quarta-feira, 19 de agosto de 2009

António Lobo Antunes- crónica

Que é do seu carro, pai?
Há tantos automóveis a chegarem, porque carga de água não é o dele que chega? Passei de médico a doente, senhor, tive um cancro que o Henrique operou como só ele sabe fazer, sofri como um cachorro, radioterapia, quimioterapia, um internamento doloroso, venho para os exames periódicos
10:41 Quinta-feira, 6 de Ago de 2009

Quando tenho de ir ao Hospital de Santa Maria julgo sempre que vou encontrar o meu pai, de bata, capote e cachimbo, a olhar ao microscópio. Cada porta é a porta do gabinete dele, com as fotografias dos meus mestres na parede, as lâminas, os livros. Era um pai diferente do pai de casa, meio pai, meio doutor, muito mais simpático, quase afectuoso. Apresentava-me
- O meu rapaz
ele que nunca me chamou
- Meu rapaz
fora dali. Até me mostrava o Serviço e parecia ter orgulho em mim, eu que, mau aluno, tão poucos motivos de orgulho lhe dava. Um professor dizia
- O Lobo Antunes tem dois filhos: um é bom, o outro é uma nódoa
e no entanto, que estranho, o meu pai, sempre impiedoso, não parecia totalmente descontente com a nódoa, que multiplicava as asneiras, não ia às aulas e passava o tempo a escrever. Dava-me a impressão de achar que eu estava fadado para altos destinos embora nunca falasse nisso, dava-me a impressão que qualquer coisa em mim o envaidecia:
- O António tem faísca
soltava ele de vez em quando
- O António tem faísca
e estou para saber onde foi descobrir a faísca porque o António apanhava notas miseráveis, e só não chumbou mais ainda porque os examinadores eram amigos do pai dele. Lembro-me do bilhete que o catedrático de Anatomia mandou após uma reprovação estrondosa
O seu filho esteve aqui e não respondeu a uma única pergunta; como calcula não tive outro remédio senão, etc
e o meu pai a exibir-me o bilhete
- Olha para isto
fingindo não reparar nos cadernos em que eu lutava com a Imortalidade, indiferente a ossos, músculos e articulações. Passei os estágios de Obstetrícia a disparar extintores de incêndio nos corredores e a namoriscar enfermeiras, os meses de Pediatria na secção de prematuros porque a assistente parecia apaixonada por mim e os seus dedos estavam sempre nos sítios em que eu tinha de tocar e de repente, um dia, diante de um rapaz a morrer, dei conta, estupefacto, da grandeza de trabalhar com o sofrimento e esforcei--me por ser menos nódoa por respeito para com a dor. Apetecia-me ter dez vidas, nove para escrever e uma para curar pessoas, julgo que me tornei um profissional sério e enquanto médico, pai, não o desiludi, embora fosse muito difícil tentar, ao mesmo tempo, compor livros e ajudar os outros. A convicção que não passava de um clínico honesto como tantos, ao passo que apenas eu podia realizar com palavras o que sentia existir dentro de mim não me tornou complicada a escolha e penso que tenho realizado o que o meu pai, sem nunca o ter formulado, sonhava: julgo que sempre quis ser um artista mas faltavam-lhe a sensibilidade e os meios de expressão. A técnica é o menos, aprende-se, custa, leva séculos mas aprende-se, o resto, a tal faísca, ou se nasce com isso ou não vale a pena: a gente entra numa livraria e pasma: milhares de livros, e apenas quatro ou cinco escritores. Em Portugal quantos haverá? Não mais que dois, três na melhor das hipóteses. O resto são fabricantes de parágrafos, para quê doirar a pílula, e creio que o meu pai tinha a dolorosa consciência disto. Mas era um excelente neuropatologista e o seu opus magnum, a Classificação Histológica dos Tumores do Sistema Nervoso Central, uma obra, para a época, importante, formulada numa prosa escorreita a que não faltava elegância e a que sobrava rigor, se assim me posso exprimir porque o rigor nunca sobra. E eu envaidecia-me de si. Em consequência dessa vaidade, também, quando entro no Hospital de Santa Maria acho que vou encontrá-lo e nos pátios, por instinto, procuro o seu carro. Não o descubro e imagino logo que deve tê-lo arrumado mais longe. Há tantos automóveis a chegarem, porque carga de água não é o dele que chega? Passei de médico a doente, senhor, tive um cancro que o Henrique operou como só ele sabe fazer, sofri como um cachorro, radioterapia, quimioterapia, um internamento doloroso, venho para os exames periódicos
(- Estou tranquilo mas atento
disse o Luís na última consulta)
existem bastantes probabilidades de estar curado, não se preocupe comigo pai, espero conseguir acabar o meu trabalho: terminei há pouco um livro, falta-me o último, depois se vê. Mas, caramba, gostava que nos cruzássemos no hospital, no seu hospital, como nas alturas em que ia procurá--lo à hora do almoço para a boleia até casa. Gostava de o ver tirar o capote e a bata, pôr o casaco, descermos até cá baixo, voltarmos a Benfica, já não meio pai, meio doutor, pai apenas. É que não ia ter consigo há muito tempo, não, mentira, anteontem, ontem, esta manhã, há cinco minutos se tanto: os anos não passaram, ainda me falta fazer má figura em vários exames, envergonhá-lo um bocado. O seu rapaz, o que tem faísca, o que vai mudar a literatura. E já agora, acessoriamente, acabar o curso porque isso dos artistas é incerto, o que vai ser dele? Por sorte não foi mal, não morre à míngua. E gostei de
fazer clínica, garanto-lhe, como garanto que enquanto médico não deixei mal o seu nome, não deixei mal o nome do João. Os livros são uma questão entre mim e a eternidade, esses não morrem, ao passo que o seu rapaz, o das faíscas, vai-se. Não merece a pena estarmos para aqui com tretas, vai-se. Mas, entre nós, sabe como é que me apetecia ir? Batia-lhe à porta do gabinete, via-o tirar o capote e a bata, pôr o casaco, descíamos até cá baixo e fazíamos de conta que estávamos a voltar para Benfica, ou antes o meu pai fazia de conta que me estava a levar para Benfica. Vê a ideia? Nada de enterros, de cerimónias, de solenidades: estávamos apenas a regressar a casa. A propósito de casa, em que sítio deixou o carro, senhor?

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