o louro seco, a taça já sem vinho
e a neve elementar no céu friíssimo
parecem proclamar que se dissolve
o quanto pelos lábios dança e escorre:
se o galho esplende, pesa sobre o abismo.
Neste penhasco, na aridez da pedra,
me apronto agora para ser levado,
para voltar enfim a ser areia,
e penso em tudo, e olho a todo lado;
não sei se é luz ou não o que há no gelo,
mas sei que é calmo, que não vou temê-lo.

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Érico Nogueira nasceu em Bragança Paulista em 1979. Poeta e estudioso da Antigüidade greco-latina, ganhou o “Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura” de 2008 com O Livro de Scardanelli (É Realizações, 2008), de que selecionamos os poemas aqui publicados. Vive em São Paulo, onde trabalha como editor (Dicta & Contradicta) e professor de línguas e literaturas clássicas (Instituto Internacional de Ciências Sociais).


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