domingo, 27 de dezembro de 2009

Ceia de natal



Estamos sentados à mesa
três de um lado

homens no topo
do outro o pai a mãe e as crianças
enquanto a lareira arde
o silêncio é o meu segredo
sei que estamos todos longe de casa
 
na hora da verdade é preciso muito pouca coisa

maria azenha

as formigas- Gagan Gill

Formigas



As formigas não encontram o seu caminho para casa.

Caminham, traçando linhas entre o nosso sono e os nossos corpos.
A sua farinha invisível continua espalhada na sua memória,
espalhada noutro espaço e tempo. Elas continuam a ir de um fim
da terra a outro em busca dela. Afundam os seus dentes
em todas as coisas vivas e mortas. As tristezas da terra crescem
de modo tão leve com a sua demanda que as direcções
começam a rodopiar em grande confusão. Os
pólos começam a mudar de lugar. Mas ninguém
conhece a tristeza das formigas.

Há muito tempo atrás talvez tenham sido mulheres.

Gagan Gill (Índia,1959)

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Tu Fu

LAMENTO PELA MINHA CABANA DESTRUÍDA PELO VENTO DE OUTONO – Tu Fu


No oitavo mês, em pleno outono, o vento ruge, colérico,
E leva num turbilhão as três camadas de palha da minha cabana.
O colmo voa, atravessa o rio, espalha-se pela ribanceira.
O que voa alto fica suspenso nos ramos da grande floresta,
o que voa baixo cai vai girando cair nas ravinas.
As crianças da aldeia do sul riem-se da fraqueza da minha velhice:
têm a audácia de me roubar às claras:
abertamente arrancam o colmo e fogem por entre os bambus.
Grito até ficar com a boca seca: não adianta nada.
Volto para casa, suspiro, apoiado ao meu bastão.
O vento cessa bruscamente, mas as nuvens continuam negras,
o céu de outono é silencioso e escurece com o vir da tarde.
Os lençóis e cobertas são velhos, frios como ferro,
as crianças, sensíveis, com repugnância, rasgaram-nos a pontapés.
Todos os leitos do aposento são úmidos: não há um lugar seco,
sinto cãibras nas pernas, não as poso entender.
Aflijo-me, lamento-me, durmo um pouco,
a noite é longa e úmida, como a poderei passar?
Quem pudesse construir um vasto edifício com milhares de peças,
imenso, que protegesse todos os que têm frio no mundo,
deixado-os de rosto feliz!
O vento e a chuva não o poderiam destruir: seria sólido como uma rocha.
Ai de mim, quando chegará o momento de ver de repente essa casa aparecer
diante dos meus olhos?
Minha cabana desmoronou-se. Aqui vou morrer do frio que entra. E tudo estará bem.


Tradução de Cecília Meireles

beber água

Mesmos os animais sentem quando nos aproximamos deles com afeto, com amor, com alegria de vê-lo, de encontrá-lo. LUNDRP TASHI

Tratamento de beber água com estômago vazio. (O ideal é água fervida por muitos minutos)
Hoje é muito popular no Japão beber água imediatamente ao acordar. Além disso, a evidência científica tem demonstrado estes valores. Abaixo divulgamos uma descrição da utilização da água para os nossos leitores.
Para doenças antigas e modernas, este tratamento com água tem sido muito bem sucedido.
Para a sociedade médica japonesa, uma cura de até 100% para as seguintes doenças:
Dores de cabeça, dores no corpo, problemas cardíacos, artrite, taquicardia, epilepsia, excesso de gordura, bronquite, asma, tuberculose, meningite, problemas do aparelho urinário e doenças renais, vómitos, gastrite, diarreia, diabetes, hemorróidas, todas as doenças oculares, obstipação, útero, cancro e distúrbios menstruais, doenças de ouvido, nariz e garganta.
Método de tratamento:
1. De manhã e antes de escovar os dentes, beber 2 copos de água.
2. Escovar os dentes, mas não comer ou beber nada durante 15 minutos.
3. Após 15 minutos, pode comer e beber normalmente.
4. Depois do lanche, almoço e jantar não se deve comer ou beber nada durante 2 horas.
5. Pessoas idosas ou doentes que não podem beber 2 copos de água, no início podem começar por tomar um copo de água e aumentar gradualmente.
6. O método de tratamento cura os doentes e permite aos outros desfrutar de uma vida mais saudável.
A lista que se segue apresenta o número de dias de tratamento que requer a cura das principais doenças:
1. Pressão Alta - 30 dias
2. Gastrite - 10 dias
3. Diabetes - 30 dias
4. Obstipação - 10 dias
5. Câncer - 180 dias
6. Tuberculose - 90 dias
7. Os doentes com artrite devem continuar o tratamento por apenas 3 dias na primeira semana e, desde a segunda semana, diariamente.
Este método de tratamento não tem efeitos secundários. No entanto, no início do tratamento terá de urinar frequentemente.
É melhor continuarmos o tratamento mesmo depois da cura, porque este procedimento funciona como uma rotina nas nossas vidas. Beber água é saudável e dá energia. Isto faz sentido: o chinês e o japonês bebem líquidos quentes com as refeições, e não água fria.
Talvez tenha chegado o momento de mudar seus hábitos de água fria para água quente, enquanto se come. Nada a perder, tudo a ganhar ...!

Para quem gosta de beber água fria.

Beber um copo de água fria ou uma bebida fria após a refeição solidifica o alimento gorduroso que acabou de comer. Isso retarda a digestão.
Uma vez que essa 'mistura' reage com o ácido digestivo, ela reparte-se e é absorvida mais rapidamente, do que o alimento sólido para o trato gastrointestinal. Isto retarda a digestão, fazendo acumular gordura em nosso onanismo e danifica o intestino.
É melhor tomar água morna, ou se tiver dificuldade, pelo menos água natural.

Juan Gelman (Buenos Aires, 3 de maio de 1930). Poeta, jornalista e tradutor. Prêmio Cervantes de 2007

chuva

hoje chove muito, muito,
e parece que estão lavando o mundo.
meu vizinho do lado contempla a chuva
e pensa em escrever uma carta de amor/
uma carta à mulher que vive com ele
e cozinha para ele e lava a roupa para ele e faz amor com ele/
e parece sua sombra/
meu vizinho nunca diz palavras de amor à mulher/
entra em casa pela janela e não pela porta/
por uma porta se entra em muitos lugares/
no trabalho, no quartel, no cárcere,
em todos os edifícios do mundo/
mas não no mundo/
nem numa mulher/ nem na alma
quer dizer/nessa caixa ou nave ou chuva que chamamos assim/
como hoje/que chove muito/
e me custa escrever a palavra amor/
porque o amor é uma coisa e a palavra amor é outra coisa/
e somente a alma sabe onde os dois se encontram/
e quando/e como/
mas o que pode a alma explicar?/
por isso meu vizinho tem tormentas na boca/
palavras que naufragam/
palavras que não sabem que há sol porque nascem e morrem na mesma noite em que amou/
e deixam cartas no pensamento que ele nunca escreverá/
como o silêncio que há entre duas rosas/
ou como eu/que escrevo palavras para voltar
ao meu vizinho que contempla a chuva/
à chuva/
ao meu coração desterrado/

Tradução de Leonardo Gonçalves e Andityas Soares de Moura.

Sophia

O Piano sílaba por sílaba
Viaja através do silêncio
Transpõe um por um
Os múltiplos murais do silêncio
Entre luz e penumbra joga
E de terra em terra persegue
A nostalgia até ao seu último reduto

Sophia de Mello Breyner Andresen

Omar Kháyyám, tradução Cecília Meireles

Inútil é que te aflijas:
nada podes acerca do teu destino.
Se és prudente, aproveita o momento atual.
O futuro?
Sabes o que ele te reservará?...

Omar Kháyyám, tradução Cecília Meireles

Fernando Pessoa.Álvaro de Campos

O Dia Deu em Chuvoso

O dia deu em chuvoso.
A manhã, contudo, esteve bastante azul.
O dia deu em chuvoso.
Desde manhã eu estava um pouco triste.

Antecipação! Tristeza? Coisa nenhuma?
Não sei: já ao acordar estava triste.
O dia deu em chuvoso.

Bem sei, a penumbra da chuva é elegante.
Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante.
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
Dêem-me o céu azul e o sol visível.
Névoa, chuvas, escuros — isso tenho eu em mim.

Hoje quero só sossego.
Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
Não exageremos!
Tenho efectivamente sono, sem explicação.
O dia deu em chuvoso.

Carinhos? Afectos? São memórias...
É preciso ser-se criança para os ter...
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
O dia deu em chuvoso.

Boca bonita da filha do caseiro,
Polpa de fruta de um coração por comer...
Quando foi isso? Não sei...
No azul da manhã...

O dia deu em chuvoso.

Fernando Pessoa.Álvaro de Campos

Hans Christian Andersen - 1805-2005


Hans Christian Andersen - 1805-2005

A MENINA DOS FÓSFOROS

Estava muito frio, a neve caía e já estava começando a escurecer. Era a noite do último dia do ano. Uma menina descalça e sem agasalho andava pelas ruas, no frio e no escuro. Quando atravessou correndo para fugir dos carros, a menina perdeu os chinelos que tinham sido da mãe e eram grandes demais. Um ela não achou mais e um garoto levou o outro, dizendo que ia usar como berço quando tivesse um filho.

A menina já estava com os pés roxos de frio. Tinha um pacotinho de fósforos na mão e outro no avental velho. Naquele dia não tinha conseguido vender nada e estava sem um tostão. Com frio e com fome, ela andava pelas ruas morrendo de medo. A neve caía no cabelo cacheado, mas ela não podia pensar nem no cabelo nem no frio. As casas estavam iluminadas e havia por toda parte um cheirinho gostoso de assado de ano novo. Era nisso que ela pensava.

Num cantinho entre duas casas, ela se encolheu toda, mas continuava sentindo muito frio. Voltar para casa, nem pensar: sem dinheiro, sem ter vendido nada, era certo o castigo do pai. Além do mais, a casa deles também era muito fria, sem forro e com o telhado cheio de furos e emendas, por onde o vento entrava assobiando.

Com as mãos geladas, pensou em acender um fósforo. Conseguiu. A chama pequenina parecia uma vela na concha da mão. A menina se imaginou diante de uma lareira enorme com o fogo esquentando tudo e ela também. Mas logo a chama apagou e a lareira sumiu. Ela só ficou com o fósforo queimando na mão.

Acendeu outro que, brilhando, fez a parede ficar transparente. Ela viu a casa por dentro: a mesa posta, a toalha branca, a louça linda. O assado, o recheio, as frutas. Não é que o assado, com o garfo e faca espetados, pulou do prato e veio correndo até onde ela estava?
Mas o fósforo apagou e ela só viu a parede grossa e úmida.

Acendeu mais um fósforo e se viu junto de uma belíssima árvore de Natal. Maior do que uma que tinha visto antes. Velinhas e figuras coloridas enchiam os galhos verdes. A menina esticou o braço e... o fósforo apagou. Mas as velinhas começaram a subir, a subir e ela viu que eram estrelas. Uma virou estrela cadente e riscou o céu.

-Alguém deve ter morrido. A avó - única pessoa que tinha gostado dela de verdade e que já tinha morrido - sempre dizia: "Quando uma estrela caí, é sinal de que uma alma subiu para o céu".

A menina riscou mais um fósforo e, no meio do clarão, viu a avó tão boa e tão carinhosa, contente como nunca.

-Vovó, me leva embora! Sei que você não vai mais estar aqui quando o fósforo apagar. Você vai desaparecer como a lareira, o assado e a árvore de Natal.

E foi acendendo os outros fósforos para que a avó não sumisse. Foi tanta luz que parecia dia. E a avó ali, tão bonita, tão bonita. Pegou a menina no colo e voou com ela para onde não fazia frio e não havia fome nem dor. Foram para junto de Deus.

De manhãzinha, as pessoas viram no canto entre duas casas uma menina corada e sorrindo. Estava morta. Tinha morrido de frio na última noite do ano. Nas mãos, uma caixa de fósforos queimados.

-Ela tentou se esquentar, coitadinha.
Ninguém podia adivinhar tudo o que ela tinha visto, o brilho, a avó, as alegrias de um ano novo.

NO PARAÍSO CAMPESTRE – Dylan Thomas

NO PARAÍSO CAMPESTRE – Dylan Thomas


Sempre que Ele, no paraíso campestre
( A quem meu coração escuta ),
Cruza o peito do Leste glorificado e se ajoelha,
Humilde em todos os seus planetas,
E chora na crista que se humilha,

Então no último refúgio e na alegria das bestas e das aves
E no vale canonizado
Onde tudo canta, o que foi criado e já morreu,
E onde os anjos sussurram como faisões
Através das naves de folhas,

A luz e Suas lágrimas caem juntas como orvalho
( Oh, de mãos dadas )
De seus olhos vazios e do céu enevoado,
Ele proclama o seu sangue, e os sóis
Se dissolvem e escorrem pelos ásperos

Sulcos de seu rosto: o Paraíso é cego e negro.


Tradução de Ivan Junqueira

Adair Carvalhais Júnior

biografia II - família



o velho fusca arrastou estrada
afora minha
mãe meus
irmãos no

caminhão panelas
mamadeiras o
cachorro nosso
mundo inteiro

a casa confundiu se na
poeira

nunca mais senti o cheiro
branco do
limoeiro do
quintal







Aqui http://biografiaadair.blogspot.com/ tem mais

-

Adair Carvalhais Júnior

Carlos eurico da Costa

NESTE dia meu amor
os meus dedos são o candelabro que te ilumina
o único existente.

E o homem
sua esfera perdida em mãos alheias
é o objecto de malabarismo
o insecto
voltejando cega a luz que lhe irradiam
o límpido cristal corrompido
o defunto.

E este patíbulo onde o próprio carrasco se enforcará
eu o digo
será erguido como símbolo de todos os homens.

Aqui a hora vai sendo longínqua meu amor e solene.
O caminho é grande o tempo tão pouco
tenhamos muita esperança e muito ódio
e vítreas flores a ornar o teu cabelo
porque serei o homem para as transportar
e tu a última mulher que as aceitará.

E enquanto assim for
erguer-se-á a nuvem de múltiplas estrelas
a nebulosa
que dizem estar a milhões de anos-luz
mas não acreditemos bem o sabes
porque em verdade a temos em nossas próprias mãos
oculta para a contemplarmos agora.




Carlos Eurico da Costa
in A Única Real Tradição Viva
Antologia da Poesia Surrealista Portuguesa
de Perfecto E. Cuadrado
Assírio & Alvim
1998

PRIMEIRO POEMA APÓS BEIJAR RENATA

Lembro-me da noite. Lembro-me do céu
de poucas estrelas – apenas o vazio,
apenas o fulgurante e trêmulo vazio
soprado pelas nuvens, soprado
contra os rostos, contra os olhos
também nublados por vazio
fulgurante e trêmulo.

Lembro-me do rosto. Lembro-me do riso
que o fazia arder, que o fazia
claro e depois, sobre o rosto, caía
uma sombra de medo, de ternura,
uma sombra de espanto e encantamento
por não saber o que pode nascer – raiz
selvagem! – dentro de um coração
e torná-lo mais vermelho, e torná-lo
mais fácil de sangrar, mais fácil de suportar
as noites fulgurante e trêmulas.

Lembro-me do beijo. Lembro-me do gosto
febril, doce, muito suave.
Lembro-me de ter um rosto junto ao meu
como quem tem, junto ao coração,
uma gaivota em amplo vôo, uma gaivota
que não se perde na noite, uma gaivota
que chega muito próxima do céu
vazio e do céu incandescente –
uma gaivota que retorna, uma gaivota
que ao voltar para o seu rosto e para os seus olhos
torna-se beijo febril, doce, muito suave.

***

Ao poema que se segue foi frequentemente atribuída a autoria de Camões.
Mas não é de Camões...


Com o tempo o prado seco reverdece,
Com o tempo cai a folha ao bosque umbroso,
Com o tempo para o rio caudaloso,
Com o tempo o campo pobre se enriquece,

Com o tempo um louro morre, outro floresce,
Com o tempo um é sereno, outro invernoso,
Com o tempo foge o mal duro e penoso,
Com o tempo torna o bem já quando esquece,

Com o tempo faz mudança a sorte avara,
Com o tempo se aniquila um grande estado,
Com o tempo torna a ser mais eminente.

Com o tempo tudo anda, e tudo pára,
Mas só aquele tempo que é passado
Com o tempo se não faz tempo presente.



ver mais em http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/estaco.htm

Gerhardt Hauptmann

SOMBRA DA VIOLÊNCIA – Gerhardt Hauptmann


Soubesse eu o que em sonho me revelou
O Espírito Eterno
-Ele a quem louvam Terra e Céu –
Quando do mar do tempo
Me lançou a este deserto vermelho,
Abandonado para todo o sempre
A todas as misérias!
Ali fiquei na areia ardente
Sem noção do dia de ontem nem do dia de amanhã!
Desamparado de tudo,
Desapegado de todos,
Tudo o que viam meus olhos
Me era estranho,
Tudo aparência e ilusão.
Uma criatura – seria um homem?
Me encarava na areia abrasada,
Alheado e taciturno,
Frio e insensível.de certo modo me regozijei
Ao ver ali uns feixes
Que pareciam arrumados por mão humana:
Estaria eu perto dos homens?
Mas reconheci num como grito mudo
Que era palha vazia!
Ah, a colheita acabou,
E onde está o trigo?
Meditando como em sonho
Sobre aquela aparição,
Ali quedei na areia ardente,
Em face do corpo mudo, nem homem nem mulher
Na sua silenciosa nudez, paralisado pela morte.
“Vens da parte da Esfinge?” perguntaram não sei donde.
Então, erguendo às cegas a mão
E subitamente inflamado, palpitante:
“Não pergunte ninguém quem eu seja
Nem quem sejas”, falou.
“As perguntas aqui não têm sentido!
A paz das coisas parece mais vazia em torno de nós.
Não te fies das aparências:
Pois já não somos ambos
Senão sombras da violência.”


Gerhardt Hauptmann


tradução de Manuel Bandeira

Gerhardt Hauptmann

SOMBRA DA VIOLÊNCIA – Gerhardt Hauptmann


Soubesse eu o que em sonho me revelou
O Espírito Eterno
-Ele a quem louvam Terra e Céu –
Quando do mar do tempo
Me lançou a este deserto vermelho,
Abandonado para todo o sempre
A todas as misérias!
Ali fiquei na areia ardente
Sem noção do dia de ontem nem do dia de amanhã!
Desamparado de tudo,
Desapegado de todos,
Tudo o que viam meus olhos
Me era estranho,
Tudo aparência e ilusão.
Uma criatura – seria um homem?
Me encarava na areia abrasada,
Alheado e taciturno,
Frio e insensível.de certo modo me regozijei
Ao ver ali uns feixes
Que pareciam arrumados por mão humana:
Estaria eu perto dos homens?
Mas reconheci num como grito mudo
Que era palha vazia!
Ah, a colheita acabou,
E onde está o trigo?
Meditando como em sonho
Sobre aquela aparição,
Ali quedei na areia ardente,
Em face do corpo mudo, nem homem nem mulher
Na sua silenciosa nudez, paralisado pela morte.
“Vens da parte da Esfinge?” perguntaram não sei donde.
Então, erguendo às cegas a mão
E subitamente inflamado, palpitante:
“Não pergunte ninguém quem eu seja
Nem quem sejas”, falou.
“As perguntas aqui não têm sentido!
A paz das coisas parece mais vazia em torno de nós.
Não te fies das aparências:
Pois já não somos ambos
Senão sombras da violência.”


Gerhardt Hauptmann


tradução de Manuel Bandeira

Antonio Gamoneda

A luz ferve-me debaixo das pálpebras.

De um rouxinol absorto na cinza, das suas negras entranhas
musicais, surge uma tempestade. Desce o canto às
antigas celas, advirto látegos com vida

e o olhar imóvel das bestas, a sua agulha fria em meu coração.

Tudo é presságio. A luz é medula de sombra: vão morrer
os insectos nos castiçais do amanhecer. Assim

ardem em mim os significados.

Antonio Gamoneda
tradução: Rui Almeida

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

NOVA ARCA DE NOÉ



NOVA ARCA DE NOÉ

(um bestiário elaborado pelos membros de Letras no teclado)



Índice geral:


A.POEMAS

1 - com aves – p. 2 - 72
2- com animais diversos – p. 72 - 75
3- com anfíbios e répteis – p .75 - 76
3- com insetos / insectos – p. 76 - 101
5- com peixes, crustáceos e moluscos-
p. 102 - 113
6- com mamíferos – p.114 - 164
6.1 com gatos – p.164 - 188

B.PROSAS. – p.189 - 223




A.POEMAS




1.Poemas com aves

......................................................................................................

Os passarinhos

Os passarinhos
Tão engraçados,
Fazem os ninhos
Com mil cuidados.

São p’ra os filhinhos
Que estão p’ra ter
Que os passarinhos
Os vão fazer.

Nos bicos trazem
Coisas pequenas,
E os ninhos fazem
De musgo e penas.

Depois, lá têm
Os seus meninos,
Tão pequeninos
Ao pé da mãe.

Nunca se faça
Mal a um ninho,
À linda graça
De um passarinho!

Que nos lembremos
Sempre também
Do pai que temos,
Da nossa mãe!

Afonso Lopes Vieira
……………………………………………………………………
A Pomba

Pomba, o espírito e o amor,
Origens do Nosso Senhor,
Amo uma Maria também.
Com ela caso-me, amém.

Apollinaire - trad por Álvaro Faleiro.

……………………………………………..
Os corvos crocitam na noite

Nuvens de poeira amarela sobre os muros da cidade.
Os corvos voltam aos seus ninhos e crocitam nos ramos.
Por detrás da cortina azulada da sua janela,
uma jovem tece um brocado em seu tear.
De repente, pára com a lançadeira: pensa tristemente
no marido que está longe.
E, sozinha, no quarto vazio, deixa cair uma chuva de lágrimas.
Li Po
................................................................................................................

Garça Branca

Esse grande floco de neve
é uma garça branca que acaba de pousar no lago azul.
Imóvel, na extremidade de um banco de areia,
a garça branca
observa o inverno.

Li Po
...........................................................................................................................

A Coruja

Meu coração, coruja muda,
Onde se gruda e se tresgruda.
feito de sangue e ardência aguda
Exalto o amor que a mim aluda.

Apollinaire –trad por Álvaro Faleiro.
………………………………………………………..
O corvo – em 2 versões
Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais."

Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais -
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!
Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundindo força, eu ia repetindo:
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais."
E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora, de certo me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo
Tão levemente, batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.

Edgar Allan de Poe .The Raven
- tradução de Fernando Pessoa

O Corvo

Num certo dia, à hora, à hora
Da meia-noite que apavora,
Eu caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina, agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Do meu quarto um soar devagarinho
E disse estas palavras tais:
"É alguém que me bate à porta de mansinho;
Há de ser isso e nada mais."

Ah! bem me lembro! bem me lembro!
Era no glacial dezembro;
Cada brasa do lar sobre o chão refletia
A sua última agonia.
Eu, ansioso pelo sol, buscava
Sacar daqueles livros que estudava
Repouso (em vão!) à dor esmagadora
Destas saudades imortais
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora,
E que ninguém chamará jamais.

E o rumor triste, vago, brando,
Das cortinas ia acordando
Dentro em meu coração um rumor não sabido
Nunca por ele padecido.
Enfim, por aplacá-lo aqui no peito,
Levantei-me de pronto e: "Com efeito
(Disse) é visita amiga e retardada
Que bate a estas horas tais.
É visita que pede à minha porta entrada:
Há de ser isso e nada mais."

Minhalma então sentiu-se forte;
Não mais vacilo e desta sorte
Falo: "Imploro de vós - ou senhor ou senhora -
Me desculpeis tanta demora.
Mas como eu, precisando de descanso,
Já cochilava, e tão de manso e manso
Batestes, não fui logo prestemente,
Certificar-me que aí estais."
Disse: a porta escancaro, acho a noite somente,
Somente a noite, e nada mais.

Com longo olhar escruto a sombra,
Que me amedronta, que me assombra,
E sonho o que nenhum mortal há já sonhado,
Mas o silêncio amplo e calado,
Calado fica; a quietação quieta:
Só tu, palavra única e dileta,
Lenora, tu como um suspiro escasso,
Da minha triste boca sais;
E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço;
Foi isso apenas, nada mais.

Entro co`a alma incendiada.
Logo depois outra pancada
Soa um pouco mais tarde; eu, voltando-me a ela:
"Seguramente, há na janela
Alguma coisa que sussurra. Abramos.
Ela, fora o temor, eia, vejamos
A explicação do caso misterioso
Dessas duas pancadas tais.
Devolvamos a paz ao coração medroso.
Obra do vento e nada mais."

Abro a janela e, de repente,
Vejo tumultuosamente
Um nobre Corvo entrar, digno de antigos dias.
Não despendeu em cortesias
Um minuto, um instante. Tinha o aspecto
De um lord ou de uma lady. E pronto e reto
Movendo no ar as suas negras alas.
Acima voa dos portais,
Trepa, no alto da porta, em um busto de Palas;
Trepado fica, e nada mais.

Diante da ave feia e escura,
Naquela rígida postura,
Com o gesto severo - o triste pensamento
Sorriu-me ali por um momento,
E eu disse: "Ó tu que das noturnas plagas
Vens, embora a cabeça nua tragas,
Sem topete, não és ave medrosa,
Dize os teus nomes senhoriais:
Como te chamas tu na grande noite umbrosa?"
E o Corvo disse: "Nunca mais."

Vendo que o pássaro entendia
A pergunta que lhe eu fazia,
Fico atônito, embora a resposta que dera
Dificilmente lha entendera.
Na verdade, jamais homem há visto
Coisa na terra semelhante a isto:
Uma ave negra, friamente posta,
Num busto, acima dos portais,
Ouvir uma pergunta e dizer em resposta
Que este é o seu nome: "Nunca mais."

No entanto, o Corvo solitário
Não teve outro vocabulário,
Como se essa palavra escassa que ali disse
Toda sua alma resumisse.
Nenhuma outra proferiu, nenhuma,
Não chegou a mexer uma só pluma,
Até que eu murmurei: "Perdi outrora
Tantos amigos tão leais!
Perderei também este em regressando a aurora."
E o Corvo disse: "Nunca mais."

Estremeço. A resposta ouvida
É tão exata! é tão cabida!
"Certamente, digo eu, essa é toda a ciência
Que ele trouxe da convivência
De algum mestre infeliz e acabrunhado
Que o implacável destino há castigado
Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga,
Que dos seus cantos usuais
Só lhe ficou, na amarga e última cantiga,
Esse estribilho: "Nunca mais."

Segunda vez, nesse momento,
Sorriu-me o triste pensamento;
Vou sentar-me defronte ao Corvo magro e rudo;
E mergulhando no veludo
Da poltrona que eu mesmo ali trouxera
Achar procuro a lúgubre quimera.
A alma, o sentido, o pávido segredo
Daquelas sílabas fatais,
Entender o que quis dizer a ave do medo
Grasnando a frase: "Nunca mais."

Assim, posto, devaneando,
Meditando, conjecturando,
Não lhe falava mais; mas se lhe não falava,
Sentia o olhar que me abrasava,
Conjecturando fui, tranqüilo, a gosto,
Com a cabeça no macio encosto,
Onde os raios da lâmpada caiam,
Onde as tranças angelicais
De outra cabeça outrora ali se desparziam,
E agora não se esparzem mais.

Supus então que o ar, mais denso,
Todo se enchia de um incenso.
Obra de serafins que, pelo chão roçando
Do quarto, estavam meneando
Um ligeiro turíbulo invisível;
E eu exclamei então: "Um Deus sensível
Manda repouso à dor que te devora
Destas saudades imortais.
Eia, esquece, eia, olvida essa extinta Lenora."
E o Corvo disse: "Nunca mais."

"Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno
Onde reside o mal eterno,
Ou simplesmente náufrago escapado
Venhas do temporal que te há lançado
Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo
Tem os seus lares triunfais,
Dize-me: "Existe acaso um bálsamo no mundo?"
E o Corvo disse: "Nunca mais."

"Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta, atende, escuta, atende!
Por esse céu que além se estende,
Pelo Deus que ambos adoramos, fala,
Dize a esta alma se é dado inda escutá-la
No Éden celeste a virgem que ela chora
Nestes retiros sepulcrais.
Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!"
E o Corvo disse: "Nunca mais."

"Ave ou demônio que negrejas!
Profeta, ou o que quer que sejas!
Cessa, ai, cessa!, clamei, levantando-me, cessa!
Regressa ao temporal, regressa
À tua noite, deixa-me comigo.
Vai-te, não fica no meu casto abrigo
Pluma que lembre essa mentira tua,
Tira-me ao peito essas fatais
Garras que abrindo vão a minha dor já crua."
E o Corvo disse: "Nunca mais."

E o Corvo aí fica; ei-lo trepado
No branco mármore lavrado
Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho.
Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demônio sonhando. A luz caída
Do lampião sobre a ave aborrecida
No chão espraia a triste sombra; e fora
Daquelas linhas funerais
Que flutuam no chão, a minha alma que chora
Não sai mais, nunca, nunca mais!

Edgar Allan de Põe –The Raven -
tradução de Machado de Assis (1883)

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Gaivotas

Do crespo mar azul brancas gaivotas
Voam — de leite e neve o céu manchando,
E vão abrindo às regiões remotas
As asas, em silêncio, à tarde, e em bando.

Depois se perdem pelo espaço ignotas,
O ninho das estrelas procurando:
Cerras os cílios, com teu dedo notas
Que elas vêm outra vez o azul furando.

Uma na vaga buliçosa dorme,
Uma revoa em cima, outra mais baixo...
E ronca o abismo do oceano enorme...

Cai o sol, como já queimado facho...
Do lado oposto espia a noite informe...
Tu me perguntas se isto é belo?... e eu acho...

Luís Delfino
.................................................................................................O pássaro e a flor

Era num dia sombrio
Quando um pássaro erradio
Veio parar num jardim.
Aí fitando uma rosa,
Sua voz triste e saudosa,
Pôs-se a improvisar assim.


"ó Rosa, ó Rosa bonita!
Ó Sultana favorita
Deste serralho de azul:
Flor que vives num palácio,
Como as princesas de Lácio,
Como as filhas de 'Stambul.

Corno és feliz! Quanto eu dera
Pela eterna primavera
Que o teu castelo contém...
Sob o cristal abrigada,
Tu nem sentes a geada
Que passa raivosa além.


Junto às estátuas de pedra
Tua vida cresce, medra,
Ao fumo dos narguillés,
No largo vaso da China
Da porcelana mais fina
Que vem do Império Chinês.


O Inverno ladra na rua,
Enquanto adormeces nua
Na estufa até de manhã.
Por escrava - tens a aragem
O sol - é teu louro pajem.
Tu és dele - a castelã.


Enquanto que eu desgraçado,
Pelas chuvas ensopado,
Levo o tempo a viajar,
- Boêmio da média idade,
Vou do castelo à cidade,
Vou do mosteiro ao solar!


Meu capote roto e pobre
Mal os meus ombros encobre
Quanto à gorra... tu bem vês! ...
Ai! meu Deus! se Rosa fora
Como eu zombaria agora
Dos louros dos menestréis!. . .

Então por entre a folhagem
Ao passarinho selvagem
A rosa assim respondeu:
"Cala-te, bardo dos bosques!
Ai! não troques os quiosques
Pela cúpula do céu.


Tu não sabes que delírios
Sofrem as rosas e os lírios
Nesta dourada prisão.
Sem falar com as violetas.
Sem beijar as borboletas,
Sem as auras do sertão.


Molha-te a fria geada...
Que importa? A loura alvorada
Virá beijar-te amanhã.
Poeta, romperás logo,
A cada beijo de fogo,
Na cantilena louçã.


Mas eu?! Nas salas brilhantes
Entre as tranças deslumbrantes
A virgem me enlaçará
Depois cadáver de rosa
A valsa vertiginosa
Por sobre mim rolará.


Vai, Poeta... Rompe os ares
Cruza a serra, o vale, os mares
Deus ao chão não te amarrou!
Eu calo-me - tu descansas,
Eu rojo - tu te levantas,
Tu és livre - escrava eu sou! ...
Castro Alves
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Papagaio Gaio

Papagaio insensato,
que te fêz assim?
Que não sabes falar
brasileiro
e já sabes latim?
Papagaio insensato,
ave agreste, do mato,
que diabo em ti existe,
verde-gaio,
que nunca estás triste?
Papagaio do mato,
se nunca estás triste,
quem foi que te ensinou,
por maldade,
a palavra saudade?
Papagaio triste,
papagaio gaio,
quem te fêz tão triste
e tão gaio,
triste mas verde-gaio?
Papagaio gaio,
quem te ensinou,
em mais
do mato, a repetir,
papagaio,
tanto nome feio?
Gaio papagaio,
gaio, gaio, gaio,
que repetes tudo...
Antes fosses
um pássaro mundo.
Papagaio do mato,
se nunca estás triste,
quem foi que te ensinou,
por maldade,
a palavra saudade?
Papagaio gaio.
Gaio, gaio, gaio.

Cassiano Ricardo
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O canto do galo


Co’as penas hirtas para mim avança,
- que eu não deslumbro à tua acesa vista:
hei de ensopar meu triunfante bico
nas crespas rendas dessa rubra crista.

Afia embora os esporões agudos,
-que hei de vencer-te, ó rude antagonista:
hei de montar sobre o teu colo altivo,
ensopar-te de sangue a régia crista.

Provocaste-me à liça, a mim fidalgo,
tu, ó galo peão de casta mista!
Hás de pagar bem caro essa arrogância,
hás de ficar sem tua régia crista!

Fora da minha estirpe de fidalgo
sangue real jamais há e que exista;
arrogaste o poder!- Rei te saúdo,
-rei das galinhas! – ficarás sem crista!

Quando eu passar pelo cercado ao longe
abaixarás humilde o bico e a vista:
que eu sou rei das mais gentis galinhas,
que eu sei erguer a minha régia crista.

Há de seguir-te em toda a parte o espectro
de minha nobre e célebre conquista:
será manhã, - não cantarás teu hino,
nem jamais erguerás a régia crista.

Hás de, ó galo peão de casta ambígua,
sentir que eu fui valente antagonista;
eu cantarei meu hino de triunfo,
tu correrás de minha nobre vista:
-tu, infamado, marcharás humilde,
eu erguerei a minha régia crista!


Junqueira Freire

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[cegonha]
Num apelo à cegonha ferida,
as outras lançam sua clarinada
enquanto, à sua volta, a planície
espoja-se no outono ensolarado.

Definhando, ouço o agudo chamado
e o ruflar de suas asas dourados
vindo de um banco de nuvens bem baixas
que às moitas trança-se num abraço:

Já é hora de alçar vôo sobre os campos e os rios,
pois nem consegues cantar
e tua mão já nem forças
para enxugar tuas próprias lágrimas.
Anna Akmátova
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Eu perguntei ao cuco

Eu perguntei ao cuco
quantos anos viveria...
O topo do pinheiro estremeceu,
o sol banhou a relva de dourado,
mas som algum perturbou a clareira...
Voltei então para casa.
mas som algum perturbou a clareira...
Voltei então para casa.
A brisa fresca acariciava
a minha fronte escaldante.

Anna Akmátova
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Para fazer o retrato de um pássaro
Pinte primeiro uma gaiola
com uma porta aberta
Pinte em seguida
qualquer coisa de bonito
qualquer coisa de simples
qualquer coisa de útil
qualquer coisa de belo
para o pássaro
ponha então a tela contra uma árvore
em um jardim
em um bosque
ou em uma floresta
e esconda-se atrás da árvore
em silêncio
sem se mexer...
Às vezes, o pássaro chega logo
mas ele pode também demorar muitos anos
antes de aparecer
Não desanime
espere
espere se preciso durante anos
a rapidez ou a demora na chegada do pássaro
não tem qualquer relação
com o sucesso do quadro
Quando o pássaro chegar
se chegar
guarde o mais profundo silêncio
espere que ele entre na gaiola
e quando houver entrado
feche delicadamente a porta
com o pincel
depois
apague uma a uma todas grades
cuidando de não tocar em nenhuma pena do pássaro
Faça em seguida o retrato da árvore
escolhendo o mais belo de seus ramos
para o pássaro
pinte também o verde da folhagem e o frescor do vento
a poeira do sol
e o ruído dos insetos da grama no calor do verão
e depois espere que o pássaro decida-se a cantar
Se o pássaro não cantar
é um mau sinal
sinal de que o quadro não é bom
mas se cantar é bom sinal
sinal de que você pode assinar.
Então arranque delicadamente
uma das penas do pássaro
e escreva seu nome em um canto do quadro.
Jacques Prevért
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Íbis

Sim, irei na sombra terrosa.
Ante o fim certo não há asilo!
Latim fatal, fala espantosa,
Ó íbis, pássaro do Nilo.

Apollinaire trad.Álvaro Faleiro.

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O Pavão

Quando abre sua cauda, este pássaro,
que arrasta as plumas normalmente
Mostra a beleza de seu lábaro,
Mas deixa o traseiro evidente.

Apollinaire - trad.Álvaro Faleiro.

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[como o cuco]

Vivo como o cuco no relógio
não invejo os pássaros no bosque.
Esta missão me foi dada e eu canto.
Sabe, destino semelhante,
só a um inimigo poderia deseja-lo.

Anna Akmátova


Leda e o cisne

Súbito golpe: as grandes asas a bater
Sobre a virgem que oscila, a coxa acariciada
Por negros pés, a nuca, um bico a vem reter;
O peito inane sobre o peito, ei-la apresada.

Dedos incertos de terror, como empurrar
Das coxas bambas o emplumado resplendor?
Pode o corpo, sob esse impulso de brancor,
O coração estranho não sentir pulsar?

Um tremor nos quadris engendra incontinenti
A muralha destruída, o teto, a torre a arder
E Agamêmnon, o morto.

Capturada assim,
E pelo bruto sangue do ar sujeita, enfim
Ela assumiu-lhe a ciência junto com o poder,
Antes que a abandonasse o bico indiferente?
William Butler Yeats

(tradução: Péricles Eugênio da Silva Ramos)
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Leda e o Cisne
1º Canto

Suave se aproxima em branca plumagem
Cercando Leda no aquecer das penas,
Garboso, empina as asas, distende o carmim olhar
E toca-lhe a pele, com o bico, apenas...

Leda não se move, lânguida
na misteriosa sedução perene,
nem crendo, afasta os joelhos lentamente,
abrindo-se ao Cisne, infrene.

O abraço de asas em vigor é assalto
co'a força do bico na nuca, e presa
sob o peito robusto, o desejo lhe arrebata
no leque de penas que em Leda adentra ...

Imóvel em suas coxas orgasma o Cisne
Rasgando-lhe a gruta vezes eternas,
Estremece em plumagem, treme penugens
Quando Leda o envolve no abraço das pernas!

2º Canto

Um Deus em mim!
Um Cisne em mim!
Esse ato louco
Farfalhando asas
No grunhido rouco...

Um Cisne em mim!
Um Deus em mim!
Nosso êxtase louco
a penugem sagrada
Estremece meu corpo...

Esse ato em mim!
O farfalhar em mim!
Um Cisne louco
Um Deus de asas...

3º Canto

Ela repousa...a beleza adormece
Em meio aos cisnes do calmo lago
Ela repousa...eis a hora!
Nua na relva, no verde afago...

Tão bela...Eis Leda...a proibida
Que a outro pertence e lhe é só sua
Do Olimpo que Deus não a quereria?
Escravo do belo, me rendo....Zeus...

Em desejo me transporto...ei-la!
Desperta aos cisnes de branca plumagem
Seus dedos se estendem nas águas silentes
Seus joelhos se abrem...eterna miragem.

Me visto em penugens e meus braços de asas
Arriscam o vôo até a outra margem
Sacudindo as penas respingo-a inteira
A sentir seu perfume em cada gesto.

Uma carícia...seu afago...Eis a hora!
Leda minha, um Deus a quer
No peito estufado, nas asas turbadas
Nas coxas fêmeas macias...eis a mulher!

É a hora...não se move... Leda espera
A posse alada que já nos domina
Sua nuca mansa, no bico já presa
Faz rendição das pernas que me fascina!

Sobre Leda eis-me! Eis a hora!
Mesclado em desejos... Deus... Cisne!
Mergulho insano na intumescida fenda
Finco em mais sua gruta enquanto cisme!

Tremor, arrepios, gozo tenaz
Eis-me em Leda, é a hora!
Fecundo seu ventre na avidez mordaz
Possuída és, para sempre e agora!

4º Canto

Coração já não é o meu
Nem de Zeus
Coração é Leda!!!

Corpo já não é o meu
Nem de Zeus
Corpo é de Leda!!!

Desejo já não é o meu
Nem de Zeus
Desejo é de Leda!!!

O êxtase
O gozo
O frêmito
A posse
Rendição nossa!!!

5º Canto - Triunfo do Desejo

Nem o sagrado recinto
Dos Deuses, o Panteón
Nem a distância da Terra
Nas margens do lago protegida
Nem as aves, nem o bando
Imunes estão...

Basta um olhar!
E do olhar, o desejo
E do desejo o prazer
E que isto se faça e seja
Para matar ou morrer...

Transmutar-se, transformar-se
Ser outro ser e não ser
Metamorfosear-se de súbito
Para tudo acontecer...

Ao fundo, ao largo, no interno
Nada se confunde, dúvida não há
A vontade se avulta e arremessa
Ao delírio divino que será.

Nada imunes, portanto, eis o cuidado!
Ó mortais e deuses de todos os Tempos!
Sempre Leda existirá e um Deus
Se fará Cisne e dela se apossará
Em metamorfoses, sedentos!
Selma Albes da Rocha
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O irapurú

Dizem que o irapurú quando desata
a voz – Orfeu do seringal tranqüilo -,
o passaredo, rápido, a segui-lo,
em derredor agrupa-se na mata.

Quando o canto, veloz, muda em cascata,
tudo se queda, comovido, a ouvi-lo:
o canoro sabiá susta a sonata
o canário sutil cessa o pipilo.

Eu próprio sei quanto esse canto é suave;
o que, porém, me faz cismar bem fundo
não é, por si, o alto poder dessa ave:

o que mais no fenômeno me espanta,
é ainda existir um pássaro no mundo
que fique a escutar quando outro canta!...


Humberto de Campos

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O cisne quando sente ser chegada


O cisne quando sente ser chegada
a hora que põe termo à sua vida,
harmonia maior, com voz sentida,
levanta por a praia inabitada.

Deseja lograr vida prolongada,
e dela está chorando a despedida:
com grande saudade da partida,
celebra o triste fim desta jornada.

Assim, senhora minha, quando eu via
o triste fim que davam meus amores,
estando posto já no extremo fio;

com mais suave acento de harmonia
descantei por os vossos desfavores
la vuestra falsa fé, Y el amor mío.


Luís de Camões
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A um papagaio de palácio que falava muito
(excerto)

Iris[1 parlero, Abril organizado,
Ramillete de plumas com sentido,
(..................),irracional florido,
Primavera com piés, jardin alado;
(....)
Anónimo seiscentista- in Fénix Renascida
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Está o lascivo e doce passarinho

Está o lascivo e doce passarinho
com o biquinho as penas ordenando;
o verso sem medida, alegre e brando,
despedindo no rústico raminho.

O cruel caçador, que do caminho
se vem calado e manso desviando,
com pronta vista a seta endireitando
lhe dá no estígio lago eterno ninho.

Desta arte o coração que livre andava
( posto que já de longe destinado),
onde menos temia, foi ferido.

Porque o frecheiro cego me esperava,
Para que me tomasse descuidado,
Em vossos claros olhos escondido.

Luís de Camões
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A um passarinho cantando

Contente, alegre, ufano passarinho
que enchendo o bosque todo de harmonia,
me está dizendo a tua melodia,
que é maior tua voz, que teu biquinho:

como da pequenez desse corpinho
sai tão grande tropel de vozearia?
Como cantas, se és flor de Alexandria?
Como cheiras, se és pássaro de arminho?

Simples cantas, incauto garganteias,
sem ver que estás chamando ao homicida,
que te segue por passos de garganta.

Não cantes mais, que a morte lisonjeias,
esconde
a voz, esconderás a vida,
que em ti não se vê mais que a voz que canta.

Gregório de Matos
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O cisne e o lago

Um cisne de suave e soberba plumagem,
à flor de um lago azul onde a manhã se espelha,
segue surpreso o cisne irreal que o semelha
a fundo d’água, e feito à sua própria imagem.

Verdes, ao derredor, uma outra ramagem
Refletidas. E na onda a luz do sol centelha.
Desde a rósea alvorada à véspera vermelha,
sente o cisne a enlevá-lo essa branca miragem.

Pende às vezes o colo esbelto longamente
para o cristal: e beija um fantasma que mente
até que baixe a noite e as suas penas tisne.

Tremem os caniçais...os astros despontaram...
E fica o cisne só, como almas que amaram
e para que o amor foi a sombra de um cisne

Eduardo Guimaraens
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Os cisnes selvagens de Coole
Em sua outonal beleza estão as árvores,
Secas as veredas do bosque;
No crepúsculo de Outubro as águas
Reflectem um céu tranquilo;
Nessas transbordantes águas sobre as pedras
Banham-se cinquenta e nove cisnes.

Dezanove outonos se passaram desde que
Os contei pela primeira vez;
E, enquanto o fazia, vi
Que de repente todos se erguiam
E em largos círculos quebrados revolteavam
As clamorosas asas.

Contemplei esses seres resplandecentes
E agora há uma ferida no meu coração,
Tudo mudou desde o dia em que ouvindo ao crepúsculo,
Pela primeira vez nesta costa,
A alta música dessas asas sobre a minha cabeça
Com mais ligeiro passo caminhei.

Infatigáveis, amante com amante,
Movem-se nas frias
E fraternas correntes ou elevam-se nos ares;
Os seus corações não envelheceram;
Paixão ou conquista solicitam ainda
Seu incerto viajar.
Vagueiam agora pelas quietas águas,
Misteriosos, belos;
Entre que juncos edificarão sua morada,
Junto a que lago, junto a que charco,
Deliciarão o olhar do homem quando um dia eu despertar
E descobrir que voando se foram?

W. B. Yeats, Poemas,
selecção e tradução de José Agostinho Baptista, 1988
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A busca das andorinhas

Chegou, chegou a andorinha,
que nos traz belos tempos,
belos anos,
a andorinha do ventre branco,
a andorinha do dorso preto.
Tira a tarte de fruta
da tua casa tão rica
e uma taça de vinho
e um cestinho de queijo.
A andorinha
também não recusa
o pão de trigo nem a gema de ovo. Vamo-nos ou recebemo-lo?
Se me deres alguma coisa; se não, não te deixaremos,
levaremos a porta ou o umbral
ou a tua mulher que está sentada dentro.
É pequena, levá-la-emos facilmente.
Se trouxeres alguma coisa,
que seja grande.
Abre, abre a porta à andorinha.
Que não somos velhos, mas jovens.

Canções gregas anónimas, sec. VI a.C

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Provérbio

Todos os pássaros comem trigo e quem paga é o pardal.
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Dizem-me que se escondem

Dizem-me que se escondem para morrer
Mas eu digo
Que os pássaros não morrem
Que muito alto no meio da espuma
E dos turbilhões de astros do seu canto
Sobem de planeta em planeta
Até à fonte
Anne Perrier
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O pelicano
Na neve primeira ofereci-lhe o sangue na segunda e na terceira
o negro e o branco.
Nu o pelicano de peito amplo retira a sombra da noite
com as mãos rosadas do manto.
Maria Azenha (mariah)
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Le pélican
Le Capitaine Jonathan,
Etant âgé de dix-huit ans
Capture un jour un pélican
Dans une île d'Extrême-orient,
Le pélican de Jonathan
Au matin, pond un oeuf tout blanc
Et il en sort un pélican
Lui ressemblant étonnamment.
Et ce deuxième pélican
Pond, à son tour, un oeuf tout blanc
D'où sort, inévitablement
Un autre, qui en fait autant.
Cela peut durer pendant très longtemps
Si l'on ne fait pas d'omelette avant.

Robert Desnos
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A galinha d' Angola
Coitada, coitadinha
Da galinha-d'Angola
Não anda ultimamente
Regulando da bola

Ela vende confusão
E compra briga
Gosta muito de fofoca
E adora intriga
Fala tanto
Que parece que engoliu uma matraca
E vive reclamando
Que está fraca

Tou fraca! Tou fraca!
Tou fraca! Tou fraca! Tou fraca!

Coitada, coitadinha
Da galinha-d'Angola
Não anda ultimamente
Regulando da bola

Come tanto
Até ter dor de barriga
Ela é uma bagunceira
De uma figa
Quando choca, cocoroca
Come milho e come caca
E vive reclamando
Que está fraca
Tou fraca! Tou fraca! Tou fraca!
Vinicius de Moraes / Toquinho
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O peru
Glu! Glu! Glu!
Abram alas pro peru!

O peru foi a passeio
Pensando que era pavão
Tico-tico riu-se tanto
Que morreu de congestão

O peru dança de roda
Numa roda de carvão
Quando acaba fica tonto
De quase cair no chão

O peru se viu um dia
Nas águas do ribeirão
Foi-se olhando, foi dizendo
Que beleza de pavão

Foi dormir e teve um sonho
Logo que o sol se escondeu
Que sua cauda tinha cores
Como a desse amigo seu
Vinicius de Moraes / Toquinho / Paulo Soledade
© Tonga Editora Musical LTDA / Direto
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O pingüim
Bom dia, pingüim
Onde vai assim
Com ar apressado?
Eu não sou malvado
Não fique assustado
Com medo de mim
Eu só gostaria
De dar um tapinha
No seu chapéu jaca
Ou bem de levinho
Puxar o rabinho
Da sua casaca

Quando você caminha
Parece o Chacrinha
Lelé da caixola
E um velho senhor
Que foi meu professor
No meu tempo de escola
Pingüim, meu amigo
Não zangue comigo
Nem perca a estribeira
Não pergunte por quê
Mas todos põem você
Em cima da geladeira
Vinicius de Moraes / Paulo Soledade
© Tonga Editora Musical LTDA / Direto
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Corujinha
Corujinha, corujinha
Que peninha de você
Fica toda encolhidinha
Sempre olhando não sei quê

O seu canto de repente
Faz a gente estremecer
Corujinha, pobrezinha
Todo mundo que te vê
Diz assim, ah, coitadinha
Que feinha que é você

Quando a noite vem chegando
Chega o teu amanhecer
E se o sol vem despontando
Vais voando te esconder

Hoje em dia andas vaidosa
Orgulhosa como quê
Toda noite tua carinha
Aparece na TV
Corujinha, coitadinha
Que feinha que é você
Vinicius de Moraes / Toquinho
© Tonga Editora Musical LTDA
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O pato
Lá vem o pato
Pata aqui, pata acolá
Lá vem o pato
Para ver o que é que há

O pato pateta
Pintou o caneco
Surrou a galinha
Bateu no marreco
Pulou do poleiro
No pé do cavalo
Levou um coice
Criou um galo
Comeu um pedaço
De genipapo
Ficou engasgado
Com dor no papo
Caiu no poço
Quebrou a tigela
Tantas fez o moço
Que foi pra panela
Vinicius de Moraes / Toquinho / Paulo Soledade
© Tonga Editora Musical LTDA
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Canção do exílio
"Kennst du das Land, wo die Citronen bluhn,
Im dukeln Laub die Gold-Oragen gluhn,
Kennst du es wohl? — Dahin, dihin!
Mõcht'ich... ziehen!". Goethe


Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o sabiá.

Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar — sozinho, à noite —
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o sabiá.

Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o sabiá.


Gonçalves Dias

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A Nossa Garça

Penso que têm nostalgia de mar estas garças pantaneiras.
São viúvas de Xaraiés?
Alguma coisa em azul e profundidade lhes foi arrancada.
Há uma sombra de dor em seus vôos.
Assim, quando vão de regresso aos seus ninhos,
enchem de entardecer os campos e os homens.
Sobre a dor dessa ave há uma outra versão, que eu sei.
É a de não ser ela uma ave canora.
Pois que só grasna — como quem rasga uma palavra

De cantos portanto não é que se faz a beleza desses pássaros.
Mas de cores e movimentos.
Lembram Modigliani.
Produzem no céu iluminuras.
E propõem esculturas no ar.
A Elegância e o Branco devem muito às garças.
Chegam de onde a beleza nasceu?

Nos seus olhos nublados eu vejo a flora dos corixos.
Insetos de camalotes florejam de suas rêmiges.
E andam pregadas em suas carnes larvas de sapos.
Aqui seu vôo adquire raízes de brejo.
Sua arte de ver caracóis nos escuros da lama é um dom de brancura.

Manoel de Barros

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Gavião


No seu vôo de ida e vinda
Um gavião estava a esculpir no ar
o dorso de uma montanha de vidro.

Guimarães Rosa

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Tecendo a Manhã


Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

2. E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

João Cabral de Melo Neto

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Gaivota
cual gaviota
picoteaba los restos de sol
antes de la noche
Beatriz Martinelli
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Arara

1

ruído da reia dos erres raspando
no vôo rasante das asas dos as
o grito da arara é um grito cru
um grito arrancado da carne
crua, um grito em carne viva

a arara guarda seu grito
como certas frutas guardam
dentro delas um sol

2

mão de matisse
no verde escuro da noite
a arara rasga a luz
na nossa cara

corisco encarnado
rubrica de Deus

Marco Polo Guimarães
(Em: Fauna e Flora nos Trópicos - Seleta de poemas. Org. Beatriz
Alcântara e Lourdes Sarmento.
Fortaleza: SECULT, 2002)
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Urubu

Carniça é morte e vida
que alimenta o meu voar
do chão até a nuvem.
Olga Savary
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Beija-flor

Da esperança homens usam
minhas asas de metáfora:
polinizo liberdade.
Olga Savary

(Em: Fauna e Flora nos Trópicos - Seleta de poemas. Org. Beatriz
Alcântara e Lourdes Sarmento.
Fortaleza: SECULT, 2002)
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Pardalzinho

O pardalzinho nasceu
Livre.Quebraram-lhe a asa.
Sacha lhe deu uma casa,
Água, comida e carinhos.
Foram cuidados em vão:
A casa era uma prisão,
O pardalzinho morreu.
O corpo Sacha enterrou
No jardim; a alma, essa voou
Para o céu dos passarinhos!

Manuel Bandeira

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Cotovia

— Alô, cotovia!
Aonde voaste,
Por onde andaste,
Que saudades me deixaste?

— Andei onde deu o vento.
Onde foi meu pensamento
Em sítios, que nunca viste,
De um país que não existe . . .
Voltei, te trouxe a alegria.

— Muito contas, cotovia!
E que outras terras distantes
Visitaste? Dize ao triste

.— Líbia ardente, Cítia fria,
Europa, França, Bahia . . .—
E esqueceste Pernambuco,
Distraída?

— Voei ao Recife, no Cais
Pousei na Rua da Aurora.

— Aurora da minha vida
Que os anos não trazem mais!

— Os anos não, nem os dias,
Que isso cabe às cotovias.
Meu bico é bem pequenino
Para o bem que é deste mundo:
Se enche com uma gota de água.
Mas sei torcer o destino,
Sei no espaço de um segundo
Limpar o pesar mais fundo.
Voei ao Recife, e dos longes
Das distâncias, aonde alcança
Só a asa da cotovia,
— Do mais remoto e perempto
Dos teus dias de criança
Te trouxe a extinta esperança,
Trouxe a perdida alegria.

Manuel Bandeira

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Andorinha

Andorinha lá fora está dizendo:
— "Passei o dia à toa, à toa!"

Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa . . .


- Manuel Bandeira

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Pombo-correio

Os garotos da Rua Noel Rosa
onde um talo de samba viça no calçamento,
viram o pombo-correio cansado
confuso
aproximar-se em vôo baixo.
Tão baixo voava: mais raso
que os sonhos municipais de cada um.
Seria o Exército em manobras
ou simplesmente
trazia recados de ai! Amor
à namorada do tenente em Aldeia Campista?
E voando e baixando entrançou-se
entre folhas e galhos de fícus:
era um papagaio de papel,
estrelinha presa, suspiro
metade ainda no peito, outra metade
no ar.
Antes que o ferissem,
pois o carinho dos pequenos ainda é mais desastrado
que o dos homens
e o dos homens costuma ser mortal
uma senhora o salva
tomando-o no berço das mãos
e brandamente alisa-lhe
a medrosa plumagem azulcinza
cinza de fundos neutros de Mondrian
azul de abril pensando maio.
3235-58-Brasil
dizia o anel na perninha direita.
Mensagem não havia nenhuma
ou a perdera o mensageiro
como se perdem os maiores segredos de Estado
que graças a isto se tornam invioláveis,
ou o grito de paixão abafado
pela buzina dos ônibus.
Como o correio (às vezes) esquece cartas,
teria o pombo esquecido
a razão de seu vôo?
Ou sua razão seria apenas voar
baixinho sem mensagem como a gente
vai todos os dias à cidade
e somente algum minuto em cada vida
se sente repleto de eternidade, ansioso
por transmitir a outros sua fortuna?
Era um pombo assustado
perdido
e há perguntas na Rua Noel Rosa
e em toda parte sem resposta.
Pelo quê a senhora o confiou
ao senhor Manuel Duarte, que passava
para ser devolvido com urgência
ao destino dos pombos militares
que não é um destino.

Carlos Drummond de Andrade
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Sonetos do pássaro

I

Amar um passarinho é coisa louca.
Gira livre na longa azul gaiola
que o peito me constringe, enquanto a pouca
liberdade de amar logo se evola.

É amor meação? pecúlio? esmola?
Uma necessidade urgente e rouca
de no amor nos amarmos se desola
em cada beijo que não sai da boca.

O passarinho baixa a nosso alcance,
e na queda submissa um vôo segue,
e prossegue sem asas, pura ausência,

outro romance ocluso no romance.
Por mais que amor transite ou que se negue,
é canto (não é ave) sua essência.



II

Batem as asas? Rosa aberta, a saia
esculpe, no seu giro, o corpo leve.
Entre músculos suaves, uma alfaia,
selada, tremeluz à vista breve.

O que, mal percebido, se descreve
em termos de pelúcia ou de cambraia,
o que é fogo sutil, soprado em neve,
curva de coxa atlântica na praia,

vira mulher ou pássaro? No rosto,
essa mesma expressão aérea ou grave,
esse indeciso traço de sol-posto,

de fuga, que há no bico de uma ave.
O mais é jeito humano ou desumano,
conforme a inclinação de meu engano.


Carlos Drummond de Andrade

................................................................................................................................................Pássaro morto

O céu está cheio de surpresas:
o passarinho morto,
a parede.
eis que te encontramos,
amiguinho.
Não tens mais fôlego.
Mesmo o fôlego de um passarinho.

Não faz mal. Mas nada faz mal.
Um passarinho choca-se
com a parede:
ponto final.

Por isso todo pássaro é simbólico
– um dia não se volta mais à casa.

Antônio Brasileiro ...................................................................................................................................



Cantilena

"Cortaram-te as asas
rouxinol
Rouxinol sem asas
não pode voar.

Quebraram-te o bico,
rouxinol!
Rouxinol sem bico
não pode cantar.

Que ao menos a Noite
ninguém, rouxinol!,
ta queira roubar.
Rouxinol sem Noite
não pode viver. "

- Sebastião da Gama

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Zoologia: O Melro

Na gaiola, o melro não tem o bico mais amarelo
do que fora dela. Encolhe-se a um canto,
coitado, e parece envergonhado;
-embora esteja ali por culpa de quem lá o meteu
sabendo que um melro não cai do céu.

Há pássaros assim, que qualquer um
mete numa gaiola, apesar do bico ser amarelo.
Não cantam. Não voam. Não falam.
São pássaros cegos
com a mudez dos oráculos e mudos
com a lucidez dos profetas.

Perfeitamente por acaso, abri-lhe
a gaiola. E ele deixou-se estar, sem sair
nem entrar.

(Nuno Júdice- Poemas em voz alta)

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Pássaro

Aquilo que ontem cantava
já não canta.
Morreu de uma flor na boca:
não do espinho na garganta.

Ele amava a água sem sede,
e, em verdade,
tendo asas, fitava o tempo,
livre de necessidade.

Não foi desejo ou imprudência:
não foi nada.
E o dia toca em silêncio
a desventura causada.

Se acaso isso é desventura:
ir-se a vida
sobre uma rosa tão bela,
por uma tênue ferida.

Cecília Meireles
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A Pombinha da Mata


Três meninos na mata ouviram
uma pombinha gemer.

"Eu acho que ela está com fome",
disse o primeiro,
"e não tem nada para comer."

Três meninos na mata ouviram
uma pombinha carpir.

"Eu acho que ela ficou presa",
disse o segundo,
"e não sabe como fugir."

Três meninos na mata ouviram
uma pombinha gemer.

"Eu acho que ela está com saudade",
disse o terceiro,
"e com certeza vai morrer."

Cecília Meireles

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Passarinho
concupiscio o cuco
para acontar-me
batidas.
rios na madeira
para aquecimento
de ouvidos.
[tuc tuc tuc tuc]
cócegas na árvore
para aquecidos
ouvimentos.
um cuco:
dócil martelo.
um tranquilizador de florestas.
ele, o soba dos ecos,
hipnotizador dos silêncios…
Ondjaki
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O albatroz

Às vezes, por prazer, os homens da equipagem
Pegam um albatroz, imensa ave dos mares,
Que acompanha, indolente parceiro de viagem,
O navio a singrar por glaucos mares.

Tão logo o estendem sobre as tábuas do convés,
O monarca do azul, canhestro e envergonhado,
Deixa pender, qual par de remos junto aos pés,
As asas em que fulge um branco imaculado.

Antes tão belo, como é feio na desgraça
Esse viajante agora flácido e acanhado!
Um, com o cachimbo, lhe enche o bico de fumaça,
Outro, a coxear, imita o enfermo outrora alado!

O Poeta se compara ao príncipe da altura
Que habita os vendavais e ri da seta no ar;
Exilado no chão, em meio à turba obscura,
As asas de gigante impedem-no de andar.

Baudelaire

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A cotovia
Parei vindo de Espanha,
no Alto de Leomil,
onde os ventos da raia se entrechocam,
e com os mesmos gestos de sempre
atestei o depósito de gasolina;
a chave, o tampão, a mangueira,
a seiva das florestas mortas
vendida pela British Petroleum
gorgolejava em números;
e ao pé dos camiões TIR,
junto da IP5,
no que sobrou de um campo,
ouvi a cotovia.
Sozinha entre pardais,
não cantava: era um grito de outono,
e gritava e corria,
e os pardais esvoaçavam.
Os gestos repetidos do trabalho
negavam-me esse resto de candura,
e a cotovia foi-se,
e a estrada conduziu-me para longe.
Nuno Dempster
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Pavão vermelho
Ora, a alegria, este pavão vermelho,
está morando em meu quintal agora.
Vem pousar como um sol em meu joelho
quando é estridente em meu quintal a aurora.

Clarim de lacre, este pavão vermelho
sobrepuja os pavões que estão lá fora.
É uma festa de púrpura. E o assemelho
a uma chama do lábaro da aurora.

É o próprio doge a se mirar no espelho.
E a cor vermelha chega a ser sonora
neste pavão pomposo e de chavelho.

Pavões lilases possuí outrora.
Depois que amei este pavão vermelho
os meus outros pavões foram-se embora.

Sosígenes Costa
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Pavão azul

No jardim do castelo desse bruxo
d’asas d’ouro e olhos verdes de dragão,
tu és à beira de um lilás repuxo
um grande lírio de ouro e de açafrão.

Transformado em pavão por esse bruxo,
vivo te amando em tardes de verão,
dentre as rosas e os pássaros de luxo
do jardim desse bruxo castelão.

Tenho medo que um dia o jardineiro...
Mas nunca, estou bem certo, do canteiro
há de colher-te, ó minha flor taful.

Porque ele sabe que em manhã serena,
não suportando a ausência da açucena,
há de morrer esse pavão azul.

Sosígenes Costa

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Segredo
Sei um ninho.
E o ninho tem um ovo.
E o ovo tem lá dentro um passarinho
Novo.
Mas escusam de me atentar:
Nem o tiro, nem o ensino.
Quero ser um bom menino
E guardar
Este segredo comigo
E ter depois um amigo
Que faça o pino
A voar...
Miguel Torga, Diário VIII
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O pássaro

O pássaro canta. As penas brilham

A palmeira ergue-se à beira do espaço.
O vento move-se nos ramos lentamente.
Pendidas, oscilam as penas do pássaro ornadas de fogo.


Wallace Stevens.
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A garça

Irritante, egoísta, superior,
estafeta macérrima do sutil
exclamação arrogante e desafeta,
a garça indiferença é solidão.

O silêncio elegante e implacável
como o passo cauteloso da tísica,
vaidosa, assexuada e impermeável
a garça geômetra é intolerante.

Curiosa, pragmática, pontual,
autista, longilínea, vertical
em seu hierático olhar de rapina,
a garça não cogita, bica.

Estável, fléxil e sobeja,
álgido filete de brio,
virgíneo clarão de um venábulo,
a garça é sina, seca e supina.
Artur da Távola
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O canto dos sabiás
Serão de mortos anjinhos
o cantar de errantes almas,
dos coqueirais florescentes,
a brincar nas verdes palmas,
estas notas maviosas
que me fazem suspirar?

São os sabiás que cantam
nas mangueiras do pomar.

Serão os gênios da tarde
que passam sobre as campinas,
cingindo o colo de opalas
e a cabeça de neblinas,
e fogem, nas harpas de ouro
mansamente a dedilhar?

São os sabiás que cantam.
não vês o sol a declinar?

Ou serão talvez as preces
de algum sonhador proscrito,
que vagueia nos desertos,
alma cheia de infinito,
pedindo a Deus um consolo
que o mundo não pode dar?

São os sabiás que cantam.
Como está sereno o mar!
Ou, quem sabe, as tristes sombras
de quanto amei neste mundo,
que se elevam lacrimosas
de seu túmulo profundo,
e vêm os salmos da morte
no meu desterro entoar?

São os sabiás que cantam.
Não gostas de os escutar?

Serás tu, minha saudade?
Tu, meu tesouro de amor?
Tu que às tormentas murchaste
da mocidade na flor?
Serás tu? Vem, sê bem-vinda,
quero-te ainda escutar.

São os sabiás que cantam
antes da noite baixar.

Mas ah! Delírio insensato!
Não és tu, sombra adorada!
Não há cânticos de anjinhos,
nem de falange encantada
passando sobre as campinas
nas harpas a dedilhar!

São os sabiás que cantam
nas mangueiras do pomar.
– Fagundes Varela
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Passam ´cantando os rouxinóis nos prados

Passam cantando rouxinóis nos prados
de além-mar...
( Por esse mundo quantos noivados
nesta hora que vai soar!)

Passam chorando sabiás nos cerros
do meu lar...
( Por esse mundo quantos enterros
nesta hora que vai soar!)

– Alphonsus de Guimaraens
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Os galos
O seu aprumo vertical
A crista sangíinea,
A leve corrida
E a camisola luzidia
Que vestem sibre a pele
O fogo com que lutam, amam.
António Osório,A Casa das sementes.Poemas escolhidos
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[Tenho tristezas]
Tenho tristezas como toda a gente.
E como toda a gente quero alegria.
Mas hoje sou dum céu que tem gaivotas,
leve o diabo essa morte dia a dia.

Eugénio de Andrade

Cisne

À memória de Cruz e Sousa

Vagueia, ondula, incontrolado e belo,
um cisne insone em solitário canto.
Caminha à margem com a plumagem negra,
em meio a um bando de pombas atônitas.

Encontra um outro, de alvacentas plumas,
um ser sagrado no monte Parnaso,
e enquanto o branco vai vencendo a bruma
ele naufraga, bêbado de espaço.

Em vão indaga, o olhar emparedado
na vertigem de luz que o sol encerra:
“Se em torno tudo é treva, tudo é nada,

como sonhar azul em outra esfera?”
Negro cisne sangrando em frente a um poço.
Do alto, um Deus cruel cospe em seu rosto

Antônio Carlos Sechin

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Treze maneiras de olhar um melroI

Em vinte montanhas nevadas
Só uma coisa se movia:
O olho do melro.

II

Eu estava entre três opções,
Como árvore
Em que pousaram três melros.

III

O melro girava no vento outonal.
Era um figurante na pantomina.

IV

Um homem mais uma mulher
Dá um.
Um homem mais uma mulher mais um melro
Dá um.

V

Não sei se prefiro
A beleza das inflexões
Ou a das insinuações,
O assovio do melro
Ou o instante depois.

VI

O gelo cobria a longa janela
Com bárbaros cristais.
A sombra do melro
Cruzava de lá para cá.
E na sombra
Desenhou-se
Uma causa indecifrável.

VII

Ó homem magro de Haddam,
Por que sonhais com aves douradas?
Acaso não vedes o melro
A caminhar por entre os pés
Das mulheres que vos cercam?

VIII

Sei de nobres canções
E ritmos lúcidos, irressistíveis;
Mas sei também
Que o melro tem a ver
Com o que sei.

IX

Quando voou além de onde a vista alcança
O melro demarcou o limite
De um de muitos círculos.

X

Ao ver melros voando
Numa luz esverdeada,
Mesmo os cáftens da eufonia
Exclamariam espantados.

XI

Ele atravessava Connecticut
Num tilburi de vidro.
Certa vez teve medo:
Por um instante pensou
Que a sombra da carruagem
Eram melros.

XII

O rio está correndo.
O melro deve estar voando.

XIII

Era noite, a tarde toda.
Nevava
E ia nevar.
E o melro imóvel
Num galho de cedro.


(tradução: Paulo Henriques Britto)


Wallace Stevens. In: Harmonium


O melro
O melro, eu conheci-o:
Era negro, vibrante, luzidio,
Madrugador, jovial;
Logo de manhã cedo
Começava a soltar, dentre o arvoredo,
Verdadeiras risadas de cristal.
E assim que o padre-cura abria a porta
Que dá para o passal,
Repicando umas finas ironias,
O melro; dentre a horta,
Dizia-lhe: "Bons dias!"
E o velho padre-cura
não gostava daquelas cortesias.

O cura era um velhote conservado,
Malicioso, alegre, prazenteiro;
Não tinha pombas brancas no telhado,
Nem rosas no canteiro:
Andava às lebres pelo monte, a pé,
Livre de reumatismos,
Graças a Deus, e graças a Noé.
O melro desprezava os exorcismos
Que o padre lhe dizia:
Cantava, assobiava alegremente;
Até que ultimamente
O velho disse um dia:

"Nada, já não tem jeito!, este ladrão
Dá cabo dos trigais!
Qual seria a razão
Por que Deus fez os melros e os pardais?!"

E o melro entretanto,
Honesto como um santo,
Mal vinha no oriente
A madrugada clara,
Já ele andava jovial, inquieto,
Comendo alegremente, honradamente,
Todos os parasitas da seara
Desde a formiga ao mais pequeno insecto.
E apesar disto, o rude proletário,
O bom trabalhador,
Nunca exigiu aumento de salário.

Que grande tolo o padre confessor!

Foi para a eira o trigo;
E, armando uns espantalhos,
Disse o abade consigo:
"Acabaram-se as penas e os trabalhos."
Mas logo de manhã, maldito espanto!
O abade, inda na cama,
Ouvindo do melro o costumado canto,
Ficou ardendo em chama;
Pega na caçadeira,
Levanta-se dum salto,
E vê o melro, a assobiar, na eira,
Em cima do seu velho chapéu alto!

Chegou a coisa a termo
Que o bom do padre-cura andava enfermo;
Não falava nem ria,
Minado por tão íntimo desgosto;
E o vermelho oleoso do seu rosto
Tornava-se amarelo dia a dia.
E foi tal a paixão, a desventura
(Muito embora o leitor não me acredite),
Que o bom do padre-cura
Perdera o apetite!


***
Andando no quintal, um certo dia,
Lendo em voz alta o Velho Testamento,
Enxergou por acaso (que alegria!,
Que ditoso momento!)
Um ninho com seis melros, escondido
Entre uma carvalheira.

E ao vê-los exclamou enfurecido:

"A mãe comeu o fruto proibido;
Esse fruto era minha sementeira:
Era o pão, e era o milho;
Transmitiu-se o pecado.
E, se a mãe não pagou, que pague o filho.
É doutrina da Igreja. Estou vingado!"

E, engaiolando os pobres passaritos,
Soltava exclamações:
"É uma praga. Malditos!
Dão me cabo de tudo esses ladrões!
Raios os partam! Andai lá que enfim"

E deixando a gaiola pendurada,
Continuou a ler o seu latim,
Fungando uma pitada.

Vinha tombando a noite silenciosa;
E caía por sobre a natureza
Uma serena paz religiosa,
Uma bela tristeza
Harmónica, viril, indefinida.
A luz crepuscular
Infiltra-nos na alma dorida
Um misticismo heróico e salutar.
As árvores, de luz inda douradas,
Sobre os montes longínquos, solitários,
Tinham tomado as formas rendilhadas
Das plantas dos herbários.
Recolhiam-se a casa os lavradores.
Dormiam virginais as coisas mansas:
Os rebanhos e as flores,
As aves e as crianças.

Ia subindo a escada o velho abade;
A sua negra, atlética figura,
Destacava na frouxa claridade,
Como uma nódoa escura.
E, introduzindo a chave no portal,
Murmurou entre dentes:

"Tal e qual tal e qual!
Guisados com arroz são excelentes."

* * * * * *
Nasceu a Lua. As folhas dos arbustos
Tinham o brilho meigo, aveludado,
Do sorriso dos mártires, dos justos.
Um eflúvio dormente e perfumado
Embebedava as seivas luxuriantes.
Todas as forças vivas da matéria
Murmuravam diálogos gigantes
Pela amplidão etérea.
São precisos silêncios virginais,
Disposições simpáticas, nervosas,
Para ouvir falar estas falas silenciosas
Dos mundos vegetais.
As orvalhadas, frescas espessuras,
Pressentiam-se quase a germinar.
Desmaiavam-se as cândidas verduras
Nos magnetismos brancos do luar.

..................................................
..................................................

E nisto o melro foi direito ao ninho.
Para o agasalhar, andou buscando
Umas penugens doces como arminho,
Um feltrozito acetinado e brando.
Chegou lá, e viu tudo.
Partiu como uma frecha; e, louco e mudo,
Correu por todo o matagal; em vão!
Mas eis que solta de repente um grito
Indo encontrar os filhos na prisão.

"Quem vos meteu aqui?!" O mais velho,
Todo tremente, murmurou então:

"Foi aquele homem negro. Quando veio,
Chamei, chamei Andavas tu na horta
Ai que susto, que susto!, ele é tão feio!
Tive-lhe tanto medo! Abre esta porta
E esconde-nos debaixo da tua asa!
Olha, já vão florindo as açucenas;
Vamos a construir a nossa casa
Num bonito lugar
Ai! quem me dera, minha mãe, ter penas
Para voar, voar!"

E o melro alucinado
Clamou:

"Senhor! senhor!
É porventura crime ou é pecado
Que eu tenha muito amor
A estes inocentes?!
Ó natureza, ó Deus, como consentes
Que me roubem assim os meus filhinhos,
Os filhos que eu criei!
Quanta dor, quanto amor, quantos carinhos,
Quanta noite perdida
Nem eu sei...
E tudo, tudo em vão!
Filhos da minha vida
Filhos do coração!!!
Não bastaria a natureza inteira,
Não bastaria o Céu par voardes,
E prendem-vos assim desta maneira!
Covardes!
A luz, a luz, o movimento insano,
Eis o aguilhão, a fé que nos abrasa
Encarcerar a asa
É encarcerar o pensamento humano.
A culpa tive-a eu! Quase à noitinha
Parti, deixei-os sós
A culpa tive-a eu, a culpa é minha,
De mais ninguém! Que atroz!
E eu devia sabê-lo!
Eu tinha obrigação de adivinhar
Remorso eterno! eterno pesadelo!
.................................................

Falta-me a luz e o ar! Oh, quem me dera
Ser abutre ou fera
Para partir o cárcere maldito!
E como a noite é límpida e formosa!
Nem um ai, nem um grito
Que noite triste!, oh, noite silenciosa!"

E a natureza fresca, omnipotente,
Sorria castamente
Com o sorriso alegre dos heróis.
Nas sebes orvalhadas,
Entre folhas luzentes como espadas,
Cantavam rouxinóis.

Os vegetais felizes
Mergulhavam as sôfregas raízes
A procurar na terra as seivas boas,
Com a avidez e as raivas tenebrosas
Das pequeninas feras vigorosas
Sugando à noite os peitos das leoas.
A lua triste, a Lua merencória,
Desdémona marmórea,
Rolava pelo azul da imensidade,
Imersa numa luz serena e fria,
Branca como a harmonia,
Pura como a verdade.
E entre a luz do luar e os sons das flores,
Na atonia cruel das grandes dores,
O melro solitário
Jazia inerte, exânime, sereno,
Bem como outrora o Nazareno
Na noite do calvário!

Segundo o seu costume habitual,
Logo de madrugada
O padre-cura foi para o quintal,
Levando a Bíblia e sobraçando a enxada.
Antes de dizer missa,
O velho abade inevitavelmente
Tratava da hortaliça
E rezava a Deus-Padre Omnipotente
Vários trechos latinos,
Salvando desta forma, juntamente,
As ervilhas, as almas e os pepinos.

E já de longe ia bradando:

"Olé!
Dormiram bem? Estimo
Eu lhes darei o mimo,
Canalha vil, grandíssima ralé!
Então vocês, seus almas do Diabo,
Julgam que isto que era só dar cabo
Da horta e do pomar,
E o bico alegre e estômago contente,
E o camelo do cura que se aguente,
Que engrole o seu latim e vá bugiar!
Grandes larápios! Era o que faltava
Vocês irem ao milho,
E a mim mandar-me à fava!
Pois muito bem, agora que vos pilho
Eu vos ensinarei, meus safardanas!
Vocês são mariolões, são ratazanas,
Têm bico, é certo, mas não têm tonsura
E, nas manhas, um melro nunca chega
Às manhas naturais de um padre-cura.
O melhor vinho que encontrar na adega
É para hoje, olé! Que bambochata!
Que petisqueira! Melros com chouriço!
E então a Fortunata
Que tem um dedo e jeito para isso!
Hei-de comer-vos todos um a um,
Lambendo os beiços, com tal gana enfim,
Que comendo-vos todos, mesmo assim
Eu fico ainda quase em jejum!
E depois de vos ter dentro da pança,
Depois de vos jantar,
Vocês verão como o velhote dança,
Como ele é melro e sabe assobiar!"

Mas nisto o padre-cura, titubeante,
Quase desfalecendo,
Atónito de horror, parou diante
Deste drama estupendo:

O melro, ao ver aproximar o abade,
Despertou da atonia,
Lançando-se furioso contra a grade
Do cárcere. Torcia,
Para os partir os ferros da prisão,
Crispando as unhas convulsivamente
Com a fúria dum leão.
Batalha inútil, desespero ardente!
Quebrou as garras, depenou as asas
E alucinado, exangue,
Os olhos como brasas,
Herói febril, a gotejar em sangue,
Partiu num voo arrebatado e louco,
Trazendo, dentro em pouco,
Preso do bico, um ramo de veneno.
E belo e grande e trágico e sereno,
Disse:
"Meus filhos, a existência é boa
Só quando é livre. A liberdade é a lei,
Prende-se a asa mas a alma voa
Ó filhos, voemos pelo azul! Comei!" -

E mais sublime do que Cristo, quando
Morreu na Cruz, maior do que Catão,
Matou os quatro filhos, trespassando
Quatro vezes o próprio coração!
Soltou, fitando o abade, uma pungente
Gargalhada de lágrima, de dor,
E partiu pelo espaço heroicamente,
Indo cair, já morto, de repente
Num carcavão com silveiras em flor.

E o velho abade, lívido d'espanto,
Exclamou afinal:
"Tudo o que existe é imaculado e é santo!
Há em toda a miséria o mesmo pranto
E em todo o coração há um grito igual.
Deus semeou d'almas o universo todo.
Tudo que o vive ri e canta e chora
Tudo foi feito com o mesmo lodo,
Purificado com a mesma aurora.
Ó mistério sagrado da existência,
Só hoje te adivinho,
Ao ver que a alma tem a mesma essência,
Pela dor, pelo amor, pela inocência,
Quer guarde um berço, quer proteja um ninho!
Só hoje sei que em toda a criatura,
Desde a mais bela até à mais impura,
Ou numa pomba ou numa fera brava,
Deus habita, Deus sonha, Deus murmura!
............................................................
Ah, Deus é bem maior do que eu julgava"

E quedou silencioso. O velho mundo,
Das suas crenças antigas, num momento,
Viu-o sumir exausto, moribundo,
Nos abismos sem fundo
Do temeroso mar do Pensamento.
E chorou e chorou A Igreja, a Crença,
Rude montanha, pavorosa, escura,
Que enchia o globo com a sombra imensa
Dos seus setenta séculos d'altura;
O Himalaia de dogmas triunfantes,
Mais eternos que o bronze e que o granito,
Onde aos profetas Deus falava dantes,
Entre raios e nuvens trovejantes,
Lá dos confins sidérios do infinito;
Esse colosso enorme, em dois instantes
Viu-o tremer, fender-se e desabar
Numa ruína espantosa,
Só de tocar-lhe a asa vaporosa
Duma avezinha trémula, a expirar!
.................................................
.................................................
E, arremessando a Bíblia, o velho abade
Murmurou:
"Há mais fé e há mais verdade,
Há mais Deus concerteza
Nos cardos secos dum rochedo nu
Que nessa Bíblia antiga Ó Natureza,
A única Bíblia verdadeira és tu!..."
Guerra Junqueiro in A Velhice do Padre Eterno
Os galos

O seu aprumo varonil
a crista sanguínea,
a leve corrida
e a camisola luzidia
que vestem sobre a pele,
o fogo com que lutam, amam.

António Osório, A Casa das Sementes, Poemas Escolhidos,
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2.Poemas com animais diversos

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Vozes dos animais

Palram pega e papagaio
E cacareja a galinha,
Os ternos pombos arrulham,
Geme a rola inocentinha.

Muge a vaca, berra o touro
Grasna a rã, ruge o leão,
O gato mia, uiva o lobo
Também uiva e ladra o cão.

Relincha o nobre cavalo
Os elefantes dão urros,
A tímida ovelha bala,
Zurrar é próprio dos burros.

Regouga a sagaz raposa,
(bichinho muito matreiro);
Nos ramos cantam as aves;
Mas pia o mocho agoureiro.

Sabem as aves ligeiras
O canto seu variar:
Fazem às vezes gorjeios,
Às vezes põem-se a chilrar.

O pardal, daninho aos campos,
Não aprendeu a cantar;
Como os ratos e as doninhas,
Apenas sabe chiar.

O negro corvo crocita,
Zune o mosquito enfadonho,
A serpente no deserto
Solta assobio medonho.

Chia a lebre, grasna o pato,
Ouvem-se os porcos grunhir,
Libando o suco das flores,
Costuma a abelha zumbir.

Bramam os tigres, as onças,
Pia, pia o pintainho,
Cucurica e canta o galo,
Late e gane o cachorrinho.

A vitelinha dá berros,
O cordeirinho balidos,
O macaquinho dá guinchos,
A criancinha vagidos.

A fala foi dada ao homem,
Rei dos outros animais:
Nos versos lidos acima
Se encontram em pobre rima
As vozes dos principais.


Pedro Dinis, em Tesouro Poético da Infância, recolha de Antero de Quental



O gato e o pássaro


Uma aldeia ouve desolada
O canto do pássaro ferido
É o único pássaro da aldeia
E foi o único gato da aldeia
Que o devorou por metade
E o pássaro deixa de cantar
O gato deixa de ronronar
E de lamber o focinho
E a aldeia faz ao pássaro
Um funeral maravilhoso
E o gato que foi convidado
Segue atrás do pequeno caixão de palha
Onde io pássaro morto vai estendido
Levado por uma menina
Que não pára de chorar
Se soubesse que isso te deixava tão triste
Disse-lhe o gato
Tinha-o comido inteiro
E depois contava-te
Que o tinha visto partir a voar
A voar até ao fim do mundo
De onde tão longe que é
Nunca ninguém volta
Seria para ti um desgosto mais pequeno
Unicamente tristeza e saudades
Nunca se devem deixar as coisas a meio.
Jacques Prévert,
trad. de José Lima - in Diversos 10-Revista de Tradução e de Poesia, ,- Outono 2006, Edições Sempre-em-Pé
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O pirilampo e o sapo

Lustroso um astro volante
rompeu das humildes relvas:
com seu vôo rutilante
alegrava à noite as selvas.

Mas de vizinho terreno
saiu de uma cova um sapo,
e despediu-lhe um sopapo
que o ensopou de veneno.

Ao morrer, exclama o triste:
“Que tens tu que me acuses?
Que crime em meu seio existe?”
Respondeu-lhe:”Porque luzes!”

Marquesa de Alorna
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A morte do pintainho
(Adaptação de "Cock Robin")

Quem matou o pintainho?
Eu, disse o pato
Com meu pé chato
Eu matei o pintainho.

Quem viu ele morto?
Eu, disse o mocho
Com meu olho torto
Eu vi ele morto.

Quem chupou seu sangue?
Eu, disse o morcego
Que não sou cego
Eu chupei seu sangue.

Quem lhe deu mortalha?
Eu, disse a aranha
Com teia e artimanha
Eu lhe dei mortalha

Quem vai ser o padre?
Eu, o louva-a-deus
Em nome de Deus
Eu serei o padre.

Quem será o sacrista?
Eu, disse o frango
Com a minha crista
Eu serei o sacrista.

Que leva o caixão?
Eu, disse o gavião
Sei bem porque não
Eu levo o caixão

Quem será o coveiro?
Eu, a toupeira
Eu que sou coveira
Eu serei o coveiro.

Quem fará o túmulo?
Eu, disse o joão-de-barro
Pois que tenho barro
Eu farei o túmulo.

Quem leva a vela?
Eu, o vaga-lume
Eu acendo o lume
E eu levo a vela.

Quem vai cantar?
Eu, o pardal
La-la-ri-la-ra
Eu sei cantar.

Quem leva as coroas?
Eu, disse o cisne
Já que não dou rima
Eu levo as coroas.

Quem toca o sino?
Disse o suíno:
Eu mais o boi
Nós tocamos o sino.

Quem vai na frente?
Eu, o periquito
Porque sou bonito
Eu vou na frente.

Todo o pássaro do ar
Foi chorar lá no seu ninho
Ao ouvir tocar o sino
Pelo pobre pintainho.
Vinicius de Moraes
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O Monopólio da Sabedoria


Homens sábios avançam pelas planícies
Chegam ao pé de nós e dizem Vocês são
Aves de rapina Nós pequeninos ratinhos
E logo nos crescem duríssimas asas

E garras de afiadas pontas e vemo-nos
A pairar ameaças entre mar e terra A nossa
Sombra alastra nas campinas sobreiros
E oliveiras É isto um pesadelo?

Acordamos suando a tactear de novo o mundo
Homens ainda mais sábios entram-nos nas searas
E dizem Vocês afinal são lobos e nós cabrinhas
Pulando de raiva andamos à volta nas clareiras

Repelimos os sábio mas alguns dos nossos dizem-nos
Olhem como despontam já as vossas orelhas de lobo
E correm amedrontados a juntar-se às cabrinha
E estas festejam-nos com almudes de vinho e leitinho


Alexandre Pinheiro Torres

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Ao escorpião se aponta a própria lança
[…]
2.
Ao escorpião se aponta a própria lança. Quando se vê
na sombra que o perfil perfaz
rasteja e foge do perigo que lê. Mede-se a sós consigo e
treme, freme, se detém contrito. Aprende em breve a
viajar de lado. Recusa a lição do sol. Finge que a
sombra não lhe diz respeito. No coração , apenas, o afã
da busca,
a gangrena da culpa, o mioma da falta. E segue mudo,
de bitola em riste. Transporta o medo do poder que o
serve. Um dia vai saber do que é que a casa gasta.
A defesa que tem contra si se vira. Se lhe devolve a força
de agredir.
Quem pode pisa quem não pode cospe.

[…]

8.
Cruel é o camarão tanto se dar ao esforço da comida com
tanta perna a pedalar no limo, a filtrar o céu das águas,

reter em cada sorvo
não mais do que a milésima porção do seu tão leve corpo,
ainda assim pesado, difícil de suster, e trabalhoso.

Melhor é o leão só carecer do vento que anuncia a caça,
erguer o olhar, aferir o curso da manada, lenta ao seu
encontro e à margem do alcance, explodir a massa
muscular
rasgar na chana a floração avulsa de uma ferida quente.

Para além disso, breve audácia, o leão namora e dorme.

Habita o cio.
Ruy Duarte de Carvalho –in Ordem do Esquecimento
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A Cabra o Carneiro e o Cevado

Uma vez
Uma cabra, um carneiro e um cevado
Iam numa carroça todos três,
Caminho do mercado...
Não iam passear, é manifesto;
Mas vamos nós ao resto.
Ia o cevado numa gritaria,
Que a cabra e o carneiro
Não podendo na sua boa fé
Acertar com a causa do berreiro,
Diziam lá consigo:
Que mania!
Cá este nosso amigo
E companheiro
Por força gosta mais de andar a pé!...

o caso é
que o cevado gritou tanto
ou tão pouco
que o carroceiro
perde a cabeça
vai como louco
saca o foeiro
e diz:
homessa !
eu inferneiras tais não as aturo
ouvir berrar há tanto tempo é duro
o senhor não vê que esta em chora
nem ao menos
as lágrimas lhe saltam
o que é tão natural
numa senhora
goelas não lhe faltam
e de ferro
o ponto é que ela as abra
mas é cabra;;
teve outra criação
não dá alguma sem alguma razão
e julga que este cavalheiro é mudo?
tem propósito é sério é sisudo!
às vezes, dá um berro que estremece tudo
mas é só quando é preciso
tem juízo
miolo!

miolo... exclama o outro!
pobre tolo!
ele supõe que o levam à tosquia
e por isso nem pia!
e esta, pensa que vai de carro ao tarro
vazar a teta
pobre pateta
mas porcos não se ordenham
cevados não se ordenham
nem tosquiam
demais sei eu
demais sei eu
o fim com que se criam
por isso grito e gritarei
do fundo da minha alma
até à morte
aqui d'el-rei aqui d'el-rei

gritava como um homem muita gente
não discorre com tanta discrição
infelizmente
quando o mal é fatal
a lamúria que vale
que vale a prevenção
mais vale ser insensato
que prudente
o insensato
ao menos
menos sente
não vê um palmo adiante do nariz

vê o presente!
está contente!
é mais feliz!!


Joao de Deus

O ganso

o ganso no remanso
do arbusto
corria ao pão
num sobressalto
num susto

o miolo do pão
era a distracção
do ganso
no remanso do arbusto

o ganso ali parado
na sombra quieto
alguém passava
e murmurava:
-olha o ganso
saído do descanso

-olha avó e neto
a dar de comer ao ganso
saídos do remanso
muito perto do arbusto

eu lançava a minha mão
ao longe
e o ganso vinha ao pão
humilde como um monge

eu abismado
sentia-me sozinho
enquanto a tia Singela
roubava hastes do jardim

E a falar a espaços
alisava na terra os passos
punha nos sacos entre- abertos
segredos que floresciam
nos seus jardins secretos
ninguém sabia________ como ela dizia
além da minha fraqueza e de ti

José Ribeiro Marto
em http://vaandando.blogspot.com/






2.Poemas com anfíbios e répteis


Sapo

De girino encantado,
onde está meu vero ego,
beijo príncipe me fará.
Olga Savary
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Os Sapos

Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.

Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
- "Meu pai foi à guerra!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".

O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: - "Meu cancioneiro
É bem martelado.

Vede como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos.

O meu verso é bom
Fermento sem joio.
Faço rimas com
Consoantes de apoio.

Vai por cinqüenta anos
Que lhes dei a norma:
Reduzi sem danos
A fôrmas a forma.

Clame a saparia
Em críticas céticas:
Não há mais poesia,
Mas há artes poéticas..."

Urra o sapo-boi:
- "Meu pai foi rei!"- "Foi!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".

Brada em um assomo
O sapo-tanoeiro:
- A grande arte é como
Lavor de joalheiro.

Ou bem de estatuário.
Tudo quanto é belo,
Tudo quanto é vário,
Canta no martelo".

Outros, sapos-pipas
Um mal em si cabe),
Falam pelas tripas,
- "Sei!" - "Não sabe!" - "Sabe!".

Longe dessa grita,
Lá onde mais densa
A noite infinita
Veste a sombra imensa;
Lá, fugido ao mundo,
Sem glória, sem fé,
No perau profundo
E solitário, é

Que soluças tu,
Transido de frio,
Sapo-cururu
Da beira do rio...

Manuel Bandeira
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Cobra Norato – I


Um dia
eu hei de morar nas terras do Sem-Fim

Vou andando caminhando caminhando
Me misturo no ventre do mato mordendo raízes

Depois
faço puçanga de flor de tajá da lagoa
e mando chamar a Cobra Norato
-Quero contar-te uma história
Vamos passear naquelas ilhas decotadas?
Faz de conta que há luar

A noite chega mansinho
Estrelas conversam em voz baixa
Brinco então de amarrar uma fita no pescoço e estrangulo a Cobra.

Agora sim
me enfio nessa pele de de seda elástica
e saio a correr mundo

Vou visitar a rainha Luzia
Quero me casar com sua filha
- Então você tem que apagar os olhos primeiro
o sono escorregou nas pálpebras pesadas
Um chão de lama rouba a força de meus passos. (...)


Raul Bopp
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A lagarta

Só o trabalho é que enriquece.
Pobre poeta, à picareta!
A lagarta sem cessar tece
Para transformar-se em borboleta.

Apollinaire – tradução de Álvaro Faleiros
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A lagartixa

Colada a visgo, pelas quatro patas,
No papel da parede vertical,
Onde as sombras se espicham, como as gatas
Sobre os velhos telhados, ao beiral...
Fina, à feição de um traço, anda aos insetos
A elástica e flexível lagartixa;
Vibram-lhe, em torno, os élitros inquietos
Dos besouros metálicos, em rixa.
E ela, às encolhas, quieta, olhinhos vivos,
Dentro da sombra, quieta, a hipnotizar,
A exemplo das aranhas nos seus crivos,
Que são suas tarrafas de pescar.
Nisto, leve e brilhante mariposa,
Tal qual a chispa acesa de um cigarro
Que rodopiasse no éther, qualquer cousa
De luminoso, alígero e bizarro,
Pousa à vidraça, ébria de sua dança,
Colhendo as asas de preciosa rede.
E a lagartixa estica a espinha, avança,
Descola as quatro patas da parede...
Escorrega, deslisa, ondeia e salta.
E o inseto de ouro, alheio à própria sorte,
Sob o suave esplendor da luz, que o exalta,
Dança o bailado clássico da Morte!
Theodorick de Almeida
Do livro: "Ouro, incenso e mirra", Oficinas Gráficas Guido & Cia, 1931, RJ


A Serpente

Sei que te obstinam as beldades.
E que nelas com acuidade
Exerces tua crueldade!
Cléopatra, Eurídice, Eva,
Sei de outras três em tua leva.

Apollinaire – tradução de Álvaro Faleiros


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(catálogo de uma exposição de entomologia)

3.Poemas com insetos/insectos
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Conselho de amigo

Cigarra! Levo a ouvir-te o dia inteiro,
Gosto da tua frívola cantiga,
Mas vou dar-te um conselho, rapariga:
Trata de abastecer o teu celeiro.

Trabalha, segue o exemplo da formiga,
Aí vem o inverno, as chuvas, o nevoeiro,
E tu, não tendo um pouso hospitaleiro,
Pedirás... e é bem triste ser mendiga!

E ela, ouvindo os conselhos que eu lhe dava
(Quem dá conselhos sempre se consome...)
Continuava cantando... continuava...

Parece que no canto ela dizia:
— Se eu deixar de cantar morro de fome...
Que a cantiga é o meu pão de cada dia.

Olegário Mariano


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A Cigarra

Cigarra, tu que iludes os meus desgostos
e alivias o meu sono, cigarra,
musa rústica de asas melodiosas,
imitação natural da lira, faz ressoar
para mim um canto amado ferindo
com as patas as tuas asas sonoras,
a fim de livrar das mágoas
que me tiram o sono, cigarra, tu,
que conheces os cantos que enganam o amor.
Dar-te-ei como recompensa matinal
tomilho sempre verde e plantas húmidas
de orvalho, que cortarás com tua boca.

Meléagro, Grécia Antiga



A Pulga

As pulgas, amigos, amantes,
Como nos amam as tratantes!
A eles nosso sangue é dado.
É infeliz todo bem-amado.

Apollinaire – tradução de Álvaro Faleiros

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A Mosca

Nossas moscas sabem canções
Lá na Noruega ensinadas
Pelas gânicas dos lapões
Entre a neve divinizadas.

Apollinaire – tradução de Álvaro Faleiros

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A Mosca

Minimosca
Teu giro de verão
Minha mão à toa
Desmanchou.
Não sou eu
Mosca também?
Ou não és,
Como eu, ninguém?
Pois eu danço
E bebo e canto
Até que brusca mão
Me espanta.
Se pensamento
É ar no peito
E se é morte
Perdê-lo,
Então sou
Mosca feliz
Se eu vivo
Ou se vou.

William Blake
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As moscas

Ninguém se livra, facilmente,
de um comissário de polícia,
como quem tange, displicente,
aquela mosca na camisa;

mas com gestos suaves, de moça,
tange-se, aqui, um homem-mosca;

basta, às vezes, silenciar,
e ele se arrasta, já sem asas,
para bem longe deste bar:

que o verbo aqui se faça carne
antes que seja muito tarde.

Alberto da Cunha Melo
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Gafanhoto

Vejam o fino gafanhoto,
O alimento de São João.
Que seja assim meu verso, solto.
Sendo dos justos o bom pão.

Apollinaire – tradução de Álvaro Faleiros

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A borboleta
(estória infantil)
I
Podia ter sido um gato,
mas não era.
Era uma borboleta que gostaria de ter sido um gato,
mas não era.
Mesmo assim, miava com altivez,
afiava as unha nas pétalas da flores,
marcava território com o pó das suas asas
e perdia-se por uma suculenta cabeça de peixe.
Desdenhava sobranceiramente a função
polinizadora que a natureza lhe cometeu.
Preferia vagar com displicência felina
pelos quintais dos vizinhos.
Gostava de música suave, naturalmente,
nada de punks ou metals históricos ou alternativos
que lhe eriçavam os bigodes-antenas.
II
Corria-lhe a vida assim … como dizer ,
sem grandes sobressaltos,
ora mais felínica
ora mais borbolética,
mas não era feliz,
a borboleta,
faltava alguma coisa na sua vida.
Ultimamente dava por si,
entre um voo e um salto,
sentada sobre os quartos traseiros
olhando a lua.
Sentia que a alma gémea,
aquilo de que falam os poetas
que nunca se apaixonaram,
não tinha aparecido.
III
Até que certo dia,
um dia igual aos outros,
por pouco não chocou em pleno voo
com uma ave de respeitável porte!
Bico algo adunco,
plumagem de tons marron-cinza,
postura autoritária mas insinuante.
Poderia ser milhafre ou falcão,
não sei, mas certamente predadora.
Apresentou-se de forma civilizada
como sendo um pombo.
Pombo, filho de pombo e neto de pombo.
IV
Sem estrelas explodindo nem o chão estremecendo,
conversa puxou conversa,
gostos dos mesmos gostos
mais almoço menos jantar,
alguma coisa começava a surgir.
O pombo dizia que trabalhava num pombal,
era chefe por sinal,
e decidiram juntar os destinos,
a borboleta e o pombo
(ou milhafre ou lá o que era).
V
Algum tempo passou,
dias melhores dias piores,
tropeção de um lado,
empurrão do outro,
e o pombo cada vez se afirmava mais milhafre.
Cada dia rasgava um pouco das asas da borboleta
e cortava-lhe com rigor as unhas rente,
obliterando decididamente os restos
que restavam do felino que em tempos
habitou na borboleta.
VI
Até que o milhafre,
agora bem assumido,
proibiu terminantemente a borboleta de voar.
(agora, digam-me os leitores,
como se pode proibir uma borboleta de voar?)
VII
A pobre borboleta definhava, definhava,
mais parecia uma larva.
Certo dia de total desespero
em que a borboleta pensava,
entre triste e revoltada,
no seu triste destino,
Final A Final B
viu pousar na beirada da janela viu assomar à beirada da janela
uma borboleta dourada um belo gato dourado
que lhe disse: que lhe disse:
“Voa, borboleta, voa “foge, borboleta, foge,
que o sol espera por ti!” que o mundo espera por ti!”

Rogério Guerra Santos
In roger’s insite- http://guerrasantos.multiply.com

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Passa uma borboleta por diante de mim

Passa uma borboleta por diante de mim
e pela primeira vez no universo eu reparo
que as borboletas não tem cor nem movimento,
assim como as flores não tem perfume nem cor.
A cor é que tem cor nas asas da borboleta,
no movimento da borboleta o movimento é que se move.
O perfume é que tem perfume no perfume da flor.
A borboleta é apenas borboleta, e a flor, apenas flor.

Alberto Caeiro.Fernando Pessoa


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A formiga
As coisas devem ser bem grandes
Pra formiga pequenina
A rosa, um lindo palácio
E o espinho, uma espada fina

A gota d'água, um manso lago
O pingo de chuva, um mar
Onde um pauzinho boiando
É navio a navegar

O bico de pão, o corcovado
O grilo, um rinoceronte
Uns grãos de sal derramados,
Ovelhinhas pelo monte

Vinicius de Moraes / Paulo Soledade
© Tonga Editora Musical LTDA / Direto

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O mosquito
O mundo é tão esquisito:
Tem mosquito.

Por que, mosquito, por que
Eu... e você?

Você é o inseto
Mais indiscreto
Da Criação
Tocando fino
Seu violino
Na escuridão.

Tudo de mau
Você reúne
Mosquito pau
Que morde e zune.

Você gostaria
De passar o dia
Numa serraria –
Gostaria?

Pois você parece uma serraria!
Vinicius de Moraes
in "Poesia completa e prosa: "Poemas infantis""

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As abelhas

A abelha-mestra
E as abelhinhas
Estão todas prontinhas
Para ir para a festa
Num zune-que-zune
Lá vão pro jardim
Brincar com a cravina
Valsar com o jasmim
Da rosa pro cravo
Do cravo pra rosa
Da rosa pro favo
E de volta pra rosa

Venham ver como dão mel
As abelhas do céu
Venham ver como dão mel
As abelhas do céu

A abelha-rainha
Está sempre cansada
Engorda a pancinha
E não faz mais nada
Num zune-que-zune
Lá vão pro jardim
Brincar com a cravina
Valsar com o jasmin
Da rosa pro cravo
Do cravo pra rosa
Da rosa pro favo
E de volta pra rosa

Venham ver como dão mel
As abelhas do céu
Venham ver como dão mel
As abelhas do céu
Vinicius de Moraes / Bacalov
© Tonga Editora Musical LTDA
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A pulga
Um, dois, três
Quatro, cinco, seis
Com mais um pulinho
Estou na perna do freguês
Um, dois, três
Quatro, cinco, seis
Com mais uma mordidinha
Coitadinho do freguês
Um, dois, três
Quatro, cinco, seis
Tô de barriguinha cheia
Tchau
Good bye
Auf Wiedersehen
Vinicius de Moraes / Toquinho
© Tonga Editora Musical LTDA

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O marimbondo

Marimbondo o furibundo
Vai mordendo meio mundo
Cuidado com o marimbondo
Que esse bicho morde fundo!

– Eta bicho danado!

Marimbondo
De chocolat
Saia daqui
Sem me morder
Senão eu dou
Uma paulada
Bem na cabeça
De você.

– Eta bicho danado!

Marimbondo... nem te ligo!
Voou e veio me espiar bem na minha cara...

– Eta bicho danado!

Vinicius de Moraes
in "Poesia completa e prosa: "Poemas infantis""
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As borboletas
Brancas
Azuis
Amarelas
E pretas
Brincam
Na luz
As belas
Borboletas.

Borboletas brancas
São alegres e francas.

Borboletas azuis
Gostam muito de luz.

As amarelinhas
São tão bonitinhas!

E as pretas, então...
Oh, que escuridão!
Vinicius de Moraes
in "Poesia completa e prosa: "Poemas infantis""
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formiga

«Pai, anda cá», diz a minha filha.
Pela parede branca sobe uma formiga,
minúscula, muito lenta, obstinada.
A minha filha encolhe o corpo
pequenino para olhar. Não sei se é
a primeira vez que vê uma formiga;
mas é, parece-me, a primeira vez
que se apercebe da enorme diferença
de escala que a separa do insecto.
A minha filha acompanha a subida
heróica da formiga pela parede
branca, vira-se para mim, sorri.
É nesse espaço subitamente tenso,
criado entre a alegria infantil da
descoberta e o esforço irracional
da formiga, que nasce o poema,
mesmo se eu já desisti dele para
limpar o ranho que a minha filha,
absorta, deixou chegar até à boca.
José Mário Silva.
In Luz Indecisa
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A abelha


A abelha comigo não se intimida,
A borboleta é minha amiga,
Os seres mais bonitos da floresta
Recebem-me com muita festa.

Os rios riem alegres quando eu passo,
Brinca mais doida a viração.
Porque então, olhos meus, toda essa névoa?
Porque, oh dia de verão?

Emily Dickinson

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A mosca

Ouvi a mosca zumbir- quando morri-
a calmaria pelo quarto-
como no ar a calmaria
Entre os arquejos da tormenta.

A meu redor, os olhos, espremidos.
Secavam; firmavam-se os fôlegos
Para a última partida, quando
No quarto fosse visto o Rei.

lembranças em testamento, leguei
De mim a porção que supus
Transferível- e foi então
Quando uma mosca se interpôs-

Com azul, indeciso, tropeçante
Zumbir- entre a luz e o meu ser-
Por fim falharam-me as janelas
E eu não podia ver para ver.

Emily Dickinson


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P'ra se fazer uma campina

P'ra se fazer uma campina é
só um trevo e única abelha,
Único trevo e uma abelha
E a fantasia.
A fantasia basta
Se a abelha se afasta.


Emily Dickinson

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Riqueza

"Veio ao meu quarto um besouro
de asas verdes e ouro,
fez do meu quarto uma joalharia..."

Guimarães Rosa

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Formas do Nu

A aranha passa a vida
tecendo cortinados
com o fio que fia
de seu cuspe privado.

jamais para velar-se:
e por isso são ralos.
Para enredar os outros
é que usa os enredados.

Ela sabe evitar
que a enrede seu trabalho,
mesmo se, dela mesma,
o trama, autobiográfico.

E em muito menos tempo
que tomou em tramá-lo,
o véu que não a velou
aí deixa, abandonado.

João Cabral de Melo Neto


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[abelhas]
encosto as flores
às palavras para
ouvir o corpo das abelhas.

jorge vicente
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O grilo

Grilo, toca aí um solo de flauta.
- De flauta? Você me acha com cara de flautista?
- A flauta é um belo instrumento. Não gosta?
- Troppo dolce!

Manuel Bandeira


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A aranha

Não te afastes de mim, temendo a minha sanha
E o meu veneno...Escuta a minha triste história:
Aracne foi meu nome e na trama ilusória
Das rendas florescia a minha graça estranha.

Um dia desafiei Minerva. De tamanha
Ousadia hoje espio a incomparável glória...
Venci a deusa. Então, ciumenta da vitória,
Ela não ma perdoou: vingou-se e fez-me aranha!

Eu que era branca e linda, eis-me medonha e escura
Inspiro horror...Ó tu que espia a urdidura
Da minha teia, atenta ao que o meu palpo fia:

Pensa que fui mulher e tive dedos ágeis,
Sob os quais incessante e vária a fantasia
Criava a pala sutil para os teus ombros frágeis...

Manuel Bandeira

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Áporo

Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.

Que fazer, exausto,
em país bloqueado,
enlace de noite
raiz e minério?

Eis que o labirinto
(oh razão, mistério)
presto se desata:em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-se

Carlos Drummond de Andrade

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O vaga-lume


Fulge, de quando em vez, azúleo e iriante lume,
fosforescente a arder na noite erma e silente;
de súbito se apaga e acende novamente,
entre as moitas em flor, ebriantes de perfume.

Uma estrela a piscar, luzindo entre o negrume
da treva, que do céu baixasse de repente?!
Não! Não é, que é menor que uma estrela cadente...
Mas um astro na terra, acaso, se presume.

Eis que um ponto de luz relampeja tremente,
aqui, ali, além e, a quando e quando, assume
novas irradiações no espaço e em nossa mente.

Que será, afinal, esse ígneo e alado nume
que, encantado, anda a errar n noite erma e silente?!
- Um lucífero inseto, um simples vaga-lume.

Da Costa e Silva

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Pirilampos

Como eles surgem, doidos adejando
sem rumo certo pela noite em fora,
brilhando agora aqui, além agora,
num perpassar sutil, sereno e brando;

como eles vão a treva pontilhando
de triste luz que brilha e sem demora
foge e volta de novo, e se avigora,
vai surgindo outra vez e vai voltando...


Assim também nas noites do passado
dos que em lutas de amor só tem levado
dos desenganos e funérea palma

vão surgindo e brilhando e vão morrrendo
e fugindo, e voltando e fenecendo
as ilusões – os pirilampos da alma!

Josefino Moraes

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A cigarra e a formiga

Tendo a cigarra em cantigas no inverno
Passado todo o verão
Achou-se em penúria extrema
Na tormentosa estação.
Não lhe restando migalha
Que trincasse, a tagarela
Foi valer-se da formiga,
Que morava perto dela.
Rogou-lhe que lhe emprestasse,
Pois tinha riqueza e brilho,
Algum grão com que manter-se
Até voltar o aceso estio.
- "Amiga", diz a cigarra,
- "Prometo, à fé d'animal,
Pagar-vos antes d'agosto
Os juros e o principal."
A formiga nunca empresta,
Nunca dá, por isso junta.
- "No verão em que lidavas?"
À pedinte ela pergunta.
Responde a outra: - "Eu cantava
Noite e dia, a toda a hora."
- "Oh! bravo!", torna a formiga.
- "Cantavas? Pois dance agora!"

Jean de La Fontaine

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Fábula da fábula
Era uma vez
Uma fábula famosa,
Alimentícia
E moralizadora
Que, em verso e prosa,
Toda a gente
Inteligente,
Prudente
E sabedora
Repetia
Aos filhos,
Aos netos
E aos bisnetos.
À base duns insectos,
De que não vale a pena fixar o nome,
A fábula garantia
Que quem cantava
Morria
De fome.
E realmente...
Simplesmente,
Enquanto a fábula contava,
Um demónio secreto segredava
Ao ouvido secreto
De cada criatura
Que quem não cantava
Morria de fartura.

Miguel Torga, Diário VIII
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Silêncio no voo dos mosquitos

palavras apontadas para Clarice Lispector


como se adormecidamente,
para saber silêncios
o mosquito voa ao contrário
soprando para a frente.
assim toda a locomoção perde segredo
todo o vento se desmistifica.
como se antecipadamente.
para domar zumbidos
o mosquito faz andamento na pluma do ar:
usa patas, patinhas, patitas.
sons enveludados
- repletos de amínusculo.
mas!, o segredo:
mais que asa
para deslocamentos
o mosquito usa alma.

borbulha – é um resultacto de fornicação.
comichão- é um sémen denunciando solidões.
como se amosquitadamente .

56-
para voar com(o) mosquito
somente use um voolêncio.

Ondjaki - in há prendisajens com o xão
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Para ser formiga ser, quer-se…

chão-cheiro.
trajecto formigabiríntico.
granulação com patas.
tapete para asas caiantes.
aburacações várias
para laboriosas existenciações.
avulsas corridinhas enternecendo mundos
e um medonho desconhecimento para egos…
Ondjaki –in in há prendisajens com o xão
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O Mosquito Escreve

O Mosquito pernilongo
trança as pernas, faz um M,
depois, treme, treme, treme,
faz um O bastante oblongo,
faz um S.

O mosquito sobe e desce.
Com artes que ninguém vê,
faz um Q,
faz um U e faz um I.
Esse mosquito
esquisito
cruza as patas, faz um T.

E aí, se arredonda e faz outro O,
mais bonito.
Oh!
já não é analfabeto,
esse inseto,
pois sabe escrever o seu nome.

Mas depois vai procurar
alguém que possa picar,
pois escrever cansa,
não é, criança?

E ele está com muita fome.

Cecília Meireles
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O pirilampo

O trânsito fendia a noite em duas
e o mundo cintilava algures.
Um pirilampo
sozinho em sua luz intermitente
voava nos arbustos.
Dir-se-ia repetir
um sinal de astros pouco favorável,
como à espera de as luzes públicas
um dia se apagarem para sempre.


Nuno Dempster

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Timidez

O bicho-de-conta
Faz de conta, faz
Que é cabeça tonta
Mas lá bem no fundo
Não é mau rapaz.
Se a gente lhe toca,
Logo se disfarça:
Veste-se de bola.
Por mais que se faça
Não se desenrola.
Lá dentro escondendo
Patinhas e rosto
É todo um segredo:
Se eu fosse menino
Comigo brincava
Sem medo sem medo.
Maria Alberta Menéres, Conversas com Versos
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Lagarta
Lagarta
mas se enfeita
:
tece seus fios de inferno e paraíso
na véspera do voo.

Adelaide Amorim

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As Borboletas

Nestas claras manhãs de firmamento escampo,
De ar mais puro e de sol mais livremente aberto,
Qual mais linda, elas vêm, ora atrás do campo,
Ora em trêmulo enxame através do deserto,
Como ao vento esparzido um punhado de flores,
Buscar ao pé do rio as boninas singelas,
E entrecruzar-se à luz com as variadas cores,
Brancas, verdes, azuis, rajadas e amarelas.
Num ligeiro rumor indistinto, cortando
O ar, de aromas que vêm das plantas saturado,
Vejo às vezes passar o fugitivo bando,
Várzea ao longe, pairando em vôo prolongado.
Umas rente lá vão à crômula das folhas,
Outras voam mais alto, asas fechando e abrindo:
Outras lá vão do rio acompanhando as bolhas,
A água, a pena erradia e as espumas seguindo...
Té que em meio de um vale onde a corrente brame
E revolta borbulha e rodopia inquieta,
Em suspensa coluna, o selvático enxame
Baila e treme do sol à carícia secreta...
Alberto de Oliveira -
Do livro: Nova Antologia Brasileira, Clóvis Monteiro, F. Briguiet & Cia. Editores,1961, RJ
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O vaga-lume

Quem és tu, pobre vivente
que passas triste, sozinho,
trazendo os raios da estrela
e as asas do passarinho?

A noite é negra, raivosos
os ventos sopram do sul;
não temes, doido, que apaguem
a tua lanterna azul?

Quando apareces, o lago
de estranhas luzes fulgura,
os mochos voam medrosos
buscando a floresta escura.

As flores brilham, refletem,
como espelho de esmeralda;
fulge a íris nas torrentes
da serraria na fralda.

O grilo salta das sarças,
pulam gênios nos palmares,
começa o baile dos silfos
no seio dos nenúfares.

A tribo das borboletas,
das borboletas azuis,
segue teus giros no espaço,
mimosa gota de luz.

São elas flores em hástea,
tu és estrela sem céu,
procuram elas as chamas,
tu amas da noite o véu!...

Onde vais, pobre vivente,
onde vais, triste, mesquinho,
levando os raios da estrela
nas asas do passarinho?

Fagundes Varela
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O besouro


Aos giros e vaivéns turbilhonando e em tudo,
como um gênio sutil, num prenúncio de agouro,
volúvel a tocar, sem se deter contudo,
zumbe, zunindo no ar...É um inseto: o besouro.

Ágeis asas de gaze e dorso de veludo,
ei-lo negro a luzir, catassolado de ouro,
sob a corcha que traz, como armadura e escudo,
e é-lhe o arnês natural, constante e duradouro.

Em ronda aos roseirais, num rumoroso ronco,
monótono a zunir, em soturno queixume,
é um bicho bem bizarro esse besouro bronco...

Zoando aos zunzuns zangado, o seu rumo resume
e os rígidos ferrões encravando num tronco,
roda, zonzo de sons e tonto de perfume.


Da Costa e Silva

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As abelhas

Mal ergue o Sol, o leve cortinado
da noite, que vai presto se ausentar,
as abelhas, em bando organizado,
vêm buscar vida e vêm vitalizar...
A zumbir enxameiam num bailado,
asas fremindo, leves, a entoar
um hino matinal e consagrado
às irmãs-flores, dóceis no pomar.
Aureantes, volitam, pressurosas,
colhendo pólen e o néctar de doçura,
para a colméia, casa de abastança.
Nas colméias do peito, dadivosas,
meus sonhos são abelhas à procura
do bom néctar, nas flores da Esperança.

Miguel J. Malty

Do livro: "Sonhos e anseios", Ed. autor, s/ano, DF
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Equívocos

Da terra ergueram-se uma noite
não os aromas que buscavas
perto da fonte na canícula,
mas em nuvem os pirilampos.
Consanguíneos todos
clamavam
a incompletude e a esperança.

Entraste na luz viva
aceso
o escuro das silvas - tu cega
no labirinto de coaxos
e trilos
luzias também.

Soledade Santos
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Mariposas
as mariposas são flores sobre um campo desmedido
vão nivelando o sangue miraculoso
no arvoredo
que um lavrador progride.
mariagomes
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4.Poemas com peixes, crustáceos e moluscos

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Salmo pelo bacalhau



Senhor,
agradecemos-te pelo bacalhau,
agradecemos-te pelo bacalhau salgado
e agradecemos-te pelo bacalhau sem espinhas
e agradecemos-te pelo bacalhau
que é tão dócil que
nada em molho de tomate tão ditosamente
como nada em azeite.

Senhor,
agradecemos-te especialmente porque o bacalhau
não nada perto das costas
de Porto Rico.
Agradecemos-te por ele ir tão bem
com banana verde
rodelas de cebola e ovos mexidos.

E, Senhor,
porque é um peixe
agradecemos-te por o deixares vir a voar
até Porto Rico, agradecemos-te
por o deixares vir de barco
até aos nossos portos, agradecemos-te
por o deixares vir a nado até às nossas bocas tão felizes.
Jack Agueros
Trad. de L.P., em http://arspoetica-lp.blogspot.com/2009/10/jack-agueros.html
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Cavalo-marinho
Cavalo-marinho
Dança no terreiro
Que a dona da casa
Tem muito dinheiro
Cavalo-marinho
Dança na calçada
Que a dona da casa
Tem galinha assada

Minha rua onde eu me criei feliz
Rua onde eu brincava
Rua onde eu brigava
Rua onde eu caía
E onde a poesia
Fez seu aprendiz

Rua alegre, parecia não ter fim
Rua onde eu corria
Atrás do meu arco
Rua onde eu morava
Tinha uma menina
Que cantava assim:

Cavalo-marinho
Dança no terreiro
Que a dona da casa
Tem muito dinheiro
Cavalo-marinho
Dança na calçada
Que a dona da casa
Tem galinha assada

Rua triste, nunca vi tão triste assim
Vinha uma menina
Vindo pela rua
Linda como a lua
E assim como a lua
Deu-se toda a mim

Rua escura, amargura fez-se em mim
Porque hoje eu vivo
Vivo da procura
Da menina pura
Que na noite escura
Me cantava assim:

Cavalo-marinho
Dança no terreiro
Que a dona da casa
Tem muito dinheiro
Cavalo-marinho
Dança na calçada
Que a dona da casa
Tem galinha assada
Vinicius de Moraes / Baden Powell

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O peixe


Eu fisguei um peixe enorme
e o mantive ao lado do barco
metade fora d’água, com meu anzol
que lhe cravara o canto da boca.
Ele não lutou. Ele não lutara mesmo nada.
Ele era um peso pendente
derrotado e venerável
e simples. De vez em quando
seu corpo marrom aparecia em listras
como antigo papel de parede,
e seus desenhos de marrom mais escuro
eram como papel de parede:
formas de rosas desabrochadas a pleno,
manchadas e gastas pelo tempo.
Ele estava salpicado do óleo dos navios,
das finas rosetas visgosas
e infestado
por pequenos e brancos piolhos marinhos
e por baixo dele pendiam
dois ou três farrapos de algas verdes.
Enquanto suas guelras estavam respirando o
terrível oxigênio
- as assustadoras guelras
frescas e eriçadas, com sangue,
e que podem cortar tão cruelmente -
pensei em sua rede carne branca
enfeixada como plumas,
os grandes e pequenos ossos
os dramáticos vermelhos e negros
de suas entranhas luzidias
e a bexiga avermelhada
como uma grande peônia.
Olhei dentro dos seus olhos
que eram bem maiores que os meus
porém mais rasos e amarelados,
a íris retraída e envolvida
em folha de estanho embaçada,
vista através de lentes
de um velho, arranhado esturjão.
Seu olhar se desviou um pouco porém não o bastante
para devolver o meu.
- Era mais como se recobrisse
um objeto contra a luz.
Admirei-lhe a face sombria,
o mecanismo de sua mandíbula
e então vi
que seu lábio inferior
- se é possível falar lábio -
severo, úmido, agressivo,
pendiam cinco antigas linhas de pescar
ou quatro, talvez, e um guia de metal
ainda com a argola
e com todos os cinco grandes anzóis
cravados firmes, em sua boca.
E uma linha verde, desgastada na extremidade
em que ele a havia partido, e duas outras mais fortes
além de um fio preto e fino
ainda encrespado pelo esforço e pelo golpe
do momento em que ele escapou.
Eram como condecorações, com suas faixas
esfrangalhadas e oscilantes,
uma barba de sabedoria com cinco filamentos
que ele arrastava em sua mandíbula dorida.
Eu olhei e olhei
e a vitória encheu
o pequeno barco alugado
surgida da água que havia entrado
e onde o óleo difundia um arco-íris
junto ao motor enferrujado
e a rosa enferrujado da água baldeada
e o meu banco, que estalava ao sol,
e os remos, nos seus encaixes,
e o interior do barco – e tudo, enfim,
era o arco-íris agora, era o arco-íris agora!
E eu deixei o peixe ir embora.

Elizabeth Bishop

A Carpa

Nos vossos viveiros, moradas,
Quão longas são vossas jornadas!
A morte vos esqueceria,
Ó peixes da melancolia.

Apollinaire - tradução de Álvaro Faleiros



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O Lagostim

Incertitude, ó meu festim
Vamos juntos a caminhar
Como faz este lagostim,
A recuar, a recuar.

Apollinaire- tradução de Álvaro Faleiros


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O Polvo

Jogando aos céus o seu veneno,
Sugando o amado, e nada a esmo.
saboreando-o até estar pleno,
Este monstro vil sou eu mesmo.

Apollinaire - tradução de Álvaro Faleiros



Peixe

Vi o rio nascer
da minha guelra e nela
armadilho o mar.

Olga Savary


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Os peixes


vade-
ando negro jade.
Das conchas azul-corvo um marisco
só ajeita os montes de cisco;
no que vai se abrindo e fechando
é que
nem ferido leque.
Os crustáceos que incrustam o flanco
da onda ali não encontram canto,
porque as setas submersas do
sol,
vidro em fibras sol-
vidas, passam por dentro das gretas
com farolete ligeireza —
iluminando de vez em vez
o oceano turquês
de corpos. A correnteza crava
na quina férrea da fraga
uma cunha de ferro; e estrelas,
grãos
de arroz róseos, mães-
d'água tintas, siris que nem lírios
verdes e fungos submarinos
vão deslizando uns sobre os outros.
As
marcas externas
de mau-trato estão todas presentes
neste edifício resistente
todo resquício material
de a-
cidente ausência
de cornija, machadadas, queima e
sulcos de dinamite — teima em
ressaltar; já não é o que era
cova.
Repetida prova
demonstrou que ele pode viver
do que não pode reviver
seu viço. O mar nele envelhece

Marianne Moore


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A Tartaruga

Da Trácia mágica, encanto!
Toco sim minha lira enquanto
Bichos passam ao som veloz
Da minha tartaruga e voz.

Apollinaire – tradução de Álvaro Faleiros

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De um tubarão


De um tubarão
tão-só a fuselar passagem
a velocidade pûmblea
a evolução de um infinito
em águas saturadas de sinais.

De um tubarão
a brancura do ventre
o espelho dos flancos
o gume do dorso
a lâmina a penumbra
e um corpo de tropedo
que o atrito afila e as águas intumescem.

Perfura as águas afeiçoando à sua a sua cor
despreza o faiscar da luz submersa
abre um espaço em silêncio para a decisão dos rumos.

Mergulha no cinzento da sua condição
e contra o céu em branco de uma arena abstracta
arremete a opacidade do olhar difuso.
Um tubarão existe só por dentro.

Do gume do focinho ao cacto do seu ânus
a combustão do atento raciocínio.
Oculto em silêncios, blindado pela cor,
apenas expõe a cútis, esponja ansiosa,
às secretas qualidades de algum tacto.

O tacto. Atento ao tacto.
De leve tangencia os corpos nus
de que lhe ocorre o tacto comestível.
Jamais açor, a forma, a condição, a oferta.

Um acto de paixão.
Não a propícia presa imediata e exposta.
Uma propícia cútis entre os corpos juntos.
O tacto de uma chama que lhe dispare o ser.

Um tubarão devora por paixão.
Ruy Duarte de Carvalho em exercícios de crueldade
in Lavra reiterada - editorial Nzila
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O caracol

Como um navio ele atravessa
a relva trêmula de chuva
quando as aranhas suas teias
vão enxugar fazendo sol

Sempre gostei do caracol
seu fresco andar, lustroso e manso
seu navegar durante a noite
cargueiro vivo pelos muros

a sua rota descobrimos
brilhando ao sol, bem de manhã
Aonde vai na escuridão

com seus chifrinhos prevenidos?
Equilibrado na erva-doce
sonda no céu estrelas livres.

Jacques Roubaud
Tradução de Cláudio Veiga
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O caranguejo

Maré rasa, depois que, em ósculos de amor,
a onda se esvai na areia em doce rumorejo,
é de ver na alva praia o tardo caranguejo,
entre os glaucos lodões, à flor da espuma em flor...

Ora adiante, ora atrás, o andar a contrapor,
numa vida feliz de inércia e de desejo,
vede-o ao sol que lhe põe, em furtivo lampejo,
ígneas cintilações na casca furta-cor.

Ao sol, vede-o buscar o fluido e espúmeo bojo
de uma vaga que vem, as curvas pinças no ar,
nesse anseio de luz de quem vive de rojo...

e à onda que se desfaz, volver o oblíquo olhar
para ali, para além, num soberano arrojo,
como para abranger de lado a lado o mar!

Da Costa e Silva

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Caranguejo

Caranguejo feiíssimo, monstruoso,
que te arrastas na areia
como a miniatura
de um tanque de guerra...
Gosto de ti, caranguejo,
Câncer meu padrinho
nas folhinhas,
pois nasci sob as bênçãos do teu signo
zodiacal...

Teu par de puas cirúrgicas oscila
à frente do escudo lamacento
de velho hoplita.
E mais oito patas, peludas,
serrilhadas,
de crustáceo nobre,
retombam no mole desengonço
de pés e braços muito usados,
desarticulados,
de um bebé de celulóide.
Caranguejo sujo,
desconforme,
como um atarracado Buda roxo
ou um ídolo asteca...

És forte, e ao menor risco te escondes
na carapaça bronca,
como fazem os seres evoluídos,
misantropos, retraídos:
o filósofo, o asceta,
o cágado, o ouriço, o caracol...

Caranguejo hediondo,
de armadura espessa,
prudente desertor...
Para as lutas do amor, quero aprender contigo,
quero fazer como fazes, animalejo frio,
que, tão calcariamente encouraçado,
só sabes recuar...

João Guimarães Rosa, Magma, Ed. Nova Fonteira, 1997
__._,_.___

Poisson

Les poissons, les nageurs, les bateux,
Transforment l'eau.
L'eau est douce et ne bouge
Que pour ce qui la touche.

Le poisson avance
Comme un doigt dans un gant.
Le nageur danse lentement
Et la voile respire.

Mais l'eau douce bouge
Pour ce qui la touche,
Pour le poisson, pour le nageur, pour le bateau
Qu'elle porte
Et qu'elle emporte

Paul Éluard

em: Antologia da Poesia Francesa (do século IX ao século XX). Cláudio Veiga.
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6.Poemas com mamíferos

E sem gatos…virão a seguir

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Cordeiro
(em 2 traduções)
Cordeirinho, quem te fez?
Pois tu sabes quem te fez?
Deu-te a vida e deu-te pasto
Ribeirinho e largo prado
Deu-te roupa de delícia
Lã macia sem malícia
& deu-te esta voz tão terna
Alegrando toda a terra:
Cordeirinho, quem te fez?
Pois tu sabes quem te fez?
Cordeirinho, vou dizer-te,
Cordeirinho, vou dizer-te!
É chamado por teu nome
Pra si mesmo dá teu nome
Ele é meigo e moderado
De menino ele é chamado:
Eu menino e tu cordeiro
Temos hoje o nome dele.
Cordeirinho, Deus te crie.
Cordeirinho, Deus te crie.
William Blake
Tradutor?
……………………………………………………………………………………..
O cordeiro

Cordeirinho, quem te fez?
Acaso sabes quem foi?
Quem te deu vida & comida
No ribeiro & no outeiro?
E te deu linda roupinha,
De lã macia, branquinha?
E te deu vozes tão meigas
Que alegram montes e veigas?
Cordeirinho, quem te fez?
Acaso sabes quem foi?

Cordeirinho, eu sei quem foi,
Cordeirinho, eu sei quem foi:
Cordeiro é o nome que tem,
Pois tem teu nome também.
Ele é doce, & ele é manso;
Ele se fez lindo crianço.
Eu, criança. & tu, cordeiro,
Nosso é seu nome inteiro.
Cordeirinho, Deus te guarde!
Cordeirinho, Deus te guarde!

William Blake, Cantigas da Inocência e da Experiência, tradução de Manuel Portela, 1994
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Liberdade livre

(um dos cavalos amarelos de Franz Marc)

a antonio ramos rosa



Por entre carros
e buzinas
cortando a fumaça
das fábricas
cavalgando
sobre o lixo
do asfalto
súbita magia
desatou suas crinas:
um cavalo a correr
um cavalo amarelo
desenhado pelas mãos
de um menino
esculpido pelo cinzel
dos ventos
um cavalo livre
desatado de celas
e esporas
envolvido por nuvens
e brisas
súbito
explodiu a vida
arrebentou o coração
da cidade
na plena agitação
do trânsito.
As crianças que dormiam
as viúvas que choravam
as andorinhas que voavam
repentinamente
foram tomadas pela alegria:
um cavalo amarelo
um cavalo a correr
desatou súbita magia
nas crinas do vento
nas pedras do mundo.


Alexandre Bonafim

…...............................................................................

há alguns anos, um cachalote entrou no estuário do rio Tejo ...




esperou que viesse a noite ...

e ela veio com meia-lua, quente de estrelas.

subiu, então, à superfície e olhou longamente o clarão da cidade.

dela não conhecia nada. nem o seu nome.

... que interessam às coisas os nomes das coisas ... saberão estas águas sujas que se chamam tejo ?

sabia, isso sim, os segredos do mar : as correntes, os abismos, as superfícies e os ventos, as cores, as rotas,
a liberdade imensa...

agora, ali estava, olhando longamente as luzes... encurralado.

a lua, traíra-o !

depois dos cinquenta anos, também os da sua espécie se apaixonam por ela e, com ela, adormecem embalados.

desta vez, porém, ele vira-a lindíssima, enorme, quase ali... que resolveu encurtar a distância e aproximar-se, cada vez mais, fascinado. imprevidente, como todos os fascinados.

depois... a barra. a ratoeira.
os barcos ao lado, sem descanso.
os homens, os dias e os gritos.
o medo. o lodo. o esforço.

E, agora, ali, de noite...
olhando longamente as luzes.
a já meia-lua, quente de estrelas.

guardou a imagem.

respirou
e mergulhou

para sempre ! ...


António Cardoso Pinto


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A Lebre

Não sejas lascivo e assustado
Como a lebre e o apaixonado.
Faça com que o cérebro seja
A fêmea que vários enseja.

Apollinaire – tradução de Álvaro Faleiros

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O morcego


Meia noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vêde:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.


“Vou mandar levantar outra parede…”
— Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o tecto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!


Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!


A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!
Augusto dos Anjos
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O Dromedário

Com seus quatro dromedários
Senhor Pedro d´Alfarroubeira
Mirou o mundo, desceu a ladeira.
Seria este meu ideário
Se eu tivesse tais dromedários.

Apollinaire – tradução de Álvaro Faleiros

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Versos a um cão

Que força pôde, adstrita a embriões informes,
tua garganta estúpida arrancar
do segredo da célula ovular
para latir nas solidões enormes?

Est obnóxia inconsciência, em que tu dormes,
suficientíssima é para provar
a incógnita alma, avoenga e elementar
dos teus antepassados vermiformes.

Cão! Alma de inferior rapsodo errante!
Resigna-a, ampara-a, arrima-a, afaga-a, acode-a
A escala dos latidos ancestrais…

E irás assim, pelos séculos adiante,
Latindo a esquisitíssima prosódia
Da angústia hereditária dos teus pais!

Augusto dos Anjos
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A um rato morto encontrado num parque

Este findou aqui sua vasta carreira
de rato vivo e escuro ante as constelações
a sua pequena medida não humilha
senão aqueles que tudo querem imenso
e só sabem pensar em termos de homem ou árvore
pois decerto este rato destinou como soube (e até como não soube)
o milagre das patas – tão junto ao focinho –
que afinal estavam justas, servindo muito bem
para agatanhar, fugir, segurar o alimento, voltar atrás de repente, quando necessário

Está pois tudo certo, ó “Deus dos cemitérios pequenos”?
Mas quem sabe quem sabe quando há engano
nos escritórios do inferno? Quem poderá dizer
que não era para príncipe ou julgador de povos
o ímpeto primeiro desta criação
irrisória para o mundo – com mundo nela?
Tantas preocupações às donas de casa – e aos médicos – ele dava!
Como brincar ao bem e ao mal se estes nos faltam?
Algum rapazola entendeu sua esta vida tão ímpar
e passou nela a roda com que se amam
olhos nos olhos – vítima e carrasco

Não tinha amigos? Enganava os pais?

Ia por ali fora, minúsculo corpo divertido
e agora parado, aquoso, cheira mal.

Sem abuso
que final há-de dar-se a este poema?
Romântico? Clássico? Regionalista?

Como acabar com um corpo corajoso e humílimo
morto em pleno exercício da sua lira?
Mário Cesariny
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O Golfinho

Golfinhos brincando no mar
Mas as vagas sempre a amargar.
Um dia me farei prazer?
A vida persiste em doer.

Apollinaire – tradução de Álvaro Faleiros


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A Cabra do Tibet

Os pêlos da cabra e o tosão
Pelo qual bateu-se Jasão
Não valem nem parte do preço
Dos cabelos porque padeço.

Apollinaire - tradução de Álvaro Faleiros


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Ao cavalo do Conde de Sabugal que fazia grandes curvetas

Galhardo bruto, teu bizarro alento
Música é nova com que aos olhos cantas,
Pois, na harmonia de cadências tantas,
É clave o freio, é solfa o movimento.

Ao compasso da rédea, ao instrumento
Do chão que tocas, quando a vista encantas,
Já baixas grave, e agudo já levantas,
Onde o pisar é som e o andar concento.[1]

Cantam teus pés e teu meneio pronto,
Nas fugas, não, nas cláusulas medido,
Mil consonâncias forma em cada ponto.

Pois em solfas airosas suspendido,
Ergues em cada quebro um contraponto,
Fazes em cada passo um sustenido.

Anónimo-S.,XVII

O garanhão

Tal como quando, no estábulo, o cavalo, depois de comer
a cevada da manjedoura, rompendo as amarras,
parte a galope pela planície ansioso
por se banhar no rio de belas águas e,
pavoneando-se: levanta a cabeça, as crinas
agitam-se-lhe sobre as espáduas e, orgulhoso
da sua beleza, move rapidamente os joelhos
para os lugares habituais e a pastagem dos cavalos,
assim Heitor dirigiu rapidamente os pés e os joelhos,
exortando os cocheiros, depois de ouvir a voz do deus.

(Homero,Ilíada, XV, 263-270)
Antologia de Poesia Grega Clássica, tradução de Albano Martins, 2009

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Provérbio
De manhã a manhã, perde o Carneiro a lã.

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O Cavalo

Os meus sonhos formais serão teu cavaleiro,
Meu destino luzindo teu belo cocheiro
Por rédeas terás tensos levando à agonia,
Meus versos, os modelos de toda poesia.

Apollinaire – tradução de Álvaro Faleiros

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O Boi

Querubim que canta o louvor,
Do paraíso do senhor
Para onde, amigos do peito,
Vamos se Deus achar direito.

Apollinaire - tradução de Álvaro Faleiros


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A foca
Quer ver a foca
Ficar feliz?
É pôr uma bola
No seu nariz

Quer ver a foca
Bater palminha?
É dar a ela
Uma sardinha

Quer ver a foca
Comprar uma briga?
É espetar ela
Bem na barriga

Lá vai a foca
Toda arrumada
Dançar no circo
Pra garotada

Lá vai a foca
Subindo a escada
Depois descendo
Desengonçada

Quanto trabalha
A coitadinha
Pra garantir
Sua sardinha
Vinicius de Moraes / Toquinho
© Tonga Editora Musical LTDA
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A cachorrinha
Mas que amor de cachorrinha!
Mas que amor de cachorrinha!

Pode haver coisa no mundo
Mais branca, mais bonitinha
Do que a tua barriguinha
Crivada de mamiquinha?
Pode haver coisa no mundo
Mais travessa, mais tontinha
Que esse amor de cachorrinha
Quando vem fazer festinha
Remexendo a traseirinha?

Uau,uau,uau,uau!
Uau,uau,uau,uau!
Vinicius de Moraes / Antonio Carlos Jobim
© Tonga Editora Musical LTDA / Jobim Music

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Morte de meu carneirinho

Não teve flores
Não teve velas
Não teve missa
Caixão também…
Foi enterrado
Junto à maré
Por operários
Mesmos do trem…

A flor do orvalho
Pendeu da nuvem
E pelo chão
Despetalou…
O céu ergueu
A hóstia do sol
E o mar em ondas
Se ajoelhou…

Cortejo lindo
Maior não houve
Desse amiguinho:
Iam vestidas
Com a lã das nuvens
Todas as almas
Dos carneirinhos!

Os gaturamos
Trinaram hinos
No altar esplêndido
Da madrugada;
E o vento brando
Desfeito em rimas
Foi badalando
Pelas estradas!
Vinicius de Moraes
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O leão
Leão! Leão! Leão!
Rugindo como um trovão
Deu um pulo, e era uma vez
Um cabritinho montês

Leão! Leão! Leão!
És o rei da criação

Tua goela é uma fornalha
Teu salto, uma labareda
Tua garra, uma navalha
Cortando a presa na queda
Leão longe, leão perto
Nas areias do deserto
Leão alto, sobranceiro
Junto do despenhadeiro

Leão! Leão! Leão!
És o rei da criação

Leão na caça diurna
Saindo a correr da furna
Leão! Leão! Leão!
Foi Deus quem te fez ou não
Leão! Leão! Leão!
És o rei da criação

O salto do tigre é rápido
Como o raio, mas não há
Tigre no mundo que escape
Do salto que o leão dá

Não conheço quem defronte
O feroz rinoceronte
Pois bem, se ele vê o leão
Foge como um furacão

Leão! Leão! Leão!
Es o rei da criação
Leão! Leão! Leão!
Foi Deus quem te fez ou não

Leão se esgueirando à espera
Da passagem de outra fera
Vem um tigre, como um dardo
Cai-lhe em cima o leopardo
E enquanto brigam, tranqüilo
O leão fica olhando aquilo
Quando se cansam, o leão
Mata um com cada mão
Vinicius de Moraes / Fagner
© Tonga Editora Musical LTDA / Direto
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O Elefante

Como o elefante o seu marfim,
Tenho na boca algo precioso.
Compro-me a glória, ó rubro fim!
Com este verso melodioso.

Apollinaire – tradução de Álvaro Faleiros


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O elefantinho
Onde vais, elefantinho
Correndo pelo caminho
Assim tão desconsolado?
Andas perdido, bichinho
Espetaste o pé no espinho
Que sentes, pobre coitado?

– Estou com um medo danado
Encontrei um passarinho!
Vinicius de Moraes
in "Poesia completa e prosa: "Poemas infantis""
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O porquinho
Muito prazer, sou o porquinho
Eu te alimento também
Meu couro bem tostadinho
Quem é que não sabe o sabor que tem
Se você cresce um pouquinho
O mérito, eu sei
Cabe a mim também

Se quiser, me chame
Te darei salame
E a mortadela
Branca, rosa e bela
Num pãozinho quente
Continuando o assunto
Te darei presunto
E na feijoada
Mesmo requentada
Agrado a toda gente

Sendo um porquinho informado
O meu destino bem sei
Depois de estar bem tostado
Fritinho ou assado
Eu partirei
Com a tia vaca do lado
Vestido de anjinho
Pro céu voarei

Do rabo ao focinho
Sou todo toicinho
Bota malagueta
Em minha costeleta
Numa gordurinha
Que coisa maluca
Minha pururuca
É uma beleza
Minha calabresa
No azeite fritinha
Vinicius de Moraes / Toquinho
© Tonga Editora Musical LTDA

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Cavalos

Pela grande campina passam os cavalos a galope.
Aonde vão eles?
Vão buscar a cabeça do Delfim rolando na escadaria.
Os cavalos nervosos sacodem no ar longas crinas azuis.
Um segura nos dentes a branca atriz morta que retirou das águas,
Outros levam mensagens do vento aos exploradores desaparecidos,
Ou carregam trigo para as populações abandonadas pelos chefes.
Os finos cavalos azuis relincham para os aviões
E batem a terra dura com os cascos reluzentes.
São os restos de uma antiga raça companheira do homem
Que os vai substituir pelos cavalos mecânicos
E atirá-los ao abismo da história.
Os impacientes cavalos azuis fecham a curva do horizonte,
Despertando clarins na manhã.

Murilo Mendes
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O Leão

Triste imagem do leão
Como rei precito ao expurgo,
Hoje só nasces na prisão
Lá na Alemanha, em Hamburgo.

Apollinaire- tradução de Álvaro Faleiros

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O outro tigre

And the craft that createth a semblence/ MORRIS: Sigurd the Volsung (1876)

Penso em um tigre. E a penumbra exalta
A vasta livraria trabalhosa,
Parecendo afastar as prateleiras;
Forte, inocente, ensangüentado, novo,
Ele irá de manhã por sua selva
E marcará seu rasto na limosa
Margem de um rio cujo nome ignora
(Seu mundo não tem nomes, nem passado,
Nem porvir, mas só um instante certo).
E vencerá as bárbaras distâncias
Farejando na renda labiríntica
Dos aromas o aroma da aurora
E o odor deleitável do veado.
Por entre as raias do bambu decifro
Suas raias, pressinto sob a pele
A ossatura esplêndida que vibra.
Inutilmente se interpõem convexos
Mares com os desertos do planeta;
Pois desta casa em um remoto porto
Da América do Sul, te sigo e sonho,
Ó tigre das gerais do Rio Ganges.
Cresce a tarde em minh'alma e vou pensando
Que o tigre evocativo do meu verso
É um tigre de símbolos e sombras
Uma série de tropos literários
E de lembranças de enciclopédia,
E não o tigre fatal, aziaga jóia
Que, sob o sol ou a diversa lua,
Vai cumprindo em Sumatra ou Bengala
Sua rotina de amor, ócio, morte.
Ao tigre desses símbolos opus
O real, que tem sangue quente, e hoje
5 de agosto de 59,
Estende na planície uma pausada
Sombra; porém, o fato de dizê-lo
E de conjeturar a circunstância
O faz ficção artística, não ser
Vivente dos que andam pela terra.
Um outro tigre buscaremos. Esse
Será como os primeiros uma forma
De meu sonho, sistema de palavras
Humanas, e não tigre vertebrado
Que, das mitologias indo além,
Pisa a terra. Bem sei; algo entretanto
Me impõe essa aventura indefinida,
Insensata e antiga, e persevero
Em buscar pelo tempo desta tarde
O outro tigre, o que não vem no verso.

Jorge Luis Borges
Tradução de Paulo Mendes Campos

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O Tygre

tygre! tygre! brilho, brasa
que à furna noturna abrasa,
que olho ou mão armaria
tua feroz symmetrya?

em que céu se foi forjar
o fogo do teu olhar?
em que asas veio a chamma?
que mão colheu essa flamma?

que força fez retorcer
em nervos todo o teu ser?
e o som do teu coração
de aço, que cor, que ação?

teu cérebro, quem o malha?
que martelo? que fornalha
o moldou? que mão, que garra
seu terror mortal amarra?

quando as lanças das estrelas
cortaram os céus, ao vê-las,
quem as fez sorriu talvez?
quem fez a ovelha te fez?


William Blake - Tradução A de Campos

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O Rato

Belos dias, ratos das horas,
Roído assim faço-me idas.
Deus! Foram-se vinte e oito auroras,
Penso eu muito mal vividas.

Apollinaire – tradução de Álvaro Faleiros
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Corça

Corça ferida pula alto,
Ouvi um caçador contar -
É só o êxtase da morte -
Depois é a moita a sossegar.

A rocha esguicha, perfurada;
Mola pisada salta e estica;
E a face fica mais corada
se espicaçada pela tísica.

Cota de malha da angústia
É a alacridade em que se abriga,
P’ra que ninguém descubra o sangue -
e “estás ferida” então nos diga,

Se ao chegarem os pintarroxos
Já for finda a vida minha,
A um de gravata rubra,
Por mim. Dai-lhe migalhinha.

E se acaso não agradeço,
Porque então eu já dormito,
sabei que o estou tentando,
Com os meus lábios de granito.

Emily Dickinson

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Os três burricos

Por estradas de montanha
vou: os três burricos que sou.
Será que alguém me acompanha?

Também não sei se é uma ida
ao inverso: se regresso.
Muito é o nada nesta vida.

E, dos três, que eram eu mesmo
ora pois, morreram dois;
fiquei só, andando a esmo.

Mortos, mas, vindo comigo
a pesar. E carregar
a ambos é o meu castigo?

Pois a estrada por onde eu ia
findou. Agora, onde estou?
Já cheguei, e não sabia?

Três vezes terei chegado
eu – o só, que não morreu
e um morto eu de cada lado.

Sendo bem isso, ou então
será: morto o que vivo está.
E os mortos, que longe vão?


Guimarães Rosa

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O Cão sem Plumas

I. Paisagem do Capibaribe

A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.

O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.

Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.

Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.

Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.

Abre-se em flores
pobres e negras
como negros.
Abre-se numa flora
suja e mais mendiga
como são os mendigos negros.
Abre-se em mangues
de folhas duras e crespos
como um negro.

Liso como o ventre
de uma cadela fecunda,
o rio cresce
sem nunca explodir.
Tem, o rio,
um parto fluente e invertebrado
como o de uma cadela.

E jamais o vi ferver
(como ferve
o pão que fermenta).
Em silêncio,
o rio carrega sua fecundidade pobre,
grávido de terra negra.

Em silêncio se dá:
em capas de terra negra,
em botinas ou luvas de terra negra
para o pé ou a mão
que mergulha.

Como às vezes
passa com os cães,
parecia o rio estagnar-se.
Suas águas fluíam então
mais densas e mornas;
fluíam com as ondas
densas e mornas
de uma cobra.

Ele tinha algo, então,
da estagnação de um louco.
Algo da estagnação
do hospital, da penitenciária, dos asilos,
da vida suja e abafada
(de roupa suja e abafada)
por onde se veio arrastando.

Algo da estagnação
dos palácios cariados,
comidos
de mofo e erva-de-passarinho.
Algo da estagnação
das árvores obesas
pingando os mil açúcares
das salas de jantar pernambucanas,
por onde se veio arrastando.

(É nelas,
mas de costas para o rio,
que "as grandes famílias espirituais" da cidade
chocam os ovos gordos
de sua prosa.
Na paz redonda das cozinhas,
ei-las a revolver viciosamente
seus caldeirões
de preguiça viscosa).

Seria a água daquele rio
fruta de alguma árvore?
Por que parecia aquela
uma água madura?
Por que sobre ela, sempre,
como que iam pousar moscas?

Aquele rio
saltou alegre em alguma parte?
Foi canção ou fonte
Em alguma parte?
Por que então seus olhos
vinham pintados de azul
nos mapas?


II. Paisagem do Capibaribe

Entre a paisagem
o rio fluía
como uma espada de líquido espesso.
Como um cão
humilde e espesso.

Entre a paisagem
(fluía)
de homens plantados na lama;
de casas de lama
plantadas em ilhas
coaguladas na lama;
paisagem de anfíbios
de lama e lama.

Como o rio
aqueles homens
são como cães sem plumas
(um cão sem plumas
é mais
que um cão saqueado;
é mais
que um cão assassinado.

Um cão sem plumas
é quando uma árvore sem voz.
É quando de um pássaro
suas raízes no ar.
É quando a alguma coisa
roem tão fundo
até o que não tem).

O rio sabia
daqueles homens sem plumas.
Sabia
de suas barbas expostas,
de seu doloroso cabelo
de camarão e estopa.

Ele sabia também
dos grandes galpões da beira dos cais
(onde tudo
é uma imensa porta
sem portas)
escancarados
aos horizontes que cheiram a gasolina.

E sabia
da magra cidade de rolha,
onde homens ossudos,
onde pontes, sobrados ossudos
(vão todos
vestidos de brim)
secam
até sua mais funda caliça.

Mas ele conhecia melhor
os homens sem pluma.
Estes
secam
ainda mais além
de sua caliça extrema;
ainda mais além
de sua palha;
mais além
da palha de seu chapéu;
mais além
até
da camisa que não têm;
muito mais além do nome
mesmo escrito na folha
do papel mais seco.

Porque é na água do rio
que eles se perdem
(lentamente
e sem dente).
Ali se perdem
(como uma agulha não se perde).
Ali se perdem
(como um relógio não se quebra).

Ali se perdem
como um espelho não se quebra.
Ali se perdem
como se perde a água derramada:
sem o dente seco
com que de repente
num homem se rompe
o fio de homem.

Na água do rio,
lentamente,
se vão perdendo
em lama; numa lama
que pouco a pouco
também não pode falar:
que pouco a pouco
ganha os gestos defuntos
da lama;
o sangue de goma,
o olho paralítico
da lama.

Na paisagem do rio
difícil é saber
onde começa o rio;
onde a lama
começa do rio;
onde a terra
começa da lama;
onde o homem,
onde a pele
começa da lama;
onde começa o homem
naquele homem.

Difícil é saber
se aquele homem
já não está
mais aquém do homem;
mais aquém do homem
ao menos capaz de roer
os ossos do ofício;
capaz de sangrar
na praça;
capaz de gritar
se a moenda lhe mastiga o braço;
capaz
de ter a vida mastigada
e não apenas
dissolvida
(naquela água macia
que amolece seus ossos
como amoleceu as pedras).



II. III. Fábula do Capibaribe

A cidade é fecundada
por aquela espada
que se derrama,
por aquela
úmida gengiva de espada.

No extremo do rio
o mar se estendia,
como camisa ou lençol,
sobre seus esqueletos
de areia lavada.

(Como o rio era um cachorro,
o mar podia ser uma bandeira
azul e branca
desdobrada
no extremo do curso
— ou do mastro — do rio.

Uma bandeira
que tivesse dentes:
que o mar está sempre
com seus dentes e seu sabão
roendo suas praias.

Uma bandeira
que tivesse dentes:
como um poeta puro
polindo esqueletos,
como um roedor puro,
um polícia puro
elaborando esqueletos,
o mar,
com afã,
está sempre outra vez lavando
seu puro esqueleto de areia.

O mar e seu incenso,
o mar e seus ácidos,
o mar e a boca de seus ácidos,
o mar e seu estômago
que come e se come,
o mar e sua carne
vidrada, de estátua,
seu silêncio, alcançado
à custa de sempre dizer
a mesma coisa,
o mar e seu tão puro
professor de geometria).

O rio teme aquele mar
como um cachorro
teme uma porta entretanto aberta,
como um mendigo,
a igreja aparentemente aberta.

Primeiro,
o mar devolve o rio.
Fecha o mar ao rio
seus brancos lençóis.
O mar se fecha
a tudo o que no rio
são flores de terra,
imagem de cão ou mendigo.

Depois,
o mar invade o rio.
Quer
o mar
destruir no rio
suas flores de terra inchada,
tudo o que nessa terra
pode crescer e explodir,
como uma ilha,
uma fruta.

Mas antes de ir ao mar
o rio se detém
em mangues de água parada.
Junta-se o rio
a outros rios
numa laguna, em pântanos
onde, fria, a vida ferve.

Junta-se o rio
a outros rios.
Juntos,
todos os rios
preparam sua luta
de água parada,
sua luta
de fruta parada.

(Como o rio era um cachorro,
como o mar era uma bandeira,
aqueles mangues
são uma enorme fruta:

A mesma máquina
paciente e útil
de uma fruta;
a mesma força
invencível e anônima
de uma fruta
— trabalhando ainda seu açúcar
depois de cortada —.

Como gota a gota
até o açúcar,
gota a gota
até as coroas de terra;
como gota a gota
até uma nova planta,
gota a gota
até as ilhas súbitas
aflorando alegres).


IV. Discurso do Capibaribe

Aquele rio
está na memória
como um cão vivo
dentro de uma sala.
Como um cão vivo
dentro de um bolso.
Como um cão vivo
debaixo dos lençóis,
debaixo da camisa,
da pele.

Um cão, porque vive,
é agudo.
O que vive
não entorpece.
O que vive fere.
O homem,
porque vive,
choca com o que vive.
Viver
é ir entre o que vive.

O que vive
incomoda de vida
o silêncio, o sono, o corpo
que sonhou cortar-se
roupas de nuvens.
O que vive choca,
tem dentes, arestas, é espesso.
O que vive é espesso
como um cão, um homem,
como aquele rio.

Como todo o real
é espesso.
Aquele rio
é espesso e real.
Como uma maçã
é espessa.
Como um cachorro
é mais espesso do que uma maçã.
Como é mais espesso
o sangue do cachorro
do que o próprio cachorro.
Como é mais espesso
um homem
do que o sangue de um cachorro.
Como é muito mais espesso
o sangue de um homem
do que o sonho de um homem.

Espesso
como uma maçã é espessa.
Como uma maçã
é muito mais espessa
se um homem a come
do que se um homem a vê.
Como é ainda mais espessa
se a fome a come.
Como é ainda muito mais espessa
se não a pode comer
a fome que a vê.

Aquele rio
é espesso
como o real mais espesso.
Espesso
por sua paisagem espessa,
onde a fome
estende seus batalhões de secretas
e íntimas formigas.

E espesso
por sua fábula espessa;
pelo fluir
de suas geléias de terra;
ao parir
suas ilhas negras de terra.

Porque é muito mais espessa
a vida que se desdobra
em mais vida,
como uma fruta
é mais espessa
que sua flor;
como a árvore
é mais espessa
que sua semente;
como a flor
é mais espessa
que sua árvore,
etc. etc.

Espesso,
porque é mais espessa
a vida que se luta
cada dia,
o dia que se adquire
cada dia
(como uma ave
que vai cada segundo
conquistando seu vôo).


João Cabral de Melo Neto

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O morcego

No dia em que Deus criou a luz
e ela acendeu seus azuis
foi um imenso festão
ouviram-se urros e pios
mugidos e assobios
ficou aquela folia
houve um baile no céu
muito barulho e alegria
um tremendo beleléu;
uns gostaram, outros não.
O homem, não existia.

Quem não ficou satisfeito
com aquele clarão feito
que mais pareceia um facho
foi um bicho diferente
conhecido por morcego
(ele achou muito ao contrário)
e então, daí pra frente
o coitado dorme cedo
e passa o dia no armário
de cabeça para baixo.

Walter Cabral de Moura
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Bode

Meu outro nome? Fauno.
Não ofendo, homenageio
donzelas na mata.
Olga Savary
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Lobo-guará

Do meu alvo esperto
de longe nem chego perto
desconfiado e alerta.
Olga Savary
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A Jumenta de Balaão


A jumenta de Balaão
viu o anjo do Senhor,
e ele não.

Por três vezes a espancou
até que o bom do animal
não suportando, falou:
por que me bates? que te fiz mal?

E ele: tivesse uma espada
e te matava. Alguém zurrava.

O Senhor, compadecido,
abriu os olhos a Balaão,
que viu enfim a aparição.
Prostrou-se: pequei, perdão!

Entre o pobre e a jumenta
as pazes estavam feitas.

E seguiram, após o ataque,
para o palácio de Balac,
como se nada acontecido.


Walter Cabral de Moura

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Boi morto

Como em turvas águas de enchente,
Me sinto a meio submergido
Entre destroços do presente
Dividido, subdividido,
Onde rola, enorme, o boi morto,

Boi morto, boi morto, boi morto.
Árvores da paisagem calma,
Convosco – altas, tão marginais! -
Fica a alma, a atônita alma,
Atônita para jamais.
Que o corpo, esse vai com o boi morto,

Boi morto, boi morto, boi morto.

Boi morto, boi descomedido,
Boi espantosamente boi
Morto, sem forma ou sentido
Ou significado. O que foi
Ninguém sabe. Agora é boi morto,

Boi morto, boi morto, boi morto.


Manuel Bandeira

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Porquinho-da-Índia

Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração eu tinha
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos
Ele não se importava:
Queria estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...

- O meu porquinho-da-Índia foi a minha primeira namorada.


Manuel Bandeira

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O Elefante

Fabrico um elefante
de meus poucos recursos.
Um tanto de madeira
tirado a velhos moveis
talvez lhe dê apoio.
E o encho de algodão,
de paina, de doçura.
A cola vai fixar
suas orelhas pensas.
A tromba se enovela,
e é a parte mais feliz
de sua arquitetura.
Mas há também as presas,
dessa matéria pura
que não sei figurar.
Tão alva essa riqueza
a espojar-se nos circos
sem perda ou corrupção.
E há por fim os olhos,
onde se deposita
a parte do elefante
mais fluida e permanente,
alheia a toda fraude.
Eis meu pobre elefante
pronto para sair
à procura de amigos
num mundo enfastiado
que já não crê nos bichos
e duvida das coisas.
Ei-lo, massa imponente
e frágil, que se abana
e move lentamente
a pele costurada
onde há flores de pano
e nuvens, alusões
a um mundo mais poético
onde o amor reagrupa as formas naturais.

Vai o meu elefante
pela rua povoada,
mas não o querem ver
nem mesmo para rir
da cauda que ameaça
deixá-lo ir sozinho.
É todo graça, embora
as pernas não ajudem
e seu ventre balofo
se arrisque a desabar
ao mais leve empurrão.
Mostra com elegância
sua mínima vida,
e não há na cidade
alma que se disponha
a recolher em si
desse corpo sensível
a fugitiva imagem,
o passo desastrado
mas faminto e tocante.

Mas faminto de seres
e situações patéticas,
de encontros ao luar
no mais profundo oceano,
sob a raiz das árvores
ou no seio das conchas,
de luzes que não cegam
e brilham através
dos troncos mais espessos.
Esse passo que vai
sem esmagar as plantas
no campo de batalha,
à procura de sítios,
segredos, episódios
não contados em livro,
de que apenas o vento,
as folhas, a formiga
reconhecem o talhe,
mas que os homens ignoram,
pois só ousam mostrar-se
sob a paz das cortinas
à pálpebra cerrada.

E já tarde da noite
volta meu elefante,
mas volta fatigado,
e as patas vacilantes
se desmancham no pó.
Ele não encontrou
o de que carecia,
o de que carecemos,
eu e meu elefante,
em que amo disfarçar-me.

Exausto de pesquisa,
caiu-lhe o vasto engenho
como simples papel.
A cola se dissolve
e todo o seu conteúdo
de perdão, de carícia,
de pluma, de algodão
jorra sobre o tapete,
qual muito desmontado.
Amanhã recomeço.

Carlos Drummond de Andrade

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Os cavalos de fogo


A luz dissolve as pedras. E os cavalos
de fogo se projetam contra o vento.
Lá se vão eles, potros de ar sangrento,
por entre os sóis que intentam sufocá-los.

Lá se vão eles, potros de ar cinzento,
como se a própria luz incendiária
lhes desse uma aparência imaginária
de cor, de som, de céu em movimento.

E então o céu me envolve. Eis que me arrasta
o seu raro esplendor, o trepidante
fremir de intenso azul. No alto me espera

uma forma incorpórea, a visão casta
do que fascina e queda agonizante...
— Campo do amor chamando a primavera.


Alphonsus De Guimaraens Filho
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Namoro a cavalo

Eu moro em Catumbi. Mas a desgraça
Que rege minha vida malfadada
Pôs lá no fim da rua do Catete
A minha Dulcinéia namorada.

Alugo (três mil réis) por uma tarde
Um cavalo de trote (que esparrela!)
Só para erguer meus olhos suspirando
À minha namorada na janela...

Todo o meu ordenado vai-se em flores
E em lindas folhas de papel bordado
Onde eu escrevo trêmulo, amoroso,
Algum verso bonito... mas furtado.

Morro pela menina, junto dela
Nem ouso suspirar de acanhamento...
Se ela quisesse eu acabava a história
Como toda a Comédia — em casamento.

Ontem tinha chovido... que desgraça!
Eu ia a trote inglês ardendo em chama,
Mas lá vai senão quando uma carroça
Minhas roupas tafuis encheu de lama...

Eu não desanimei. Se Dom Quixote
No Rocinante erguendo a larga espada
Nunca voltou de medo, eu, mais valente,
Fui mesmo sujo ver a namorada...

Mas eis que no passar pelo sobrado
Onde habita nas lojas minha bela
Por ver-me tão lodoso ela irritada
Bateu-me sobre as ventas a janela...

O cavalo ignorante de namoros
Entre dentes tomou a bofetada,
Arrepia-se, pula, e dá-me um tombo
Com pernas para o ar, sobre a calçada...

Dei ao diabo os namoros. Escovado
Meu chapéu que sofrera no pagode
Dei de pernas corrido e cabisbaixo
E berrando de raiva como um bode.

Circunstância agravante. A calça inglesa
Rasgou-se no cair de meio a meio,
O sangue pelas ventas me corria
Em paga do amoroso devaneio!...

Alvares de Azevedo

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A um rato bem relacionado
(Depois de ler sobre a semelhança genética entre ratos e homens)

Medricas, timorato, subtil, nico feroz,
a grande ciência diz que há entre ti e nós
alguns noventa e nove por cento a repartir
de genes − onde quer que aquele um foi cair.

Ó cauda-rosa, ó bravo, mordiscante senhor,
da névoa mais temível, cantamos o louvor,
pata de sáurio em cima, há tempo muito ido:
nunca mais pestilento, primo meu, mas querido.

Não entres na despensa, evita as ratoeiras,
e talvez não te batam, com tais boas maneiras.
Que o roubo, o crime, a faca, a navalha, o facão
Quando são em família, vale tudo, m’irmão!

John Updike, Ponto Último e outros poemas - Trad. de Ana Luísa Amaral
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Recordação

Vejo o cavalo parado
ao pé do tanque de limo.
Cai-lhe por cima a tristeza
de um cipreste muito antigo.

Rolou no vale de pedra
seu ginete assassinado.
Oh, como pulsa, na tarde,
o coração do cavalo.

O tanque não tem mais água
e o corpo do cavaleiro,
no vale, não vale nada.

Mas o cavalo é a sombra
para sempre, de olhos tristes,
sacudindo a crina longa.


Cecília Meireles

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Os carneirinhos

Todos querem ser pastores,
quando encontram, de manhã,
os carneirinhos,
enroladinhos
como carretéis de lã.
Todos querem ser pastores
e ter coroa de flores
e um cajadinho na mão
e tocar uma flautinha
e soprar numa palhinha
qualquer canção.
todos querem ser cantores
quando a Estrela da Manhã
brilha só, no céu sombrio,
e, pela margem do rio,
vão descendo os carneirinhos
como carretéis de lã...

Cecília Meireles

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Lamento do oficial por seu cavalo morto

Nós merecemos a morte,
porque somos humanos
e a guerra é feita pelas nossas mãos,
pela nossa cabeça embrulhada em séculos de sombra,
por nosso sangue estranho e instável, pelas ordens
que trazemos por dentro, e ficam sem
[ explicação.

Criamos o fogo, a velocidade, a nova alquimia,
os cálculos do gesto,
embora sabendo que somos irmãos.
Temos até os átomos por cúmplices, e que
[ pecados
de ciência, pelo mar, pelas nuvens, nos astros!
Que delírio sem Deus, nossa imaginação!

E aqui morreste! Oh, tua morte é a minha, que,
[ enganada,
recebes. Não te queixas. Não pensas. Não sabes.
[ Indigno,
ver parar, pelo meu, teu inofensivo coração.

Animal encantado — melhor que nós todos! —
[ que tinhas tu com este
[ mundo dos homens?
Aprendias a vida, plácida e pura, e entrelaçada
em carne e sonho, que os teus olhos
[ decifravam...
Rei das planícies verdes, com rios trêmulos de
[ relinchos...
Como vieste a morrer por um que mata seus
[ irmãos?
Cecília Meireles
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Cronista Enamorado do Sagüim

O sagüim é um animalzinho assaz bonito:
é mesmo o mais bonito de todos, pela selva;
anda nas árvores, esconde-se, espia, foge depressa
e há deles, na terra viçosa, número infinito.

Se qualquer rei da Europa o visse, gostaria
e possuí-lo como um brinquedo, vindo de longe, e raro.
Mas é o sagüim animalzinho tão delicado
que a uma viagem tão longa não resistiria.

A cara do sagüim é como a de um leãozinho,
e pode-se conseguir que ele pouse no nosso ombro.
O sagüim mais bonito de todos é o sagüim louro,
que tem uma expressão de inteligência e carinho.

Ele pode descer a comer à nossa mão! Graciosa
é a sua maneira de olhar. Gracioso é o movimento do seu corpo inteiro,
tão leve e breve! Mas os melhores, só no Rio de Janeiro
se encontram: se encontram apenas nesta cidade, a mui formosa.

Cecília Meireles


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Tamanduar


Deforma-se a nuvem
piscam formigas de fogo
na pele da noite -
ardem repentes.

Resvala a língua
cintila o breu
estala nos astros cadentes
molha tempestades.

Que animal faminto enlaça estrelas?

Tromba (às avessas) d'água e de luar
sorve astros
constela-se
e desfaz-se ao vento
da floresta norte.

Lilia Chaves

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O cão e a presa

Um cão apanha um coelho
À margem de uma ribeira,
Mas vendo-o naquele espelho
larga-o, salta a ribanceira...
E assim perde o que levava
E mais o que ambicionava,
Abençoada prudência
(E é esta a moralidade!)
Quantos pela aparência
Perdem a realidade.

João de Deus, Campo de Flores
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O leão derribado pelo homem

Expuseram certo quadro,
Em que o pintor figurara
Leão enorme, que ao braço
De um homem - só - baqueara.

Os que vinham contemplá-lo
Enchiam-se de ufania;
Mas ficavam cabisbaixos
Ante um leão que dizia:

"Vejo bem que nessa tela
Vos decretais a vitória;
Mas o pintor vos ilude,
Fingindo a seu modo a história.

Se entre os leões, meus confrades,
Houvesse também pintores,
Com jus maior nos dariam
O papel de vencedoreS

Jean de La Fontaine
Tradução do Barão de Parapiacaba
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A moleirinha


estrada plana, toque, toque, toque
Guia o jumentinho uma velhinha errante
Como vão ligeiros, ambos a reboque,
Antes que anoiteça, toque, toque, toque
A velhinha atrás, o jumentinho adiante!...

Toque, toque, a velha vai para o moinho,
Tem oitenta anos, bem bonito rol!...
E contudo alegre como um passarinho,
Toque, toque, e fresca como o branco linho,
De manhã nas relvas a corar ao sol.

Vai sem cabeçada, em liberdade franca,
O jerico ruço duma linda cor;
Nunca foi ferrado, nunca usou retranca,
Tange-o, toque, toque, moleirinha branca
Com o galho verde duma giesta em flor.

Vendo esta velhita, encarquilhada e benta,
Toque, toque, toque, que recordação!
Minha avõ ceguinha se me representa...
Tinha eu seis anos, tinha ela oitenta,
Quem me fez o berço fez-lhe o seu caixão!...

Toque, toque, toque, lindo burriquito,
Para as minhas filhas quem mo dera a mim!
Nada mais gracioso, nada mais bonito!
Quando a virgem pura foi para o Egipto,
Com certeza ia num burrico assim.

Toque, toque, é tarde, moleirinha santa!
Nascem as estrelas, vivas, em cardume...
Toque, toque, toque, e quando o galo canta,
Logo a moleirinha, toque, se levanta,
Pra vestir os netos, pra acender o lume...

Toque, toque, toque, como se espaneja,
Lindo o jumentinho pela estrada chã!
Tão ingénuo e humilde, dá-me, salvo seja,
Dá-me até vontade de o levar à igreja,
Baptizar-lhe a alma, prà fazer cristã!

Toque, toque, toque, e a moleirinha antiga,
Toda, toda branca, vai numa frescata...
Foi enfarinhada, sorridente amiga,
Pela mó da azenha com farinha triga,
Pelos anjos loiros com luar de prata!

Toque, toque, como o burriquito avança!
Que prazer d'outrora para os olhos meus!
Minha avó contou-me quando fui criança,
Que era assim tal qual a jumentinha mansa
Que adorou nas palhas o menino Deus...

Toque, toque, é noite... ouvem-se ao longe os sinos,
Moleirinha branca, branca de luar!...
Toque, toque, e os astros abrem diamantinos,
Como estremunhados querubins divinos,
Os olhitos meigos para a ver passar...

Toque, toque, e vendo sideral tesoiro,
Entre os milhões d'astros o luar sem véu,
O burrico pensa: Quanto milho loiro!
Quem será que mói estas farinhas d'oiro
Com a mó de jaspe que anda além no Céu!

Guerra Junqueiro,Os Simples
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Le petit cheval

Le petit cheval dans le mauvais temps
Qu'il avait donc du courage
C'était un petit cheval blanc
Tous derrière et lui devant

Il n'y avait jamais de beau temps
Dans ce pauvre paysage
Il n'y avait jamais de printemps
Ni derrière ni devant

Mais toujours il était content
Menant les gars du village
A travers la pluie noire des champs
Tous derrière et lui devant

Sa voiture allait poursuivant
Sa belle petite queue sauvage
C'est alors qu'il était content
Tous derrière et lui devant

Mais un jour, dans le mauvais temps
Un jour qu'il était si sage
Il est mort par un éclair blanc
Tous derrière et lui devant

Il est mort sans voir le beau temps
Qu'il avait donc du courage
Il est mort sans voir le printemps
Ni derrière ni devant

Paul Fort
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O Cavalinho Branco

À tarde, o cavalinho branco
está muito cansado:

mas há um pedacinho do campo
onde é sempre feriado.

O cavalo sacode a crina
loura e comprida

e nas verdes ervas atira
sua branca vida.

Seu relincho estremece as raízes
e ele ensina aos ventos

a alegria de sentir livres
seus movimentos.

Trabalhou todo o dia, tanto!
desde a madrugada!

Descansa entre as flores, cavalinho branco,
de crina dourada!

Cecília Meireles

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Pscicoaliteração do rato

rói o rato a roupa
na corda ao fim da rua
e arrota

num ror de razão o rato
rouba arroz ao porto do povo
e roto troca o troco
por trigo trancando-se atrás
do rasto raro e fica rico o rato
e por um triz não é trazido
de rastos pela rua a trote
mas chega ao trono e trás!...
Rato sem roldana trás!... catrapuz!
Sem ruga roga a quem ri
rato rói rato até à raiz

mais radical a ratazana tradicional
num golpe de rins reluz ao raiar
de um enorme sol de luz
e ao farejar o rumorejar do país
corre p’ro Rand
pela ração sem retalhos
e quando regressa rola ruela
à risca e acende o rastilho
e não se rala por quem se roa

o rato resignado recolhe a rede
e rema rompendo as rugas
do mar sem rumo
e aí sem renitência reina
sem rusga nem ratoeira
e não se rala o rato roedor
rói até rédea
rato recto faz do rito revolução

Morte de meu carneirinho -

Guita Júnior in O Agora e O Depois das Coisas
Em ANTOLOGIA DE POESIA MOÇAMBICANA
publicações D. Quixote
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Uma perfeição de cão
Conheci um cão
Que falava
Que escutava
Que cantava
Que brincava
Que ladrava
Que fazia o pino
E que era um grande dançarino.
Que jogava à bola
Que perdia
Que ganhava.
Que estudava
E que andava
Comigo na escola.
E que tal?
Era ou não
Uma perfeição de cão?
Não acreditam?
Fazem mal.
Era um cão
De imaginação...
Maria Cândida Mendonça, O Livro do Faz-de-Conta
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Romance LXXXIV ou dos cavalos da Inconfidência

Eles eram muitos cavalos,
ao longo dessas grandes serras,
de crinas abertas ao vento,
a galope entre águas e pedras.
Eles eram muitos cavalos,
donos dos ares e das ervas,
com tranquilos olhos macios,
habituados às densas névoas,
aos verdes prados ondulosos,
às encostas de árduas arestas,
à cor das auroras nas nuvens,
ao tempo de ipês e quaresmas.

Eles eram muitos cavalos
nas margens desses grandes rios
por onde os escravos cantavam
músicas cheias de suspiros.
Eles eram muitos cavalos
e guardavam no fino ouvido
o som das catas e dos cantos,
a voz de amigos e inimigos
— calados, ao peso da sela,
picados de insectos e espinhos,
desabafando o seu cansaço
em crepusculares relinchos.

Eles eram muitos cavalos,
— rijos, destemidos, velozes —
entre Mariana e Serro Frio,
Vila Rica e Rio das Mortes.
Eles eram muitos cavalos,
transportando no seu galope
coronéis, magistrados, poetas,
furriéis, alferes, sacerdotes.
E ouviam segredos e intrigas,
e sonetos e liras e odes:
testemunhas sem depoimento,
diante de equívocos enormes.

Eles eram muitos cavalos,
entre Mantiqueira e Ouro Branco,
desmanchando o xisto nos cascos,
ao sol e à chuva, pelos campos,
levando esperanças, mensagens,
transmitidas de rancho em rancho.
Eles eram muitos cavalos,
entre sonhos e contrabandos,
alheios às paixões dos donos,
pousando os mesmos olhos mansos
nas grotas, repletas de escravos,
nas igrejas, cheias de santos.

Eles eram muitos cavalos:
e uns viram correntes e algemas,
outros, o sangue sobre a forca,
outros, o crime e as recompensas.
Eles eram muitos cavalos:
E alguns foram postos à venda,
outros ficaram nos seus pastos,
e houve uns que, depois da sentença,
levaram o Alferes cortado
em braços, pernas e cabeça.
E partiram com sua carga
na mais dolorosa inocência.

Eles eram muitos cavalos.
E morreram por esses montes,
esses campos, esses abismos,
tendo servido a tantos homens.
Eles eram muitos cavalos,
mas ninguém mais sabe os seus nomes,
sua pelagem, sua origem...
E iam tão alto, e iam tão longe!
E por eles se suspirava,
consultando o imenso horizonte!
— Morreram seus flancos robustos,
que pareciam de ouro e bronze.

Eles eram muitos cavalos.
E jazem por aí, caídos,
misturados às bravas serras,
misturados ao quartzo e ao xisto,
a frescura aquosa das lapas,
ao verdor do trevo florido.
E nunca pensaram na morte.
E nunca souberam de exílios.
Eles eram muitos cavalos,
cumprindo seu duro serviço.

A cinza de seus cavaleiros
neles aprendeu tempo e ritmo,
e a subir aos picos do mundo...
e a rolar pelos precipícios...

Cecília Meireles, Romanceiro da Inconfidência,Relógio d’Água, 2008


(onde está o intrometido do rato?)

6.1.Poemas com gatos


os gatos

à noite todos são
escuros partes
de si espelhos reflectindo o brilho
da escuridão:

pedaços que nós deixamos
perdidos abandonados
no meio do dia antes
de morrer

Adair Carvalhais Júnior, Roteiros Para um Final de Era
Belo Horizonte, 1998

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Poema do gato

Quem há-de abrir a porta ao gato
quando eu morrer?

Sempre que pode
foge prá rua,
cheira o passeio
e volta pra trás,
mas ao defrontar-se com a porta fechada
(pobre do gato!)
mia com raiva
desesperada.
Deixo-o sofrer
que o sofrimento tem sua paga,
e ele bem sabe.

Quando abro a porta corre pra mim
como acorre a mulher aos braços do amante.
Pego-lhe ao colo e acaricio-o
num gesto lento,
vagarosamente,
do alto da cabeça até ao fim da cauda.
Ele olha-me e sorri, com os bigodes eróticos,
olhos semi-cerrados, em êxtase,
ronronando.

Repito a festa,
vagarosamente.
do alto da cabeça até ao fim da cauda.
Ele aperta as maxilas,
cerra os olhos,
abre as narinas.
e rosna.
Rosna, deliquescente,
abraça-me
e adormece.

Eu não tenho gato, mas se o tivesse
quem lhe abriria a porta quando eu morresse?

António Gedeão
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The owl and the pussycat

I
The Owl and the Pussy-cat went to sea
In a beautiful pea green boat,
They took some honey, and plenty of money,
Wrapped up in a five pound note.
The Owl looked up to the stars above,
And sang to a small guitar,
'O lovely Pussy! O Pussy my love,
What a beautiful Pussy you are,
You are,
You are!
What a beautiful Pussy you are!'

II
Pussy said to the Owl, 'You elegant fowl!
How charmingly sweet you sing!
O let us be married! too long we have tarried:
But what shall we do for a ring?'
They sailed away, for a year and a day,
To the land where the Bong-tree grows
And there in a wood a Piggy-wig stood
With a ring at the end of his nose,
His nose,
His nose,
With a ring at the end of his nose.


III
'Dear pig, are you willing to sell for one shilling
Your ring?' Said the Piggy, 'I will.'
So they took it away, and were married next day
By the Turkey who lives on the hill.
They dined on mince, and slices of quince,
Which they ate with a runcible spoon;
And hand in hand, on the edge of the sand,
They danced by the light of the moon,
The moon,
The moon,
They danced by the light of the moon.

Edward Lear, Nonsense Poetry


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Um gato devastador

Um gato desbravador
adentra a primeira vez
recém-construído prédio.

Sobe a rampa lentamente
explora o ambiente
observa, escuta, sente
por assim dizer, indaga...

Aqui se senta, estaca
(eita gato bandoleiro)
enfim se coça, que tédio.

Prossegue sua viagem
errando pela garagem
no ermo desabitado
do novo prédio do lado.
Walter Cabral de Moura, Livro dos Silêncios, Recife, 2000
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O Gato

Desejo manter em meu lar:
Uma companheira a pensar,
Andando entre livros um gato,
Bons amigos sempre a passar
Sem os quais o viver é ingrato.

Apollinaire – tradução de Álvaro Faleiros

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Ao trepar sobre…

Ao trepar sobre
o tampo do
armário de conservas
o gato pôs
cuidadosamente
primeiro a pata
a direita da frente
depois a de trás
dentro
do vaso
de flores
vazio

William Carlos Williams
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Era um gato

era um gato no telhado
aqueles olhos que luziam
o fantasma no meu quarto
tênue sombra enluarada
sombra de silêncio
eco da madrugada

era um gato e caminhava
atento a tudo que havia
a um insone na janela
que à sua sombra acudia
lentamente foi embora
lentamente raia o dia

era um gato e um poeta
um do outro estranhos
um do outro fantasmas
um do outro silêncios
aquele agora quer cama
este agora quer braços

Fred Matos
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Oh, black Persian cat
Oh, black Persian cat
Oh, black Persian cat!
Was not your life
already cursed with offspring?
We took you for rest to that old
Yankee farm,—so lonely
and with so many field mice
in the long grass—
and you return to us
in this condition—!
Oh, black Persian cat.

William Carlos Williams
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A Céu Aberto

Vi esta tarde no mercado de Trajano
gatos enroscados às esculturas
de Richard Serra
pareciam despojos encontrados
no mesmo mar escuro
alheios à perda do mundo
e também, também isso

Não contam uma história
diria que ninguém os chamou
sinais uns dos outros - esculturas e gatos -
um conhecimento descobrem
de quanto vemos apenas

José Tolentino de Mendonça, De Igual Para Igual,

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Ocos todos os sons

E se a tarde assim fica
nevoenta parada
e de mim ausente não encontro
urdidas teiazinhas
que me seguram aos dias,
pode acontecer
que sarça escura ou fogo me cerquem
o olhar. Porque é tarde.
E ondula descompassado o ar que expiro
e são ocos todos os sons.

Então ela vem, asas, a gata
de borboleta no fundo
da pupila de ouro, vem
cravando no silêncio opaco os passos
e entra
no círculo da minha aflição.

Nenhum abrigo. Mas o toque
na palma da mão perdida -

E o vento sopra para longe as nuvens
e da noite ladram ao longe os cães.

Soledade Santos

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Gato

Chama-se Luís o gato do terceiro
e é companheiro de um mestre filósofo.
Em madrugadas altas há por vezes sobressalto,
quando o bichano acorda mal disposto.
O professor, sábio também
em jogos de paciência, acalma
o animal e já o mima. Trata-se,
vendo bem, de outra ciência,
tão difícil de conseguir como
um estudo de Pessoa. Chama-se Agostinho
da Silva, o do terceiro, e tem um gato
com quem, à vontade, discreteia.
Luís, discípulo, ronrona baixinho.
Tudo vai bem, assim, no sete desta rua.

Eduardo Guerra Carneiro, Contra a Corrente, 1988

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O gato
Com um lindo salto
Leve e seguro
O gato passa
Do chão ao muro
Logo mudando
De opinião
Passa de novo
Do muro ao chão
E pisa e passa
Cuidadoso, de mansinho
Pega e corre, silencioso
Atrás de um pobre passarinho
E logo pára
Como assombrado
Depois dispara
Pula de lado
Se num novelo
Fica enroscado
Ouriça o pêlo, mal-humorado
Um preguiçoso é o que ele é
E gosta muito de cafuné

Com um lindo salto
Leve e seguro
O gato passa
Do chão ao muro
Logo mudando
De opinião
Passa de novo
Do muro ao chão
E pisa e passa
Cuidadoso, de mansinho
Pega e corre, silencioso
Atrás de um pobre passarinho
E logo pára
Como assombrado
Depois dispara
Pula de lado
E quando à noite vem a fadiga
Toma seu banho
Passando a língua pela barriga
Vinicius de Moraes / Toquinho / Bacalov
© Tonga Editora Musical LTDA
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Elegiazinha

Gatos não morrem de verdade:
eles apenas se reintegram
no ronronar da eternidade.

Gatos jamais morrem de fato:
suas almas saem de fininho
atrás de alguma alma de rato.

Gatos não morrem: sua fictícia
morte não passa de uma forma
mais refinada de preguiça.

Gatos não morrem: rumo a um nível
mais alto é que eles, galho a galho,
sobem numa árvore invisível.

Gatos não morrem: mais preciso
— se somem — é dizer que foram
rasgar sofás no paraíso

e dormirão lá, depois do ônus
de sete bem vividas vidas,
seus sete merecidos sonos.

Nelson Ascher -Parte alguma.

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Um cão, eu sempre disse, é prosa;
Um gato é um poema.

Jean Burden, In Assinar a Pele

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Jovem gato

Inquieta cauda
traça arabescos
felinos no ar.

Ricardo Mainieri

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Gatos no Aterro do Flamengo


Mirando o mar
gatos pescam
com os olhos.

Ricardo Mainieri


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Os gatos entraram na minha casa


Os gatos entraram na minha casa
pela porta dissimulada da noite
e não tinham pressa nem sono.
Eram gatos do tamanho de sombras
e trouxeram-me a paz felina
das auroras inquietas, exaltadas.
Nunca mais partiram. Sonharam,
em teias de fumo, a minha evasão
de menino à solta nos livros,
e nunca me disseram aquilo que aprenderam,
sonhando o que sonharam. Imóveis.

José Jorge Letria - in: O Livro dos Gatos

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Senhor de ti, avanças, cauto

Senhor de ti, avanças, cauto,
meio agastado e sempre a disfarçar
o que afinal não tens e eu te empresto,
ó gato, pesadelo lento e lesto,
fofo no pelo, frio no olhar!

alexandre o'neill


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Gato que brincas na rua


gato que brincas na rua
como se fosse na cama
invejo a sorte que é tua
porque nem sorte se chama

fernando pessoa


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Encontrado no blogue sous les pavés la plage

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O gato



Dentro de meu cérebro vai e vem
Como se a sua casa fosse
Um belo gato, forte e doce.
Quando ele mia, mal há quem

Lhe ouça o fugaz timbre discreto;
Seja serena ou iracunda,
Soa-lhe a voz rica e profunda.
Eis seu encanto mais secreto.

Essa voz que se infiltra e afina
Em meu recesso mais umbroso
Me enche qual verso numeroso
E como um filtro me ilumina.

Os piores males ela embala
E os êxtases todos oferta;
Para enunciar a frase certa,
Nâo é com palavras que fala.

Não, não existe arco que morda
Meu coração, nobre instrumento,
Ou faça com tal sentimento
Vibrar-lhe a mais sensível corda

Qua a tua voz, ó isterioso
Gato de místico veludo,
Em que, como num anjo, tudo
É tão sutil quanto gracioso!

II

De seu pêlo louro e tostado
Um perfume tão doce flui
Que uma noite, ao mimá-lo, fui
Por seu aroma embalsamado.

É a alma familiar da morada;
Ele julga, inspira, demarca
Tudo o que seu império abarca;
Será um deus, será uma fada?

Se neste gato que me é caro,
Como por ímãs atraídos,
Os olhos ponho comovidos
E ali comigo me deparo,

Vejo aturdido a luz que lhe arde
Nas pálidas pupilas ralas,
Claros faróis, vivas opalas,
Que me contemplam sem alarde.

Baudelaire

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O gato

Vem cá, meu gato, aqui no meu regaço;
Guarda essas garras devagar,
E nos teus belos olhos de ágata e aço
Deixa-me aos poucos mergulhar.

Quando meus dedos cobrem de carícias
Tua cabeça e o dócil torso,
E minha mão se embriaga das delícias
De afagar-te o elétrico dorso,

Em sonho a vejo. Seu olhar, profundo
Como o teu, amável felino,
Qual dardo dilacera e fere fundo,

E, dos pés à cabeça, um fino
Ar sutil, um perfume que envnena
Envolvem-lhe a carne morena.

Baudelaire



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Os gatos

Os amantes febris e os sábios solitários
Amam de modo igual, na idade da razão,
Os doces e orgulhosos gatos da mansão,
Que como eles têm frio e cismam sedentários.

Amigos da volúpia e devotos da ciência,
Buscam eles o horror da treva e dops mistérios;
Tomara-os Érebo* por seus corcéis funéreos,
Se a submissão pudera opor-lhes à insolência.

Sonhando eles assumem a nobrre atitude
Da esfinge que no além se funde à infinitude,
Como ao sabor de um sonho que jamais termina;

Os rins em mágicas fagulhas se distendem,
E partículas de ouro, como areia fina,
Suas graves pupilas vagamente acendem.

* Érebos, entidade preexistente à criação do universo, filho de Caos e irmão de Nyx (a Noite), símbolo literário da morte.

Baudelaire
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Gato
Vai e vem. O passo
deixa no soalho,
menos que um traço,
um fio escasso
de ócio e borralho.

Clara é a pupila
onde não chove
e que, tranquila,
no ermo cintila,
mas não se move

A pose é exata
a de uma esfinge
da cauda à pata,
nada o arrebata
ou mesmo o atinge.

Aguça o dente,
as unhas lima:
brinca, pressente
e, de repente,
o pulo em cima.

A voz é como
sussurro de onda;
infla-lhe o pomo,
túmido gomo
que se arredonda.

Lúdico e astuto,
eis sua sorte:
alheio a tudo,
ilha sem susto
o tempo e a morte.

Ivan Junqueira
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A un gato

No son más silenciosos los espejos
ni más furtiva el alba aventurera;
eres, bajo la luna, esa pantera
que nos es dado divisar de lejos.
Por obra indescifrable de un decreto
divino, te buscamos vanamente;
más remoto que el Ganges y el poniente,
tuya es la soledad, tuyo el secreto.
Tu lomo condesciende a la morosa
caricia de mi mano. Has admitido,
desde esa eternidad que ya es olvido,
el amor de la mano recelosa.
En otro tiempo estás. Eres el dueño
de un ámbito cerrado como un sueño.


Jorge Luis Borges

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Oda al gato
Los animales fueron
imperfectos,
largos de cola, tristes
de cabeza.
Poco a poco se fueron
componiendo,
haciéndose paisaje,
adquiriendo lunares, gracia, vuelo.
El gato,
sólo el gato
apareció completo
y orgulloso:
nació completamente terminado,
camina solo y sabe lo que quiere.

El hombre quiere ser pescado y pájaro,
la serpiente quisiera tener alas,
el perro es un león desorientado,
el ingeniero quiere ser poeta,
la mosca estudia para golondrina,
el poeta trata de imitar la mosca,
pero el gato
quiere ser sólo gato
y todo gato es gato
desde bigote a cola,
desde presentimiento a rata viva,
desde la noche hasta sus ojos de oro.

No hay unidad
como él,
no tienen
la luna ni la flor
tal contextura:
es una sola cosa
como el sol o el topacio,
y la elástica línea en su contorno
firme y sutil es como
la línea de la proa de una nave.
Sus ojos amarillos
dejaron una sola
ranura
para echar las monedas de la noche.

Oh pequeño
emperador sin orbe,
conquistador sin patria,
mínimo tigre de salón, nupcial
sultán del cielo
de las tejas eróticas,
el viento del amor
en la intemperie
reclamas
cuando pasas
y posas
cuatro pies delicados
en el suelo,
oliendo,
desconfiando
de todo lo terrestre,
porque todo
es inmundo
para el inmaculado pie del gato.

Oh fiera independiente
de la casa, arrogante
vestigio de la noche,
perezoso, gimnástico
y ajeno,
profundísimo gato,
policía secreta
de las habitaciones,
insignia
de un
desaparecido terciopelo,
seguramente no hay
enigma
en tu manera,
tal vez no eres misterio,
todo el mundo te sabe y perteneces
al habitante menos misterioso,
tal vez todos lo creen,
todos se creen dueños,
propietarios, tíos
de gatos, compañeros,
colegas,
discípulos o amigos
de su gato.

Yo no.
Yo no suscribo.
Yo no conozco al gato.
Todo lo sé, la vida y su archipiélago,
el mar y la ciudad incalculable,
la botánica,
el gineceo con sus extravíos,
el por y el menos de la matemática,
los embudos volcánicos del mundo,
la cáscara irreal del cocodrilo,
la bondad ignorada del bombero,
el atavismo azul del sacerdote,
pero no puedo descifrar un gato.
Mi razón resbaló en su indiferencia,
sus ojos tienen números de oro.
Pablo Neruda
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[O gato de Camões]

Banville afirma que quando
a vela de Camões se apagava
o poeta continuava a escrever o poema
à luz dos olhos do seu gato.

Gaston Bachelard, epígrafe em Assinar a Pele, Antologia de Poesia Contemporânea sobre Gatos, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001
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História de um sofrido filho da mãe

uma noite chegou à minha porta, pele e ossos molhado batido
assustado,
era um gato branco estrábico rabão.
deixei-o entrar alimentei-o foi mais um em casa
deu-me a sua carinhosa confiança,
até que um dia um fulano,
estacionado na minha garagem,
passou com o automóvel por cima do gato estrábico rabão.
levei imediatamente o que dele restava a um veterinário que disse:
"não há muito a fazer... dê-lhe estes comprimidos... tem a espinha
partida, mas já antes foi partida e de algum modo
conseguiu sarar, se sobreviver não voltará a andar, olhe
estas radiografias, deram-lhe um tiro,
veja estes pontos escuros,
são chumbadas enquistadas... além disso já teve cauda
e alguém lha cortou...»
levei o gato para casa, era um verão quente um
dos mais quentes em décadas, pus o gato no chão do quarto de banho,
dei-lhe água, os comprimidos, não queria comer nem beber,
eu mergulhava o dedo em água, humedecia-lhe a boca
e falava com ele, nesse verão não saí, passei muitos dias
no quarto de banho falando com o gato, acariciando-o suavemente,
ele olhava-me com aqueles olhos que se cruzavam
e os dias passavam.
uma tarde fez o seu primeiro movimento
arrastando-se com as patas dianteiras
(as traseiras não queriam mover-se)
chegou até ao canto onde lhe tinha preparado a cama
arrastou-se mais um pouco e deixou-se cair nela.
foi como o som de um clarim pressagiando a vitória possível,
ensurdecendo o quarto de banho, espalhando-se pela cidade.
então contei ao gato que também eu tinha passado um mau bocado, não tão mau como o dele,
mas bastante mau...
uma manhã ergueu-se, ficou imóvel sobre as patas e logo caiu de costas, olhava-me mansamente.
"és capaz" disse-lhe.
ele insistiu, levantava-se e tornava a cair, uma vez e outra,
finalmente
deu uns poucos passos, era a viva imagem de um bêbado
as patas recusavam-se a obedecer-lhe, caiu outra vez, descansou
e de novo se ergueu.
conhecem o resto da história: está melhor que nunca.
estrábico, quase sem dentes, mas recuperou a graça e aquele olhar
pícaro nunca o abandonou.
algumas vezes fazem-me entrevistas, querem saber
da minha vida, da minha literatura,
embriago-me, levanto nos braços o meu gato
estrábico, ferido com bala, atropelado duas vezes, rabão
e digo: "olhem, olhem isto!!!"

eles não entendem nada, insisto, nada de nada, perguntam
algo como: "reconhece influências de Celine?"
"não", ergo o meu gato, "por causa do que acontece, coisas
como esta, como esta!!!"

sacudo o meu gato, levo-o
para a luz enevoada de fumo e álcool, está sereno, ele sabe...

e nesse momento a entrevista termina.
às vezes sinto-me orgulhoso quando vejo as fotografias,
lá estou eu, lá está o meu gato, fomos
fotografados juntos,
também ele sabe que são ninharias, mas de algum modo ajudam-nos.


Charles Bukowski
tradução da arcadajade, a partir da versão espanhola de Esteban More

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Provérbios com gatos

É difícil apanhar um gato negro num compartimento escuro,
sobretudo quando ele não está lá.
(provérbio chinês)


Quando já comeu o toucinho,
de pouco serve à gata caçar.
(provérbio alemão)

Gato com luvas não caça ratos.
(provérbio espanhol)

Que culpa tem a gata se a camponesa está louca?
(provérbio italiano)


A toda a gata o seu janeiro.
(provérbio italiano)


Gato velho nunca se queima.
(provérbio gaélico)


Gato velho não brinca com a presa.
(provérbio inglês)


«Hoje é jejum», diz o gato
ao ver que não alcança o toucinho.
(provérbio turco)


Quem aos gatos ama, mulher bela terá.
(provérbio medieval)
Quando o gato come neve, boa razão há-de ter.
(provérbio russo)


em Para os Amantes de Gatos, Editorial Inquérito, 1995
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Morreu Dom Fuas

Morreu Dom Fuas, gato meu sete anos,
pomposo, realengo, solene, quase inacessível,
na sua elegância desdenhosa de angorá gigante,
cendrado e branco, de opulento pêlo,
e cauda com pluma de elmo legendário.

Contudo, às suas horas, e quando acontecia
que parava em casa mais que por comer
ou visitar-nos condescentemente como
a duquesa de Guermantes recebendo Swann,
tinha instantes de ternura toda abraços,
que logo interrompia retornando
aos seus paços de império, ao seu olhar ducal.

Nunca reconheceu nenhuma outra existência
de gato que não ele nesta casa. Os mais
todos se retiravam para que ele passasse
ou para que ele comesse, eles ficando
ao longe contemplando a majestade
que jamais miou para pedir que fosse.

Andava adoentado, encrenca sobre encrenca,
e via-se no corpo e no opulento pêlo,
como no ar da cabeça quanta humilhação
o sofrimento impunha a tanto orgulho imenso.
Por fim, foi internado americanamente,
no hospital do veterinário. E lá,
por notícia telefónica, sozinho, solitário,
como qualquer humano aqui, sabemos que morreu.

A única diferença, e é melhor assim,
em tão terror ambiente de ser-se o animal que morre
foi não vê-lo mais. Porque ou nós morremos,
como dantes se morria em público,
a família toda, ou toda a corte à volta, ou
é melhor que se não veja no rosto de qualquer
- mesmo ou sobretudo no de um gato que era tão orgulhoso em vida -
não só a marca desse morrer sozinho de que se morre sempre
mesmo que o mundo inteiro faça companhia,
mas de outra solidão tecnocrata, higiénica
que nos suprime transformados em
amável voz profissional de uma secretária solícita.

Dom Fuas, tu morreste. Não direi
que a terra te seja leve, porque é mais que certo
não teres sequer ter tido o privilégio
de dormir para sempre na terra que escavavas
com arte cuidadosa para nela pores
as fezes de existir que tão bem tapavas,
como gato educado e nobre natural.
Nestes anos de tanta morte à minha volta,
também a tua conta. Nenhum mais
terá o teu nome como outros tantos gatos
antes de ti foram já Dom Fuas.

Jorge de Sena
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Epigrama funerário

A gata doméstica que comeu a minha perdiz
espera viver em nossa casa?
Não, querida perdiz, não te deixarei morrer sem honras,
imolarei sobre ti o teu inimigo.
Porque a tua alma vive atormentada enquanto eu
não fizer tudo o que Pirro fez sobre o túmulo de Aquiles.

Agátias, o Escolástico, em Do Mundo Grego Outro Sol
selecção, tradução e notas de Albano Martins, Ed. Asa, Lisboa, 2001

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O Gato

O meu não come ratos, não gosta. Se apanha algum, é para brincar com ele. Quando brincou tudo, poupa-lhe a vida, e vai sonhar noutra parte, o inocente, sentado no caracol do seu rabo, a cabeça fechada como um punho. Mas, por causa das garras, o rato morreu.

Jules Renard,
tradução de Jorge de Sena em Poesia do Século XX, Ed. Asa, 3ª ed, Porto, 2003


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Teoria da Composição: a pequena gata (3)

Olhos atentos tentando entender,
absolutamente parada, a cabeça tensa,
as orelhas espetadas como se pudesse ouvir
as palavras que eu ia escrevendo,
a pequena gata seguia cada um dos meus gestos
como se fossem incertos insectos
correndo inquietos sobre o papel.
Os gatos velhos e os homens jovens
não se interessam por coisas fúteis como
palavras escrevendo e gatos atentos,
têm pouco tempo, sobretudo por dentro.

Manuel António Pina, Os Livros, Assírio & Alvim, Lisboa, 2003
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Pensão Familiar


Jardim da pensãozinha burguesa.

Gatos espapaçados ao sol.
A tiririca sitia os canteiros chatos.
O sol acaba de crestar os gosmilhos que murcharam.
Os girassóis E as dálias, rechonchudas, plebéias, dominicais.
Um gatinho faz pipi.
Com gestos de garçom de restaurant-Palace
Encobre cuidadosamente a mijadinha.
Sai vibrando com elegância a patinha direita:
- É a única criatura fina na pensãozinha burguesa.

Petrópolis, 1925

Manuel Bandeira, Estrela da Vida Inteira, Editora Nova Fronteira, 31ª ed, Rio de Janeiro, 1993
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Zoologia: O gato
Um gato, em casa, sozinho, sobe
à janela para que, da rua, o
vejam.

O sol bate nos vidros e
aquece o gato que, imóvel,
parece um objecto.

Fica assim para que o
invejem - indiferente
mesmo que o chamem.

Por não sei que privilégio,
os gatos conhecem
a eternidade.

Nuno Júdice, Assinando a Pele, Assírio & Alvim, 2001
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Nocturno com gatos


gritam os gatos todo o serão estridências
de cio que não pressionam mas despertam
a minha gata levantamos as duas o olhar
eu do livro ela do sono redondo e aspiramos
uníssonas correntes de ar gotículas nas vidraças
não sei que cheiros lhe fazem fremir o negro nariz
fecho as cortinas espevito o lume domesticado
volto ao livro de vez em quando
os gritos trespassam a noite e pela incisão
começam a entrar cães de inverno e potros azuis

Soledade Santos

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O Gato do Dinho

Branco com face em lágrima
meigo, frágil e tristonho
acordava a bicharada
felpudo gato do Dinho.

Tristonho miado ecoa
pela janela da rua
chamando sem parar lua
sente saudades do Dono.

Toda manhã já é isso
sabem os peixes e o cão
sabe a Jurema do 411
sabe até carteiro João.

O gato dorme com Dinho
mas manhã logo lhe lembra
que ficará ali sozinho
às seis meia mia para o sol.

Na cama rola o menino
do lençol de branca areia
do lençol de branca lua
com gato de fino trato.

O gato guarda-lhe porta
para que não entre sombra
de algum sono muito ruim
se preciso dava-lhe unhas.

Um dia entrou na casa só
com passos tão leves de ave
com passos tão grave manhã
não que era mesmo o ladrão!

O menino de olhos de rua
olha bem aquele gato
tão branco tão branca lua
tem uma idéia qual a sua!

Foi-se o gato na mão
no saco miava socorro
sabe a Jurema do 411
sabe até carteiro João.

Quando chegou o menino
cadê o gatinho do Dinho
menino ficou muito sério
com olhos de ver a rua.

Botaram anúncio no radio,
chamar gato não mais miava
hoje toca alto no morro,
tinha virado tamborim.

Eric Ponty

in http://karacapoesia.blogspot.com/






[Gato]

a minha sombra
eclipsa a luz

gato
esgueiro-me
lenta e
silenciosamente
entre as negras
gretas
da noite

perenemente úmidas
as palavras são
sóis
a sós.


Fred Matos

Parábola da casa
1
A espaços, fico zangado.
Gato sem casa,
bufo a quem passa.
Se alguém olha,
deixo que passe
e penso baixinho:
vai ali a minha casa.
Mas este hábito,
o de dizer não.

2
Há três crianças a brincar e um gato enrolado, um olho aberto,
outro fechado.
Os meninos não se olham, mas brincam como é dado.
Ao gato sabe bem como se estivesse em casa.

Zeferino Silva - in http://vozromazeira.blogspot.com/


B.PROSAS







Prosas com animais
(contos, lendas, ...)

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Provérbios
Gado de bico, nunca deixou ninguém rico.
Burro velho não aprende línguas

Burro velho não tem andadura

A cavalo velho não se olha o dente.

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A Cabra do Senhor Séguin

Ao Sr. Pierre Gringoire, poeta lírico em Paris.
Tu serás sempre o mesmo, meu pobre Gringoire! Como! Oferecem-te um lugar de cronista em um bom jornal de Paris, e tu tens a petulância de recusar… Mas, olha-te, infortunado rapaz! Olha essa blusa esburacada, esses calções esfarrapados, essa face magra que apregoa a fome. Eis aí, portanto, aonde te conduziu a paixão das belas rimas! Eis o que te valeram dez anos de leais serviços nas páginas do senhor Apolo… Enfim, não tens vergonha?
Faze-te então cronista, imbecil! Faze-te cronista! Ganharás facilmente belos escudos, terás teu talher no Brébant e poderás exibir-te, nos dias de estréia, com uma pluma nova no barrete.
Não? Não queres? Pretendes permanecer livre à tua maneira, até o fim… Pois bem, escuta um pouco a história da cabra do Sr. Séguin. Verás o que se ganha em querer viver livre.
O Sr. Séguin nunca tivera sorte com suas cabras; elas arrebentavam a corda, fugiam para a montanha, e lá no alto o lobo as comia. Nem os carinhos do dono, nem o medo do lobo, nada as retinha. Eram, parece, cabras independentes, querendo a qualquer preço a amplidão e a liberdade. O estimável Sr. Séguin, que nada compreendia do caráter dos seus animais, estava consternado e dizia:
— É o fim. As cabras se aborrecem em minha casa. Não conservarei nenhuma delas.
Entretanto ele não se desencorajava, e depois de perder seis cabras do mesmo modo, comprou uma sétima; somente, desta vez, teve o cuidado de a prender enquanto muito nova, para que ela se habituasse melhor a permanecer em sua casa.
Ah! Gringoire, como era bonita a cabrinha do Sr. Séguin! Como era linda, com seus olhos doces, sua barbicha de sub-oficial, seus cascos negros e luzentes, seus cornos zebrados e seus longos pelos brancos, que a cobriam como uma sobrepeliz! Era quase tão encantadora quanto o cabritinho de Esmeralda — lembras-te, Gringoire? E, ademais, dócil, carinhosa, deixando-se ordenhar sem se agitar, sem meter os pés no balde. Um amor de cabrinha…
O Sr. Séguin tinha atrás de casa um curral cercado de plantas espinhentas. Foi lá que ele pôs a nova pensionista. Ligou-a com uma canga de madeira ao mais belo sítio do prado, tendo o cuidado de lhe deixar bastante corda. De vez em quando ia ver se ela se encontrava bem. A cabra se achava muito feliz, e pastava a erva de tão boa vontade, que o Sr. Séguin estava encantado.
— Enfim — pensava o pobre homem — eis aí uma que não se aborrecerá em minha casa!
O Sr. Séguin se enganava; a cabra aborreceu-se. Um dia ela disse para si mesma, contemplando a montanha:
— Como se deve estar bem lá em cima! Que prazer saltar entre a vegetação, sem esta maldita corda que esfola o pescoço da gente!… É bom para o burro ou para o boi, pastar num cercado!… As cabras necessitam de largueza.
A partir desse momento a erva do cercado lhe pareceu insípida. Sobreveio-lhe o tédio. Emagreceu. O leite diminuiu. Dava dó vê-la arrastar a corda o dia inteiro, a cabeça voltada para o lado da montanha, a venta aberta, fazendo “mé”… tristemente.
O Sr. Séguin notou logo que a cabra tinha qualquer coisa, mas não sabia o que era. Uma manhã, quando acabava de a ordenhar, a cabra voltou-se e lhe disse no seu patoá:
— Escute, Sr. Séguin, eu enlangueço em sua casa, deixe-me ir à montanha.
— Ah! Meu Deus!… Ela também! — gritou o sr. Séguin estupefato.
E com o susto deixou tombar o balde. Depois, sentando-se na relva ao lado de sua cabra:
— Como, Branquinha, queres deixar-me!
— Sim, Sr. Séguin.
— É pasto que te falta aqui?
— Oh! não, Sr. Séguin.
— Talvez estejas amarrada a distância curta demais. Queres que te alongue a corda?
— Não vale a pena, Sr. Séguin.
— Então, que é que te falta? Que queres?
— Quero ir para a montanha, Sr. Séguin.
— Mas, desgraçada, tu não sabes que há o lobo na montanha? Que farás quando ele vier?
— Dar-lhe-ei chifradas, Sr. Séguin.
— O lobo pouco se importa com teus chifres. Ele comeu cabritas muito mais chifrudas do que tu… Sabes da pobre velha Renaude, que estava aqui no ano passado, uma senhora cabra forte e malvada como um bode? Ela lutou com o lobo a noite inteira… depois, pela manhã, o lobo a comeu.
— Ai dela! Pobre Renaude!… Isso não importa, Sr. Séguin, deixe-me ir à montanha.
— Divina Providência!… — disse o Sr. Séguin. — Que acontece às minhas cabras? Outra mais que o lobo vai comer… Pois bem, não… Eu te salvarei, a teu pesar, velhaca! E, porque receio que rompas a corda, vou fechar-te no estábulo, e ali ficarás sempre.
Em seguida o Sr. Séguin levou a cabra para um estábulo todo escuro, cuja porta fechou com duas voltas da chave. Infelizmente, esquecera-se da janela; e, mal virou as costas, a pequena se foi…
Tu ris, Gringoire? Santo Deus! Acredito; tu és do partido das cabras, e estás contra o bom Sr. Séguin… Vamos ver se rirás todo o tempo.
Quando a cabra branca chegou à montanha, foi um encantamento geral. Jamais os velhos pinheiros tinham visto nada assim tão lindo. Receberam-na como a uma pequena rainha. Os castanheiros se curvavam até o chão, para acariciá-la com a ponta de seus ramos. As giestas douradas se abriam à sua passagem e a cheiravam quanto podiam. A montanha inteira fez-lhe festa.
Imagina, Gringoire, como nossa cabra era feliz! Nada de corda, nada de canga… nada que a impedisse de pular, de pastar à sua maneira… E quanta erva havia lá! Até lhe ultrapassava os chifres, meu caro!… E que erva! Saborosa, fina, recortada, feita de mil plantas… Era muito diferente do capim do cercado. E as flores, então!… Grandes campânulas azuis, digitalis de púrpura, com longos cálices, toda uma floresta de flores selvagens, transbordando sucos capitosos.
A cabra branca, meio farta, espojava-se lá dentro com as pernas para o ar e rolava ao longo das encostas, de cambulhada com as folhas caídas e as castanhas. Em seguida saltava repentinamente e endireitava-se sobre as patas. Upa! Ei-la que partia, cabeça para a frente, através de cerrados e capoeiras, ora sobre um pico, ora no fundo de uma ravina, no alto, embaixo, por toda parte. Dir-se-ia haver dez cabras do Sr. Séguin na montanha.
É que a Branquinha não tinha medo de nada.
Ela franqueava de um salto grandes torrentes, que lhe atiravam à passagem poeira úmida de espuma. Então, toda gotejante, ia estender-se em alguma rocha plana e se fazia secar ao sol. Uma vez, avançando à beira de um planalto, com uma flor de citisa entre os dentes, vislumbrou lá embaixo, bem lá embaixo, na planície, a casa do Sr. Séguin com o cercado atrás. Isso a fez rir até as lágrimas.
— Como é pequeno! — disse ela. — Como pude permanecer lá dentro?
Pobrezinha! Ao ver-se empoleirada tão alto, acreditava-se pelo menos tão grande quanto o mundo.
Em resumo, foi uma linda jornada para a cabra do Sr. Séguin. Pelo meio do dia, correndo à direita e à esquerda, ela caiu no meio de um bando de gamos que despedaçavam, para comer, uma vinha selvagem. Nossa pequena corredora, de roupa branca, causou sensação. Deram-lhe o melhor lugar na vinha, e todos esses senhores foram muito galantes… Parece mesmo — isto deve ficar entre nós, Gringoire — que um jovem gamo de pelagem negra teve a sorte de agradar a Branquinha. Os dois namorados se perderam entre o bosque, durante uma ou duas horas; e se quiseres saber o que disseram, vai perguntar às fontes tagarelas que correm invisíveis sob o musgo.
De repente o vento esfriou. A montanha se tornou violeta. Era a noite…
— Já! — disse a cabrinha, e se deteve muito espantada.
Embaixo, os campos estavam inundados de bruma. O cercado do Sr. Séguin desaparecia na penumbra, e da casinhola só se via o teto com um pouco de fumaça. Ela ouviu as campainhas de um rebanho que se recolhia, e sentiu a alma muito triste. Um corujão que voltava ao ninho a esfrolou com as asas, ao passar. Ela estremeceu… depois foi um brado na montanha:
— Uuuuu! Uuuuu!
Ela pensou no lobo; o dia inteiro a louca não tinha pensado nisso… No mesmo instante, uma trompa soou bem longe, no vale. Era esse bom Sr. Séguin, que tentava um último esforço.
— Uuuu! Uuuu! Uuuu! — fazia o lobo.
— Volta! Volta! — gritava a trompa.
Branquinha teve vontade de voltar, mas lembrando-se da canga, da corda, da cerca do curral, pensou que já agora não mais se podia afazer àquela vida, e que era melhor ficar.
A trompa não soou mais…
A cabra ouviu atrás de si um rumor de folhas. Voltou-se, e viu na sombra duas orelhas curtas, muito direitas, com dois olhos que reluziam… Era o lobo.
Enorme, imóvel, sentado sobre os quartos traseiros, estava ali, olhando para a cabrinha branca e saboreando-a por antecipação. Como sabia que a comeria, o lobo não se apressava; somente, quando ela se voltou, ele se pôs a rir maldosamente.
— Ah! Ah! A cabrinha do Sr. Séguin! — e passou a grossa língua vermelha sobre as beiçolas de cogumelo.
Branquinha sentiu-se perdida… Por instantes, lembrando-se da história da velha Renaude, que se tinha batido a noite toda para ser devorada pela manhã, disse para si mesma que talvez fosse melhor deixar-se comer imediatamente. Depois, tendo mudado de idéia, caiu em guarda, a cabeça baixa e o chifre para a frente, como corajosa cabra do Sr. Séguin que era. Não que tivesse esperança de matar o lobo — as cabras não matam o lobo — mas unicamente para ver se poderia resistir tanto tempo quanto a Renaude…
Então o monstro avançou, e os pequenos chifres começaram a dança.
Ah! a valente cabrinha, como lutava com todas as forças! Mais de dez vezes (eu não minto, Gringoire) ela forçou o lobo a recuar para retomar alento. Durante essas tréguas de um minuto, a gulosa colhia às pressas um brotinho da erva querida, depois retornava ao combate, com a boca cheia. Isso durou toda a noite. De quando em quando a cabra do Sr. Séguin olhava as estrelas dançarem no céu claro, e dizia consigo mesma:
— Oh! tomara que eu resista até a madrugada…
Uma após outra, as estrelas se extinguiram. Branquinha redobrou as chifradas, o lobo as dentadas… Um pálido clarão apareceu no horizonte… O canto enrouquecido do galo subiu de uma fazenda.
— Enfim! — disse o pobre animal, que não esperava senão pelo dia para morrer.
E ela estendeu-se por terra em sua bela pelagem branca, toda malhada de sangue… Aí o lobo se atirou sobre a cabrinha e a devorou.
Adeus, Gringoire!
A história que ouviste não é um conto de minha invenção. Se algum dia vieres à Provença, nossos caseiros te falarão freqüentemente da cabro de moussu Séguin, que se battègue touto la neui emé loup, e piei, lou loup la mangé — A cabra do Sr. Séguin, que se bateu toda a noite com o lobo, e depois, pela manhã, o lobo a devorou.
Ouves-me bem, Gringoire?
Alphonse Daudet
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Conto

Um fazendeiro coleccionava cavalos e só lhe faltava uma determinada raça.
Um dia ele descobriu que o seu vizinho tinha este determinado cavalo e atazanou-o até conseguir comprá-lo.
Um mês depois o cavalo adoeceu, e ele chamou o veterinário:
- Bem, o seu cavalo está com uma virose, é preciso tomar este medicamento durante 3 dias, no terceiro dia eu retornarei e, caso ele não esteja melhor, será necessário sacrificá-lo. Neste momento, o porco escutava toda a conversa.
No dia seguinte deram o medicamento e foram embora. O porco aproximou-se do cavalo e disse:
- Força amigo! Levanta daí, senão serás sacrificado!!!
No segundo dia, deram o medicamento e foram embora. O porco aproximou-se do cavalo e disse:
- Vamos lá amigão, levanta-te senão vais morrer!
- Vamos lá, eu ajudo-te a levantar... Upa! Um, dois, três.
No terceiro dia deram o medicamento e o veterinário disse:
- Infelizmente, vamos ter que sacrificá-lo amanhã, pois a virose pode contaminar os outros cavalos.
- Quando foram embora, o porco aproximou-se do cavalo e disse:
- É agora ou nunca, levanta-te depressa! Coragem! Upa! Upa! Isso, devagar! Óptimo, vamos, um, dois, três, agora mais depressa, vá... Fantástico! Corre, corre mais! Upa! Upa! Upa!!! Tu venceste, Campeão!!!
Então, de repente o dono chegou, viu o cavalo a correr no campo e gritou:
- Milagre!!! O cavalo melhorou. Isso merece uma festa... "Vamos matar o porco!!!"
Sem indicação de autoria
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Sempre gostei de gatos.

Sempre gostei de gatos.
O meu petit nom deve-se a eles.
Quando era petiz roubava todos os gatos que encontrava nas ruas.
Levava-os para casa, ficava feliz.
Minha Mãe safava-se deles...inventava uma cena para justificar o seu desaparecimento.
Na esperança de que um dia eles ficassem para sempre, eu insistia em trazer mais gatos e, não bastando este acrescento de família, até crianças da rua, que saltavam e bricavam comigo em estórias inventadas de bibe. Era um sufoco, concordo, para minha Mãe que tinha que alimentar a gataria e a miudagem toda acampada lá em casa.
O processo repetia-se e os longos sermões, para me demoverem de tais comportamentos. Tudo isso entrava por um ouvido e saía por outro ( deve ser por isso que a Natureza nos dotou com dois ouvidos, e não três, nem um.)
Certa ocasião levei uma sova.
Desta vez jurei a mim mesma que havia de recompensar-me de tal injustiça.
Passaram alguns anos, tinha à volta de quinze para dezasseis primaveras,decidi desaparecer de casa, para dar uma lição mestra a minha Mãe.
(Nessa altura já tinha entrado para a Faculdade, e valeu-me uma Madre - era assim que se chamava à Freira Mestra das Residências para universitárias - a quem propus a minha estadia ali, e o pagamento dela após o meu primeiro trabalho, o que foi integralmente cumprido.)
Agora percebo porque os gatos fazem parte de mim, da minha rua, do meu prédio, da minha cidade, do mundo.
Hoje dedico-me a outras tarefas...



maria azenha
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O Rouxinol e a Rosa
- Ela disse que dançaria comigo se eu lhe levasse rosas vermelhas – exclamou o Estudante – mas não vejo nenhuma rosa vermelha no jardim.
Por entre as folhas, do seu ninho, no carvalho, o Rouxinol o ouviu e, vendo-o ficou admirado...
- Não há nenhuma rosa vermelha no jardim! – repetiu o Estudante, com os lindos olhos cheios de lágrimas. – Ah! Como depende a felicidade de pequeninas coisas! Já li tudo quanto os sábios escreveram. A filosofia não tem segredos para mim e, contudo, a falta de uma rosa vermelha é a desgraça da minha vida.
E eis, afinal, um verdadeiro apaixonado! – disse o Rouxinol. Gorjeei-o noite após noite, sem conhecê-lo no entanto; noite após noite falei dele às estrelas, e agora o vejo... O cabelo é negro como a flor do jacinto e os lábios vermelhos como a rosa que deseja; mas o amor pôs-lhe na face a palidez do marfim e o sofrimento marcou-lhe a fronte.
- Amanhã à noite o Príncipe dá um baile, murmurou o Estudante, e a minha amada se encontrará entre os convidados. Se levar uma rosa vermelha, dançará comigo até a madrugada. Se levar-lhe uma rosa vermelha, hei de tê-la nos braços, sentir-lhe a cabeça no meu ombro e a sua mão presa a minha. Não há rosa vermelha em meu jardim... e ficarei só; ela apenas passará por mim... Passará por mim... e meu coração se despedaçará.
- Eis, na verdade, um apaixonado... – pensou o Rouxinol. – Do que eu canto, ele sofre. Aflige-o o que me alegra. Grande maravilha, na verdade, o Amar! Mais precioso que esmeraldas e mais caro que opalas finas. Pérolas e granada não podem comprá-lo, nem se oferece nos mercados. Mercadores não o vendem, nem o conferem em balanças a peso de ouro.
- Os músicos da galeria – prosseguiu o Estudante – tocarão nos seus instrumentos de corda e, ao som de harpas e violinos, minha amada dançará. Dançará tão leve, tão ágil, que seus pés mal tocarão o assoalho e os cortesãos, com suas roupas de cores vivas, reunir-se-ão em torno dela. Mas comigo não bailará, porque não tenho uma rosa vermelha para dar-lhe... – e atirando-se à relva, ocultou nas mãos o rosto e chorou.
- Por que está chorando? – perguntou um pequeno lagarto ao passar por ele, correndo, de rabinho levantado.
- É mesmo! Por que será? – Indagou uma borboleta que perseguia um raio de sol.
- Por que? – sussurrou uma linda margarida à sua vizinha.
- Chora por causa de uma rosa vermelha, - informou o Rouxinol.
- Por causa de uma rosa vermelha? – exclamaram – Que coisa ridícula! E o lagarto, que era um tanto irônico, riu à vontade.
Mas o Rouxinol compreendeu a angústia do Estudante e, silencioso, no carvalho, pôs-se a meditar sobre o mistério do Amor.
Subitamente, abriu as asas pardas e voou.
Cortou, como uma sombra, a alameda, e como uma sombra, atravessou o jardim.
Ao centro do relvado, erguia-se uma roseira. Ele a viu. Voou para ela e posou num galho.
- Dá-me uma rosa vermelha – pediu – e eu cantarei para ti a minha mais bela canção!
- Minhas rosas são brancas; tão brancas quanto a espuma do mar, mais brancas que a neve das montanhas. Procura minha irmã, a que enlaça o velho relógio-de-sol. Talvez te ceda o que desejas.
Então o Rouxinol voou para a roseira, que enlaçava o velho relógio-de-sol.
- Dá-me uma rosa vermelha – pediu – e eu te cantarei minha canção mais linda.
A roseira sacudiu-se levemente.
- Minhas rosas são amarelas como a cabeleira dourada das sereias que repousam em tronos de âmbar, e mais amarelas que o asfódelo que cobre os campos antes da chegada de quem o vai ceifar. Procura a minha irmã, a que vive sob a janela do Estudante. Talvez te possa ajudar.
O Rouxinol então, dirigiu o voo para a roseira que crescia sob a janela do Estudante.
- Dá-me uma rosa vermelha – pediu - e eu te cantarei minha canção mais linda.
A roseira sacudiu-se levemente.
- Minhas rosas são vermelhas, tão vermelhas quanto os pés das pombas, mais vermelhas que os grandes leques de coral que oscilam nos abismos profundos do oceano. Contudo, o inverno regelou-me até as veias, a geada queimou-me os botões e a tempestade quebrou-me os galhos. Não darei rosas este ano.
- Eu só quero uma rosa vermelha, repetiu o Rouxinol, - uma só rosa vermelha. Não haverá meio de obtê-la?
- Há, respondeu a Roseira, mas é meio tão terrível que não ouso revelar-te.
- Dize. Não tenho medo.
- Se queres uma rosa vermelha, explicou a roseira, hás de fazê-la de música, ao luar, tingi-la com o sangue de teu coração. Tens de cantar para mim com o peito junto a um espinho. Cantarás toda a noite para mim e o espinho deve ferir teu coração e teu sangue de vida deve infiltrar-se em minhas veias e tornar-se meu.
- A morte é um preço exagerado para uma rosa vermelha – exclamou o Rouxinol – e a Vida é preciosa... É tão bom voar, através da mata verde e contemplar o sol em seu esplendor dourado e a lua em seu carro de pérola...O aroma do espinheiro é suave, e suaves são as campânulas ocultas no vale, e as urzes tremulantes na colina. Mas o Amor é melhor que a Vida. E que vale o coração de um pássaro comparado ao coração de um homem?
Abriu as asas pardas para o voo e ergueu-se no ar. Passou pelo jardim como uma sombra e, como uma sombra, atravessou a alameda.
O Estudante estava deitado na relva, no mesmo ponto em que o deixara, com os lindos olhos inundados de lágrimas.
- Rejubila-te – gritou-lhe o Rouxinol – Rejubila-te; terás a tua rosa vermelha. Vou fazê-la de música, ao luar. O sangue de meu coração a tingirá. Em conseqüência só te peço que sejas sempre verdadeiro amante, porque o Amor é mais sábio do que a Filosofia, embora sábia; mais poderoso que o poder, embora poderosa. Tens as asas da cor da chama e da cor da chama tem o corpo. Há doçura de mel em teus braços e seu hálito lembra o incenso.
O Estudante ergueu a cabeça e escutou. Nada pode entender, porém, do que dizia o Rouxinol, pois sabia apenas o que está escrito nos livros.
Mas o Carvalho entendeu e ficou melancólico, porque amava muito o pássaro que construíra ninho em seus ramos.
- Canta-me um derradeiro canto – segredou-lhe – sentir-me-ei tão só depois da tua partida.
Então o Rouxinol cantou para o Carvalho, e sua voz fazia lembrar a água a borbulhar de uma jarra de prata.
Quando o canto finalizou, o Estudante levantou-se, tirando do bolso um caderninho de notas e um lápis.
- Tem classe, não se pode negar – disse consigo – atravessando a alameda. Mas terá sentimento? Não creio. É igual a maioria dos artistas. Só estilo, sinceridade nenhuma. Incapaz de sacrificar-se por outrem. Só mensa e cantar e bem sabemos quanto a Arte é egoísta. No entanto, é forçoso confessar, possui maravilhosas notas na voz. Que pena não terem significação alguma, nem realizarem nada realmente bom!
Foi para o quarto, deitou-se e, pensando na amada, adormeceu.
Quando a lua refulgia no céu, o Rouxinol voou para a Roseira e apoiou o peito contra o espinho. Cantou a noite inteira e o espinho mais e mais enterrou-se-lhe no peito, e o sangue de sua vida lentamente se escoou...
Primeiro descreveu o nascimento do amor no coração de um menino e uma menina; e, no mais alto galho da Roseira, uma flor desabrochou, extraordinária, pétala por pétala, acompanhando um canto e outro canto. Era pálida, a princípio, qual a névoa que esconde o rio, pálida qual os pés da manhã e as asas da alvorada. Como sombra de rosa num espelho de prata, como sombra de rosa em água de lagoa era a rosa que apareceu no mais alto galho da Roseira.
Mas a Roseira pediu ao Rouxinol que se unisse mais ao espinho. – Mais ainda, Rouxinol, - exigiu a Roseira, - senão o dia raia antes que eu acabe a rosa.
O Rouxinol então jungiu-se mais ao espinho, e cada vez mais profundo lhe saía o canto porque ele cantava o nascer da paixão na alma do homem e da mulher.
E tênue nuance rosa nacarou as pétalas, igual ao rubor que invade a face do noivo quando beija a noiva nos lábios.
Mas o espinho não lhe alcançava ainda o coração e o coração da flor continuava branco – pois somente o coração de um Rouxinol pode avermelhar o coração de rosa.
- Mais ainda, Rouxinol, - clamou a Roseira – raiar o dia antes que eu finalize a rosa.
E o Rouxinol, desesperado, calcou-se mais forte no espinho, e o espinho lhe feriu o coração, e uma punhalada de dor o traspassou.
Amarga, amarga lhe foi a angústia e cada vez mais fremente foi o canto, porque ele cantava o amor que a morte aperfeiçoa, o amor que não morre nem no túmulo.
E a rosa maravilhosa tornou-se purpurina como a rosa do céu oriental. Suas pétalas ficaram rubras e, vermelho como um rubi, seu coração.
Mas a voz do Rouxinol se foi enfraquecendo, as pequeninas asas começaram a estremecer e uma névoa cobriu-lhe o olhar, o canto tornou-se débil e ele sentiu qualquer coisa apertar-lhe a garganta.
Então, arrancou do peito o derradeiro grito musical.
Ouviu-o a lua branca, esqueceu-se da Aurora e permaneceu no céu.
A rosa vermelha o ouviu, e trêmula de emoção, abriu-se à aragem fria da manhã. Transportou-o o Eco, à sua caverna purpurina, nos montes, despertando os pastores de seus sonhos. E ele levou-os através dos caniços dos rios e eles transmitiram sua mensagem ao mar.
- Olha! Olha! Exclamou a Roseira. – A rosa está pronta, agora.
Ao meio dia o Estudante abriu a janela e olhou.
- Que sorte! – disse – Uma rosa vermelha! Nunca vi rosa igual em toda a minha vida. É tão linda que tem certamente um nome complicado em latim. E curvou-se para colhê-la.
Depois, pondo o chapéu, correu à casa do professor.
- Disseste que dançarias comigo se eu te trouxesse uma rosa vermelha, - lembrou-se o Estudante. – Aqui tens a rosa mais vermelha de todo o mundo. Hás de usá-la, hoje a noite, sobre ao coração, e quando dançarmos juntos ela te dirá quanto te amo.
Mas a moça franziu a testa.
- Talvez não combine bem com o meu vestido, disse. Ademais, o sobrinho do Camareiro mandou-me jóias verdadeiras, e jóias, todos sabem, custam muito mais do que flores...
- És muito ingrata! – exclamou o Estudante, zangado. E atirou a rosa a sarjeta, onde a roda de um carro a esmagou.
- Sou ingrata? E o senhor não passa de um grosseirão. E, afinal de contas, quem és? Um simples estudante... não acredito que tenhas fivelas de prata, nos sapatos, como as tem o sobrinho do camareiro... – e a moça levantou-se e entrou em casa.
- Que coisa imbecil, o Amor! – Resmungou o estudante, afastando-se. – Nem vale a utilidade da Lógica, porque não prova nada, está sempre prometendo o que não cumpre e fazendo acreditar em mentiras. Nada tem de prático e como neste século o que vale é a prática, volto à Filosofia e vou estudar metafísica.
Retornou ao quarto, tirou da estante um livro empoeirado e pôs-se a ler...
Oscar Wilde
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A Fábula do macaco e do peixe

Um macaco passeava-se à beira de um rio, quando viu um peixe dentro de água. Como não conhecia aquele animal, pensou que estava a afogar-se. Conseguiu apanhá-lo e ficou muito contente quando o viu aos pulos, preso nos seus dedos, achando que aqueles saltos eram sinais de uma grande alegria por ter sido salvo. Pouco depois, quando o peixe parou de se mexer e o macaco percebeu que estava morto, comentou - que pena eu não ter chegado mais cedo!
Mia Couto

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o gato

"Would you tell me, please, which way I ought to go from here?" "That depends a good deal on where you want to get to", said the Cat. "I don't much care where" said Alice. "Then it doesn't matter which way you go", said the Cat. "so long as I get somewhere", Alice added as an explanation. "Oh, you're sure to do that", said the Cat, "if you only walk long enough."

lewis carroll

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a gata

a Cat was looking at a King, as permitted by the proverb. "well," said the monarch, observing her inspection of the royal person, "how do you like me?" "I can imagine a King," said the Cat, "whom I should like better." "For example?" "The King of the Mice." The sovereign was so pleased with the wit of the reply that he gave her permission to scratch his Prime Minister's eyes out.
ambrose bierce
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O búfalo
Mas era primavera. Até o leão lambeu a testa glabra da leoa. Os dois animais louros. A mulher desviou os olhos da jaula, onde só o cheiro quente lembrava a carnificina que ela viera buscar no Jardim Zoológico. Depois o leão passeou enjubado e tranqüilo, e a leoa lentamente reconstituiu sobre as patas estendidas a cabeça de uma esfinge. “Mas isso é amor, é amor de novo”, revoltou-se a mulher tentando encontrar-se com o próprio ódio mas era primavera e dois leões se tinham amado. Com os punhos nos bolsos do casaco, olhou em torno de si, rodeada pelas jaulas, enjaulada pelas jaulas fechadas. Continuou a andar. Os olhos estavam tão concentrados na procura que sua vista às vezes se escurecia num sono, e então ela se refazia como na frescura de uma cova.
Mas a girafa era uma virgem de tranças recém-cortadas. Com a tola inocência do que é grande e leve e sem culpa. A mulher do casaco marrom desviou os olhos, doente, doente. Sem conseguir — diante da aérea girafa pousada, diante daquele silencioso pássaro sem asas — sem conseguir encontrar dentro de si o ponto pior de sua doença, o ponto mais doente, o ponto de ódio, ela que fora ao Jardim Zoológico para adoecer. Mas não diante da girafa que mais era paisagem que um ente. Não diante daquela carne que se distraíra em altura e distância, a girafa quase verde. Procurou outros animais, tentava aprender com eles a odiar. O hipopótamo, o hipopótamo úmido. O rolo roliço de carne, carne redonda e muda esperando outra carne roliça e muda. Não. Pois havia tal amor humilde em se manter apenas carne, tal doce martírio em não saber pensar. Mas era primavera, e, apertando o punho no bolso do casaco, ela mataria aqueles macacos em levitação pela jaula, macacos felizes como ervas, macacos se entrepulando suaves, a macaca com olhar resignado de amor, e a outra macaca dando de mamar. Ela os mataria com quinze secas balas: os dentes da mulher se apertaram até o maxilar doer. A nudez dos macacos. O mundo que não via perigo em ser nu. Ela mataria a nudez dos macacos. Um macaco também a olhou segurando as grades, os braços descarnados abertos em crucifixo, o peito pelado exposto sem orgulho. Mas não era no peito que ela mataria, era entre os olhos do macaco que ela mataria, era entre aqueles olhos que a olhavam sem pestanejar. De repente a mulher desviou o rosto: é que os olhos do macaco tinham um véu branco gelatinoso cobrindo a pupila, nos olhos a doçura da doença, era um macaco velho — a mulher desviou o rosto, trancando entre os dentes um sentimento que ela não viera buscar, apressou os passos, ainda voltou a cabeça espantada para o macaco de braços abertos: ele continuava a olhar para a frente. “Oh não, não isso”, pensou. E enquanto fugia, disse: “Deus, me ensine somente a odiar.”
“Eu te odeio”, disse ela para um homem cujo crime único era o de não amá-la. “Eu te odeio”, disse muito apressada. Mas não sabia sequer como se fazia. Como cavar na terra até encontrar a água negra, como abrir passagem na terra dura e chegar jamais a si mesma? Andou pelo Jardim Zoológico entre mães e crianças. Mas o elefante suportava o próprio peso. Aquele elefante inteiro a quem fora dado com uma simples pata esmagar. Mas que não esmagava. Aquela potência que no entanto se deixaria docilmente conduzir a um circo, elefante de crianças. E os olhos, numa bondade de velho, presos dentro da grande carne herdada. O elefante oriental. Também a primavera oriental, e tudo nascendo, tudo escorrendo pelo riacho.
A mulher então experimentou o camelo. O camelo em trapos, corcunda, mastigando a si próprio, entregue ao processo de conhecer a comida. Ela se sentiu fraca e cansada, há dois dias mal comia. Os grandes cílios empoeirados do camelo sobre olhos que se tinham dedicado à paciência de um artesanato interno. A paciência, a paciência, a paciência, só isso ela encontrava na primavera ao vento. Lágrimas encheram os olhos da mulher, lágrimas que não correram, presas dentro da paciência de sua carne herdada. Somente o cheiro de poeira do camelo vinha de encontro ao que ela viera: ao ódio seco, não a lágrimas. Aproximou-se das barras do cercado, aspirou o pó daquele tapete velho onde sangue cinzento circulava, procurou a tepidez impura, o prazer percorreu suas costas até o mal-estar, mas não ainda o mal-estar que ela viera buscar. No estômago contraiu-se em cólica de fome a vontade de matar. Mas não o camelo de estopa. “Oh Deus, quem será meu par neste mundo?”
Então foi sozinha ter a sua violência. No pequeno parque de diversões do Jardim Zoológico esperou meditativa na fila de namorados pela sua vez de se sentar no carro da montanha-russa. E ali estava agora sentada, quieta no casaco marrom. O banco ainda parado, a maquinaria da montanha-russa ainda parada. Separada de todos no seu banco, parecia estar sentada numa Igreja. Os olhos baixos viam o chão entre os trilhos. O chão onde simplesmente por amor — amor, amor, não o amor! — onde por puro amor nasciam entre os trilhos ervas de um verde leve tão tonto que a fez desviar os olhos em suplício de tentação. A brisa arrepiou-lhe os cabelos da nuca, ela estremeceu recusando, em tentação recusando, sempre tão mais fácil amar.
Mas de repente foi aquele vôo de vísceras, aquela parada de um coração que se surpreende no ar, aquele espanto, a fúria vitoriosa com que o banco a precipitava no nada e imediatamente a soerguia como uma boneca de saia levantada, o profundo ressentimento com que ela se tornou mecânica, o corpo automaticamente alegre — o grito das namoradas! — seu olhar ferido pela grande surpresa, a ofensa, “faziam dela o que queriam”, a grande ofensa — o grito das namoradas! — a enorme perplexidade de estar espasmodicamente brincando faziam dela o que queriam, de repente sua candura exposta. Quantos minutos? os minutos de um grito prolongado de trem na curva, e a alegria de um novo mergulho no ar insultando-a com um pontapé, ela dançando descompassada ao vento, dançando apressada, quisesse ou não quisesse o corpo sacudia-se como o de quem ri, aquela sensação de morte às gargalhadas, morte sem aviso de quem não rasgou antes os papéis da gaveta, não a morte dos outros, a sua, sempre a sua. Ela que poderia ter aproveitado o grito dos outros para dar seu urro de lamento, ela se esqueceu, ela só teve espanto.
E agora este silêncio também súbito. Estavam de volta à terra, a maquinaria de novo inteiramente parada.
Pálida, jogada fora de uma Igreja, olhou a terra imóvel de onde partira e aonde de novo fora entregue. Ajeitou as saias com recato. Não olhava para ninguém. Contrita como no dia em que no meio de todo o mundo tudo o que tinha na bolsa caíra no chão e tudo o que tivera valor enquanto secreto na bolsa, ao ser exposto na poeira da rua, revelara a mesquinharia de uma vida íntima de precauções: pó de arroz, recibo, caneta-tinteiro, ela recolhendo no meio-fio os andaimes de sua vida. Levantou-se do banco estonteada como se estivesse se sacudindo de um atropelamento. Embora ninguém prestasse atenção, alisou de novo a saia, fazia o possível para que não percebessem que estava fraca e difamada, protegia com altivez os ossos quebrados. Mas o céu lhe rodava no estômago vazio; a terra, que subia e descia a seus olhos, ficava por momentos distante, a terra que é sempre tão difícil. Por um momento a mulher quis, num cansaço de choro mudo, estender a mão para a terra difícil: sua mão se estendeu como a de um aleijado pedindo. Mas como se tivesse engolido o vácuo, o coração surpreendido. Só isso? Só isto. Da violência, só isto.
Recomeçou a andar em direção aos bichos. O quebranto da montanha-russa deixara-a suave. Não conseguiu ir muito adiante: teve que apoiar a testa na grade de uma jaula, exausta, a respiração curta e leve. De dentro da jaula o quati olhou-a. Ela o olhou. Nenhuma palavra trocada. Nunca poderia odiar o quati que no silêncio de um corpo indagante a olhava. Perturbada, desviou os olhos da ingenuidade do quati. O quati curioso lhe fazendo uma pergunta como uma criança pergunta. E ela desviando os olhos, escondendo dele a sua missão mortal. A testa estava tão encostada às grades que por um instante lhe pareceu que ela estava enjaulada e que um quati livre a examinava.
A jaula era sempre do lado onde ela estava: deu um gemido que pareceu vir da sola dos pés. Depois outro gemido.
Então, nascida do ventre, de novo subiu, implorante, em onda vagarosa, a vontade de matar — seus olhos molharam-se gratos e negros numa quase felicidade, não era o ódio ainda, por enquanto apenas a vontade atormentada de ódio como um desejo, a promessa do desabrochamento cruel, um tormento como de amor, a vontade de ódio se prometendo sagrado sangue e triunfo, a fêmea rejeitada espiritualizara-se na grande esperança. Mas onde, onde encontrar o animal que lhe ensinasse a ter o seu próprio ódio? o ódio que lhe pertencia por direito mas que em dor ela não alcançava? Onde aprender a odiar para não morrer de amor? E com quem? O mundo de primavera, o mundo das bestas que na primavera se cristianizam em patas que arranham mas não dói… oh não mais esse mundo! não mais esse perfume, não esse arfar cansado, não mais esse perdão em tudo o que um dia vai morrer como se fora para dar-se. Nunca o perdão, se aquela mulher perdoasse mais uma vez, uma só vez que fosse, sua vida estaria perdida — deu um gemido áspero e curto, o quati sobressaltou-se — enjaulada olhou em torno de si, e como não era pessoa em quem prestassem atenção, encolheu-se como uma velha assassina solitária, uma criança passou correndo sem vê-la.
Recomeçou então a andar, agora pequena, dura, os punhos de novo fortificados nos bolsos, a assassina incógnita, e tudo estava preso no seu peito. No peito que só sabia resignar-se, que só sabia suportar, só sabia pedir perdão, só sabia perdoar, que só aprendera a ter a doçura da infelicidade, e só aprendera a amar, a amar, a amar. Imaginar que talvez nunca experimentasse o ódio de que sempre fora feito o seu perdão, fez seu coração gemer sem pudor, ela começou a andar tão depressa que parecia ter encontrado um súbito destino. Quase corria, os sapatos a desequilibravam, e davam-lhe uma fragilidade de corpo que de novo a reduzia a fêmea de presa, os passos tomaram mecanicamente o desespero implorante dos delicados, ela que não passava de uma delicada. Mas, pudesse tirar os sapatos, poderia evitar a alegria de andar descalça? Como não amar o chão em que se pisa? Gemeu de novo, parou diante das barras de um cercado, encostou o rosto quente no enferrujado frio do ferro. De olhos profundamente fechados procurava enterrar a cara entre a dureza das grades, a cara tentava uma passagem impossível entre barras estreitas, assim como antes vira o macaco recém-nascido buscar na cegueira da fome o peito da macaca. Um conforto passageiro veio-lhe do modo como as grades pareceram odiá-la opondo-lhe a resistência de um ferro gelado.
Abriu os olhos devagar. Os olhos vindos de sua própria escuridão nada viram na desmaiada luz da tarde. Ficou respirando. Aos poucos recomeçou a enxergar, aos poucos as formas foram se solidificando, ela cansada, esmagada pela doçura de um cansaço. Sua cabeça ergueu-se em indagação para as árvores de brotos nascendo, os olhos viram as pequenas nuvens brancas. Sem esperança, ouviu a leveza de um riacho. Abaixou de novo a cabeça e ficou olhando o búfalo ao longe. Dentro de um casaco marrom, respirando sem interesse, ninguém interessado nela, ela não interessada em ninguém.
Certa paz enfim. A brisa mexendo nos cabelos da testa como nos de pessoa recém-morta, de testa ainda suada. Olhando com isenção aquele grande terreno seco rodeado de grades altas, o terreno do búfalo. O búfalo negro estava imóvel no fundo do terreno. Depois passeou ao longe com os quadris estreitos, os quadris concentrados. O pescoço mais grosso que as ilhargas contraídas. Visto de frente, a grande cabeça mais larga que o corpo impedia a visão do resto do corpo, como uma cabeça decepada. E na cabeça os cornos. De longe ele passeava devagar com seu torso. Era um búfalo negro. Tão preto que à distancia a cara não tinha traços. Sobre o negror a alvura erguida dos cornos.
A mulher talvez fosse embora mas o silêncio era bom no cair da tarde.
E no silêncio do cercado, os passos vagarosos, a poeira seca sob os cascos secos. De longe, no seu calmo passeio, o búfalo negro olhou-a um instante. No instante seguinte, a mulher de novo viu apenas o duro músculo do corpo. Talvez não a tivesse olhado. Não podia saber, porque das trevas da cabeça ela só distinguia os contornos. Mas de novo ele pareceu tê-la visto ou sentido. A mulher aprumou um pouco a cabeça, recuou-a ligeiramente em desconfiança. Mantendo o corpo imóvel, a cabeça recuada, ela esperou.
E mais uma vez o búfalo pareceu notá-la.
Como se ela não tivesse suportado sentir o que sentira, desviou subitamente o rosto e olhou uma árvore. Seu coração não bateu no peito, o coração batia oco entre o estômago e os intestinos. O búfalo deu outra volta lenta. A poeira. A mulher apertou os dentes, o rosto todo doeu um pouco.
O búfalo com o torso preto. No entardecer luminoso era um corpo enegrecido de tranqüila raiva, a mulher suspirou devagar. Uma coisa branca espalhara-se dentro dela, branca como papel, fraca como papel, intensa como uma brancura. A morte zumbia nos seus ouvidos. Novos passos do búfalo trouxeram-na a si mesma e, em novo longo suspiro, ela voltou à tona. Não sabia onde estivera. Estava de pé, muito débil, emergida daquela coisa branca e remota onde estivera. E de onde olhou de novo o búfalo.
O búfalo agora maior. O búfalo negro. Ah, disse de repente com uma dor. O búfalo de costas para ela, imóvel. O rosto esbranquiçado da mulher não sabia como chamá-lo. Ah! disse provocando-o. Ah! disse ela. Seu rosto estava coberto de mortal brancura, o rosto subitamente emagrecido era de pureza e veneração. Ah! instigou-o com os dentes apertados. Mas de costas para ela, o búfalo inteiramente imóvel.
Apanhou uma pedra no chão e jogou para dentro do cercado. A imobilidade do torso, mais negra ainda se aquietou: a pedra rolou inútil.
Ah! disse sacudindo as barras. Aquela coisa branca se espalhava dentro dela, viscosa como uma saliva. O búfalo de costas.
Ah, disse. Mas dessa vez porque dentro dela escorria enfim um primeiro fio de sangue negro. O primeiro instante foi de dor. Como se para que escorresse este sangue se tivesse contraído o mundo. Ficou parada, ouvindo pingar como numa grota aquele primeiro óleo amargo, a fêmea desprezada. Sua força ainda estava presa entre barras, mas uma coisa incompreensível e quente, enfim incompreensível, acontecia, uma coisa como uma alegria sentida na boca. Então o búfalo voltou-se para ela.
O búfalo voltou-se, imobilizou-se, e à distância encarou-a.
Eu te amo, disse ela então com ódio para o homem cujo grande crime impunível era o de não querê-la. Eu te odeio, disse implorando amor ao búfalo.
Enfim provocado, o grande búfalo aproximou-se sem pressa.
Ele se aproximava, a poeira erguia-se. A mulher esperou de braços pendidos ao longo do casaco. Devagar ele se aproximava. Ela não recuou um só passo. Até que ele chegou às grades e ali parou. Lá estavam o búfalo e a mulher, frente à frente. Ela não olhou a cara, nem a boca, nem os cornos. Olhou seus olhos.
E os olhos do búfalo, os olhos olharam seus olhos. E uma palidez tão funda foi trocada que a mulher se entorpeceu dormente. De pé, em sono profundo. Olhos pequenos e vermelhos a olhavam. Os olhos do búfalo. A mulher tonteou surpreendida, lentamente meneava a cabeça. O búfalo calmo. Lentamente a mulher meneava a cabeça, espantada com o ódio com que o búfalo, tranqüilo de ódio, a olhava. Quase inocentada, meneando uma cabeça incrédula, a boca entreaberta. Inocente, curiosa, entrando cada vez mais fundo dentro daqueles olhos que sem pressa a fitavam, ingênua, num suspiro de sono, sem querer nem poder fugir, presa ao mútuo assassinato. Presa como se sua mão se tivesse grudado para sempre ao punhal que ela mesma cravara. Presa, enquanto escorregava enfeitiçada ao longo das grades. Em tão lenta vertigem que antes do corpo baquear macio a mulher viu o céu inteiro e um búfalo.
Clarice Lispector
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Olha o escaravelho
Olha, o escaravelho. Adora merda. Procria em merda. Transporta merda. É orgulhoso da merda que transporta. Eu também. Terei entrado na fase escaravelho, ou é apenas uma questão de idade?»

Manuel Cintra, citado em http://universosdesfeitos-insonia.blogspot.com/
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Platero
( 3 capítulos de «Platero e eu» de Juan Ramón Jiménez)

"Platero é pequeno, peludo, suave;tão macio,que se dir-se-ia todo de algodão,
que não tem ossos.Só os espelhos de azeviche dos seus olhos são duros como dois escaravelhos de cristal negro.
Deixo-o solto e vai para o prado,e acaricia levemente com o focinho,mal as roçando, as florinhas róseas,azuis-celestes e amarelas...Chamo -o docemente: "Platero!”,
e ele vem até mim num trote curto e alegre que parece rir,em não sei que guizalhar ideal...
Come o que lhe dou.Gosta das ltangerinas,das uvas moscatéis, todas de âmbar,dos figos roxos, com sua cristalina gota de mel...
É terno e mimoso como um menino, uma menina...;mas forte e seco como de pedra... Quando nele passo, aos domingos,pelas últimas ruelas da aldeia,os camponeses, vestidos de lavado e vagarosos, param a olhá-lo:
- Tem aço...
Tem aço.Aço e prata de luar, ao mesmo tempo."
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Amizade

Damo-nos bem. Eu deixo-o ir à vontade e ele leva-me sempre onde quero.
Platero sabe que, ao chegar ao pinheiro da Coroa, gosto de me aproximar do seu tronco, acariciá-lo, e olhar o céu através da sua enorme e clara copa; sabe que me deleita o carreiro que, entre a relva, leva à velha fonte; que é para mim uma festa ver o rio da colina dos pinheiros, evocadora de uma paisagem clássica. Como é certo adormecer sobre ele, o meu despertar abre-se sempre a um destes aprazíveis espectáculos.
Trato Platero como a um menino. Se o caminho se torna pedregoso e lhe peso um pouco, desço para aliviá-lo. Beijo-o, engano-o, faço-o zangar... Ele compreende que lhe quero, e não me guarda rancor. É tão igual a mim, que cheguei a crer que sonha os meus próprios sonhos.
Platero rendeu-se-me como uma adolescente apaixonada. Não protesta por nada. Sei que sou a sua felicidade. Até foge dos burros e dos homens...
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Asnografia


Leio num dicionário: "Asnografia: s. f.: diz-se, ironicamente, da descrição do asno."
Pobre asno! Tão bondoso, tão nobre, tão inteligente como és! Ironicamente… Porquê? Nem uma descrição séria mereces tu, cuja descrição exacta seria um conto de Primavera? Se ao homem que é bom deveriam chamar asno! Se ao asno que é mau deveriam chamar homem! Ironicamente… De ti, tão intelectual, amigo dos velhos e das crianças, dos regatos e das borboletas, do sol e dos cães, das flores e da lua, paciente e reflexivo, melancólico e amável, Marco Aurélio dos prados…
Platero, que sem dúvida compreende, olha-me fixamente com seus grandes olhos brilhantes, de uma serena firmeza, onde o sol brilha, diminuto e refulgente, num breve e convexo firmamento negro. Ai! Se a sua peluda cabeçorra idílica soubesse que eu lhe faço justiça, que eu sou melhor que esses homens que escrevem Dicionários, quase tão bom como ele!
E escrevi à margem do livro: "Asnografia: s. f.: deve dizer-se, com ironia, claro está!, da descrição do homem imbecil que escreve dicionários."
Juan Ramón Jiménez, "Platero e Eu".
Trad. de José Bento
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Morada

Os gatos tomam lugar na sua própria sombra de portas arrombadas. Descem dos telhados da suposição e trazem testemunhas arranhadas. Não se servem de mistérios, apenas são silenciosos.
As suas feridas ardem de tão sinceras, geradas numa velocidade incompreensível, irredutível.
Os gatos encontram-se com os olhos cheios de luz. Vivem como lanternas neste monumento inóspito, mausoléu de dias vagamente terrestres. Os gatos circulam como corpos transbordantes, porém guardam-se de dádivas fúteis em salas de espera.
A sedução de um gato é aceitar o papel de igual. Não admite truques.
Quando as casas propõem o seu espaço, os gatos acolhem-nas e são interiores a elas. Casa e gato precipitam-se para uma linguagem de movimentos bruscos e longos sonos de parede. Os gatos constroem-se à volta de um pequeno demónio, a única coisa que o céu tem para lhes dar é pássaros. A sua religião é despida de argumentos, conclui-se numa breve teoria do fascínio.
Os dias são gatos planetários para a nossa constituição. Somos felinos quando usamos concretamente a boca sobre uma matéria de desejo. Como o vento verga os cereais arrebatados, como a água se faz cair sobre a água, como a electricidade estoura uma lâmpada, como um automóvel atropela o outono, como homem e mulher se cruzam num terraço de cristais, como o fogo reclama a aparição de susto do espírito.
Não se pode conter uma fúria, virá um gato para a puxar fio a fio. Não se pode arredar um grito, virá um gato para o trepar até ao eco. Não se pode camuflar uma sirene, virá um gato para lançar sobre os telhados o alarme ensurdecedor da nossa arrepiada biologia.
E antes que o tempo felino nos cace entre os caixotes de cartão que deixamos a apodrecer no sótão da nossa natureza. E antes que o rato vil da prudência se sente a rir sobre o nosso cadáver perfumado.

Por Canto de Ossanha que morava aqui: http://www.cantodeossanha.blogspot.com/
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[Os gatos são palavras com pelo]

-"Os gatos são palavras com pêlo. Os gatos, como as palavras, rondam à volta dos humanos sem nunca se deixarem domesticar. É tão difícil meter um gato num cesto quando temos um trem para pegar do que ir à nossa memória caçar a palavra exata e convencê-la a tomar o seu lugar na página em branco. Palavras e gatos pertencem ambos à raça dos inefáveis."

Erik Orsenna
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O Cágado

Havia um homem que era muito senhor da sua vontade. Andava às vezes sozinho pelas estradas a passear. Por uma dessas vezes viu no meio da estrada um animal que parecia não vir a propósito — um cágado.

O homem era muito senhor da sua vontade, nunca tinha visto um cágado; contudo, agora estava a acreditar. Acercou-se mais e viu com os olhos da cara que aquilo era, na verdade, o tal cágado da zoologia.

O homem que era muito senhor da sua vontade ficou radiante, já tinha novidades para contar ao almoço, e deitou a correr para casa. A meio caminho pensou que a família era capaz de não aceitar a novidade por não trazer o cágado com ele, e parou de repente. Como era muito senhor da sua vontade, não poderia suportar que a família imaginasse que aquilo do cágado era história dele, e voltou atrás. suando chegou perto do tal sítio, o cágado, que já tinha desconfiado da primeira vez, enfiou buraco abaixo como quem não quer a coisa.

O homem que era muito senhor da sua vontade pôs-se a espreitar para dentro e depois de muito espreitar não conseguiu ver senão o que se pode ver para dentro dos buracos, isto é, muito escuro. Do cágado, nada. Meteu a mão com cautela e nada; a seguir até ao cotovelo e nada; por fim o braço todo e nada. Tinham sido experimentadas todas as cautelas e os recursos naturais de que um homem dispõe até ao comprimento do braço e nada.

Então foi buscar auxílio a uma vara compridíssima, que nem é habitual em varas haver assim tão compridas, enfiou-a pelo buraco abaixo, mas o cágado morava ainda muito mais lá para o fundo. Quando largou a vara, ela foi por ali abaixo, exatamente como uma vara perdida.

Depois de estudar novas maneiras, a ofensiva ficou de fato submetida a nova orientação. Havia um grande tanque de lavadeiras a dois passos e ao lado do tanque estava um bom balde dos maiores que há. Mergulhou o balde no tanque e, cheio até mais não, despejou-o inteiro para dentro do buraco do cágado. Um balde só já ele sabia que não bastava, nem dez, mas quando chegou a noventa e oito baldes e que já faltavam só dois para cem e que a água não havia meio de vir ao de cima, o homem que era muito senhor da sua vontade pôs-se a pensar em todas as espécies de buracos que possa haver.

— E se eu dissesse à minha família que tinha visto o cágado? - pensava para si o homem que era muito senhor da sua vontade. Mas não! Toda a gente pode pensar assim menos eu, que sou muito senhor da minha vontade.

O maldito sol também não ajudava nada. Talvez que fosse melhor não dizer nada do cágado ao almoço. A pensar se sim ou não, os passos dirigiam-se involuntariamente para as horas de almoçar.

— Já não se trata de eu ser um incompreendido com a história do cágado, não; agora trata-se apenas da minha força de vontade. É a minha força de vontade que está em prova, esta é a ocasião propícia, não percamos tempo! Nada de fraquezas!

Ao lado do buraco havia uma pá de ferro, destas dos trabalhadores rurais. Pegou na pá e pôs-se a desfazer o buraco. A primeira pazada de terra, a segunda, a terceira, e era uma maravilha contemplar aquela majestosa visibilidade que punha os nossos olhos em presença do mais eficaz testemunho da tenacidade, depois dos antigos. Na verdade, de cada vez que enfiava a pá na terra, com fé, com robustez, e sem outras intenções a mais, via-se perfeitamente que estava ali uma vontade inteira; e ainda que seja cientificamente impossível que a terra rachasse de cada vez que ele lhe metia a pá, contudo era indiscutivelmente esta a impressão que lhe dava. Ah, não! Não era um vulgar trabalhador rural. Via-se perfeitamente que era alguém muito senhor da sua vontade e que estava por ali por acaso, por imposição própria, contrafeito, por necessidade do espírito, por outras razões diferentes das dos trabalhadores rurais, no cumprimento de um dever, um dever importante, uma questão de vida ou de morte — a vontade.

Já estava na nonagésima pazada de terra; sem afrouxar, com o mesmo ímpeto da inicial, foi completamente indiferente por um almoço a menos. Fosse ou não por um cágado, a humanidade iria ver solidificada a vontade de um homem.

A mil metros de profundidade a pino, o homem que era muito senhor da sua vontade foi surpreendido por dolorosa dúvida — já não tinha nem a certeza se era a qüinquagésima milionésima octogésima quarta. Era impossível recomeçar, mais valia perder uma pazada.

Até ali não havia indícios nem da passagem da vara, da água ou do cágado. Tudo fazia crer que se tratava de um buraco supérfluo; contudo, o homem era muito senhor da sua vontade, sabia que tinha de haver-se de frente com todas as más impressões. De fato, se aquela tarefa não houvesse de ser árdua e difícil, também a vontade não podia resultar superlativamente dura e preciosa.

Todas as noções de tempo e de espaço, e as outras noções pelas quais um homem constata o quotidiano, foram todas uma por uma dispensadas de participar no esburacamento. Agora, que os músculos disciplinados num ritmo único estavam feitos ao que se quer pedir, eram desnecessários todos os raciocínios e outros arabescos cerebrais, não havia outra necessidade além da dos próprios músculos.

Umas vezes a terra era mais capaz de se deixar furar por causa das grandes camadas de areia e de lama; todavia, estas facilidades ficavam bem subtraídas quando acontecia ser a altura de atravessar uma dessas rochas gigantescas que há no subsolo. Sem incitamento nem estímulo possível por aquelas paragens, é absolutamente indispensável recordar a decisão com que o homem muito senhor da sua vontade pegou ao princípio na pá do trabalhador rural para justificarmos a intensidade e a duração desta perseverança. Inclusive, a própria descoberta do centro da Terra, que tão bem podia servir de regozijo ao que se aventura pelas entranhas do nosso planeta, passou infelizmente desapercebida ao homem que era muito senhor da sua vontade. O buraco do cágado era efetivamente interminável. Por mais que se avançasse, o buraco continuava ainda e sempre. Só assim se explica ser tão rara a presença de cágados à superfície devido à extensão dos corredores desde a porta da rua até aos aposentos propriamente ditos.

Entretanto, cá em cima na terra, a família do homem que era muito senhor da sua vontade, tendo começado por o ter dado por desaparecido, optara, por último, pelo luto carregado, não consentindo a entrada no quarto onde ele costumava dormir todas as noites.

Até que uma vez, quando ele já não acreditava no fim das covas, já não havia, de fato, mais continuação daquele buraco, parava exactamente ali, sem apoteose, sem comemoração, sem vitória, exactamente como um simples buraco de estrada onde se vê o fundo ao sol. Enfim, naquele sítio nem a revolta servia para nada.

Caindo em si, o homem que era muito senhor da sua vontade pediu-lhe decisões, novas decisões, outras; mas ali não havia nada a fazer, tinha esquecido tudo, estava despejado de todas as coisas, só lhe restava saber cavar com uma pá. Tinha, sobretudo, muito sono, lembrou-se da cama com lençóis, travesseiro e almofada fofa, tão longe! Maldita pá! 0 cágado! E deu com a pá com força no fundo da cova. Mas a pá safou-se-lhe das mãos e foi mais fundo do que ele supunha, deixando uma greta aberta por onde entrava uma coisa de que ele já se tinha esquecido há muito - a luz do sol. A primeira sensação foi de alegria, mas durou apenas três segundos, a segunda foi de assombro: teria na verdade furado a Terra de lado a lado?

Para se certificar alargou a greta com as unhas e espreitou para fora. Era um país estrangeiro; homens, mulheres, árvores, montes e casas tinham outras proporções diferentes das que ele tinha na memória. 0 sol também não era o mesmo, não era amarelo, era de cobre cheio de azebre e fazia barulho nos reflexos. Mas a sensação mais estranha ainda estava para vir: foi que, quando quis sair da cova, julgava que ficava em pé em cima do chão como os habitantes daquele país estrangeiro, mas a verdade é que a única maneira de poder ver as coisas naturalmente era pondo-se de pernas para o ar...

Como tinha muita sede, resolveu ir beber água ali ao pé e teve de ir de mãos no chão e o corpo a fazer o pino, porque de pé subia-lhe o sangue à cabeça. Então, começou a ver que não tinha nada a esperar daquele país onde nem sequer se falava com a boca, falava-se com o nariz.

Vieram-lhe de uma vez todas as saudades da casa, da família e do quarto de dormir. Felizmente estava aberto o caminho até casa, fora ele próprio quem o abrira com uma pá de ferro. Resolveu-se. Começou a andar o buraco todo ao contrário. Andou, andou, andou; subiu, subiu, subiu...

Quando chegou cá acima, ao lado do buraco estava uma coisa que não havia antigamente — o maior monte da Europa, feito por ele, aos poucochinhos, às pazadas de terra, uma por uma, até ficar enorme, colossal, sem querer, o maior monte da Europa.

Este monte não deixava ver nem a cidade onde estava a casa da família, nem a estrada que dava para a cidade, nem os arredores da cidade que faziam um belo panorama. O monte estava por cima disto tudo e de muito mais.

O homem que era muito senhor da sua vontade estava cansadíssimo por ter feito duas vezes o diâmetro da Terra. Apetecia-lhe dormir na sua querida cama, mas para isso era necessário tirar aquele monte maior da Europa, de cima da cidade, onde estava a casa da sua família. Então, foi buscar outra pá dos trabalhadores rurais e começou logo a desfazer o monte maior da Europa. Foi restituindo à Terra, uma por uma, todas as pazadas com que a tinha esburacado de lado a lado. Começavam já a aparecer as cruzes das torres, os telhados das casas, os cumes dos montes naturais, a casa da sua família, muita gente suja de terra, por ter estado soterrada, outros que ficaram aleijados, e o resto como dantes.

O homem que era muito senhor da sua vontade já podia entrar em casa para descansar, mas quis mais, quis restituir à Terra todas as pazadas, todas. Faltavam poucas, algumas dúzias apenas. Já agora valia a pena fazer tudo bem até ao fim. Quando já era a última pazada de terra que ele ia meter no buraco, portanto a primeira que ele tinha tirado ao princípio, reparou que o torrão estava a mexer por si, sem ninguém lhe tocar; curioso, quis ver porque era — era o cágado.

Almada Negreiros
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Os defeitos dos peixes / Os grandes comem os pequenos
(…) A primeira coisa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande. (…) Olhai, peixes, lá do mar para a terra. Não, não: não é isso o que vos digo. Vós virais os olhos para os matos e para o sertão? Para cá, para cá: para a cidade é que haveis de olhar. Cuidais que só os Tapuias se comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os brancos. Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão-de comer e como se hão-de comer.
Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e comê-lo. Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os acredores; comem-no os oficiais dos órfãos e os dos defuntos e ausentes; come-o o médico, que o curou ou ajudou a morrer; come-o o sangrador que lhe tirou o sangue; come-o a mesma mulher, que de má vontade lhe dá para mortalha o lençol mais velho da casa, come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que cantando o levam a enterrar; enfim, ainda o pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra. Já se os homens se comeram somente depois de mortos, parece que era menos horror e menos matéria de sentimento. Mas para que conheçais a que chega a vossa crueldade, considerai, peixes, que também os homens se comem vivos assim como vós. (…) Vede um homem desses que andam perseguidos de pleitos ou acusados de crimes, e olhai quantos o estão comendo. Come-o o meirinho, come-o o carcereiro, come-o o escrivão, come-o o solicitador, come-o o advogado, come-o o inquiridor, come-o a testemunha, come-o o julgador, e ainda não está sentenciado, já está comido. São piores os homens que os corvos. O triste que foi à forca, não o comem os corvos senão depois de executado e morto; e o que anda em juízo, ainda não está executado nem sentenciado, e já está comido.
(…) A diferença que há entre o pão e os outros comeres, é que para a carne há dias de carne, e para o peixe dias de peixe, e para as frutas diferentes meses no ano; porém o pão é comer de todos os dias, que sempre e continuadamente se come: e isto é o que padecem os pequenos. São o pão quotidiano dos grandes; e assim como o pão se come com tudo, assim com tudo e em tudo são comidos os miseráveis pequenos, não tendo nem fazendo ofício em que os não carreguem, em que os não multem, em que os não defraudem, em que os não comam, traguem e devorem… Parece-vos bem isto, peixes? Representa -se -me que com o movimento das cabeças estais todos dizendo que não, e com olhardes uns para os outros, vos estais admirando e pasmando de que entre os homens haja tal injustiça e maldade! Pois isto mesmo é o que vós fazeis. Os maiores comeis os pequenos; e os muito grandes não só os comem um por um, senão os cardumes inteiros, e isto continuamente sem diferença de tempos, não só de dia, senão também de noite, às claras e às escuras, como também fazem os homens. Se cuidais, porventura, que estas injustiças entre vós se toleram e passam sem castigo, enganais-vos. Assim como Deus as castiga nos homens, assim também por seu modo as castiga em vós. Os mais velhos, que me ouvis e estais presentes, bem vistes neste Estado, e quando menos ouviríeis murmurar aos passageiros nas canoas, e muito mais lamentar aos miseráveis remeiros delas, que os maiores que cá foram mandados, em vez de governar e aumentar o mesmo Estado, o destruíram; porque toda a fome que de lá traziam, a fartavam em comer e devorar os pequenos. Assim foi; mas se entre vós se acham acaso alguns dos que, seguindo a esteira dos navios, vão com eles a Portugal e tornam para os mares pátrios, bem ouviriam estes lá no Tejo que esses mesmos maiores que cá comiam os pequenos, quando lá chegam, acham outros maiores que os comam também a eles. (…)
Padre António Vieira, in Sermão de Santo António aos Peixes)
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Mago


Mago respirou fundo. Abriu o nariz e encheu o peito de ar ou de luar, não podia saber ao certo, porque a noite era clara como o dia e parada como uma montanha. Mas fosse de frescura ou de luz a onda que bebera num trago, de tal modo o inundou, que em todo o corpo lhe correu logo um frêmito de vida nova. Esticou-se então por inteiro, firmado nas quatro patas, arqueou o lombo, e deixando-se ficar assim por alguns instantes, só músculos, tendões e nervos, com os ossos a ranger de cabo a rabo. Arre, que não podia mais! Aquele mormaço da sala dava cabo dele. Deixava-o sem ação, bambo, mole e morno como o cobertor de papa onde dormia. A que baixezas a gente pode chegar! Ah, mas tinha que acabar semelhante degradação! Não pensasse lá agora a senhora D. Maria da Glória Sância que estava disposto a deixar-se perder para sempre no seu regaço macio de solteirona. Não faltava mais nada! E, se lhe restavam dúvidas, reparasse no que estava a acontecer naquele momento: ela a ressonar sozinha, na cama fofa, enquanto ele enchia os pulmões de oxigênio e de liberdade. É certo que a deixara primeiro adormecer, e só então, brandamente, deslizara de seus braços para o tapete e do tapete para a rua, através do postigo da cozinha. Uma questão de delicadeza, apenas. Porque, afinal, não havia vantagem nenhuma em fazer as coisas à bruta e ofender quem só lhe queria bem... Que diabo, sempre a senhora D. Maria Sância, a que até um fio de oiro lhe comprara para o pescoço! Que, considerando bem, por essas e por outras é que chegara àquela linda situação...

- Ouvi dizer que já nem sardinhas comes?!

- Essa agora! É todos os dias...

- E que nunca mais caçaste?

- Ainda esta manhã...

Piadinhas do Lambão. É claro que os mimos de D. Sância lhe haviam deformado o gosto... Metia-lhe os petiscos ao focinho, tentava-se! E havia por onde escolher, de mais a mais! Quanto a ratos, que necessidade tinha de perder o tempo, debruçado três horas sobre um buraco, sem mexer sequer a menina dos olhos, à espera dum pobre diabo qualquer que ressonava lá no fundo? Deixá-los viver! As coisas são o que são. Em todo o caso, ainda comia a sua pescada crua e deitava honradamente a mão a uma ou outra borboleta branca, sem falar nas andorinhas novas e nos pardalecos que filava por desfastio na primavera. Que demónio!

- Mas que não saias de casa, sempre agarrado às saias...

Na verdade, saía pouco. Outros tempos, outros hábitos. Banqueteava-se e ficava-se pelas almofadas... Digestões difíceis, vinha-lhe um migalho de sonolência... Às vezes tentava reagir. Mas o raio da velha, mal o via pôr o pé na soleira da porta, perdia a cabeça! Parecia uma sineta!

- Mago! Mago! Bicho, bichinho!

Regressava aos lençóis, claro. Contrariado, evidentemente. Mas quê! Era o pão... O pãozinho na boca! Que remédio senão torcer caminho e, com as unhas discretamente recolhidas, continuar as carícias de algodão em rama no cachaço da dona...

- E que deixaste a Faísca!...

- Eu?

- Que anda metida com o Zimbro... Pelo menos é o que consta. Que teve até cinco pequenos dele...

- Meus! Muito meus! Do meu sangue!

Pantominice. Um triste chanato na honra do convento. Paleio de chavelhudo manso... a ninhada pertencia inteirinha ao Zimbro. Até pela pinta se via. Todos com o mesmo olhinho remelão... O que ele era era um parrana, um infeliz, embora o não confessasse. Os mimos de D. Sância tinham-no desgraçado. Ah, mas a coisa ia mudar de figura! Estava farto de ser desfeiteado. Ainda há pouco... chegara-se ao pé da mulher, disposto a impor sua autoridade.

- Ouve lá: disseram-se que mos andas a pôr para aí com todo mundo?

E recebe esta pelas ventas:

- Bem haja eu!

- Bem hajas tu?!

- Nunca guardei respeito a maricas!

Só a tiro! Mas a verdade é que a Faísca tinha razão. Lá de ano a ano é que vinha procurá-la, e isso de gado fêmeo quer assistência.

Além disso, pesadão, desconsolado. E até esquecido dos ganidos dessas horas... Uma vergonha!

- Aparece logo à noite, pelo Tinoco... Há reunião. E adeusinho...

- Adeus, Lambão.

Foi no quintal, à tarde, quando a D. Sância dormia a sesta. O Lambão, empoleirado no muro, rondava a cozinha da vizinhança, onde assavam carapaus. Por acaso chegara à janela nesse momento, vira-o e fizera-lhe sinal. E o outro, de boa ou má fé, abrira o saco. Mas há males que vêm por bem. Depois da conversa, pensara maduramente no caso, e ali estava agora disposto a ressuscitar daquela vida perdida em que o destino o metera.

Sim, ali estava, a dois passos do Tinoco, o clube da gataria de meia-idade. Bem situado, com saída para dois bairros da cidade, fora fundado pelo maior valdevinos da geração: o Hilário. Era um telhado corrido, quase plano, amplo, alto, mas de onde se podia cair de qualquer maneira numa aflição. Um achado. Como a casa servia de armazém, o Hilário viu de relance as condições do local. E logo no outro dia, os beijos, as mordedelas, os arranhões e os queixumes do cio foram ali.

Bons tempos esses! Namorava então a Boneca, uma gatinha borralheira de a gente se perder.

- Ora viva!

- Miiau...

- Seja bem aparecida, a minha bonequinha!

- Miiau...

Mimo da cabeça aos pés. Mas um rebuçadinho! Depois enrodilhara-se com a Moira-Negra, um coiro velho, curtido e batido. Cada guincho que abria a noite!

- Cala-te lá com isso, mulher!

Isso calava ela! Acabou por se aborrecer. Por fim veio a lambisgóia da Perricha... Uns trabalhos. Ciúmes, fraqueza, dores de cabeça, o diabo!

- Matas-te, filho, arruinas-te...

Palavras sensatas da mãe.

- Muda de vida, homem! Essa excomungada leva-te à sepultura.

Mas quê! O vício pode muito.

Até que a mãe morreu de velhice e desgosto, a Perricha desapareceu do bairro e ele foi cair por acaso no quintal da D. Sância.

- O bichinho está doente. Se calhar é fome...

E a ternura da senhora nunca mais o largou. A princípio ainda tentou reagir, mas, por fim, o corpo, o miserável corpo, acostumou-se ao ripanço. A parva da santanaria cuidava que era amor correspondido. Palerma! Amizade sincera não é com gatos. Simplesmente, quem brinca aos afogados, afoga-se. Com o andar do tempo, a moleza foi tomando conta dele... E pronto. Quando reparou, estava perdido. Às vezes tinha tentações do inferno. Infelizmente, as vidas iam ruins. Virava-se um balde de restos, e não se aproveitava uma espinha. Que remédio, pois, senão contemporizar... Mas cara aposentadoria! Considerando bem, melhor fora que o estafermo de solteirona nunca lhe tivesse aparecido. Mais valia andar pelado e a cair de fome e ser capaz de responder ao pé da letra aos sarcasmos que agora lhe atiravam.

- Olha o Mago!... Olha o milionário!...

O patife do Tareco. Era de o derreter logo ali! A desgraça é que não podia passar da mansa indignação que o roía. Nem forças, nem coragem para mais. E, logo por azar, com o clube à cunha! Parecia de propósito. Raios partissem a D. Sância, e mais quem lhe gabava as almofadas! Por causa delas, pouco faltava para lhe cuspirem na cara!

- Com que então de visita aos bairros pobres? Obra de assistência ao desvalidos, não?

Até o bandido do Zimbro. Vejam lá! O engraçado! Não contente de lhe roubar a mulher, de lhe pregar um par deles do tamanho duma procissão, vinha ainda com provocações à vista de toda a gente. Ah, mas estava redondamente enganado, se cuidava que não recebia o troco devido.

- O cavalheiro seja mais delicado...

- Reparem nas falinhas dele... A tratar os amigos por cavalheiros!

- Amigos? Eu não tenho amigos da sua laia!

- Pesam-lhe na testa, coitado!

Desembestou. Cego da cabeça aos pés, atirou-se ao abismo. Infelizmente as ensanchas do Zimbro eram outras. Tinha raiva, tinha dentes, tinha unhas e fôlego. Contra tais armas, que podia a simples indignação dum pobre mortal, gordo e lustroso? Servir de bombo da festa... É que nem a primeira acertou! Ágil e musculado, e com a maleabilidade de uma cobra, o inimigo furtou-se à sua fúria, e ripostou a valer ao golpe esboçado. Depois, foi o bom e o bonito! A seguir, uma saraivada de investidas traiçoeiras, meia dúzia de navalhadas de liquidar um homem. Só visto! No fim da luta, quando já não podia mais e se confessou derrotado, sangrava e gemia tanto, que até um polícia, em baixo, na rua estreita, se comoveu. O clube, esse, parecia doido de alegria. A Faísca rebolava-se no chão, de contente.

Fugiu desvairado pelos telhados. A lua, cada vez mais branca lá no alto, olhava-o com desdém. A cidade, adormecida, parecia um cemitério sem fim. Da torre duma igreja, saía um pio agoirento.

Jogara naquele lance o resto da dignidade. E perdera. Dali por diante, seria apenas uma humilhação, sem esperança. Ele, que tivera nas mãos possantes e nervosas o corpo fino e submisso da Boneca, ele, o escolhido da Moira-Negra, ele, o companheiro de noitadas do Hilário, ele, Mago, relegado definitivamente para o mundo das pantufas e dos tapetes! Proibido para o resto da existência de pensar sequer numa baforada da úmida frescura que agora lhe atravessava as ventas e lhe deixava cantarinhas no bigode... Condenado para sempre ao bafio da maldita sala de visitas da D. Sância! Negra sorte! E tudo obra do coirão da velha... Se não fosse ela, em ver de ir ali esquadrilhado e a mancar da mão esquerda, estaria no Tinoco a soltar ganidos com os outros, depois de ter feito o Zimbro em pedaços... Assim, arrastava-se penosamente por aquele caminho de desespero, tal e qual um moribundo a despedir-se da vida... Miséria de destino! Vexado, vencido, retalhado no corpo e na alma...E tudo obra do estupor da sanataria!

Vinha rompendo a manhã. Um sino ao longe deu cinco horas. Abriam-se as primeiras janelas. Grandes laivos avermelhados anunciavam a chegada próxima do sol.

Parou. Lambeu a pata doente e sacudiu-se, num arrepio. Uma lassidão profunda começava a invadi-lo. Maldita D. Sância! Se nunca tivesse conhecido a tal sujeita...

Olha, olha, a enevoar-se-lhe a vista! Queriam ver que ia desmaiar?!

Encostou-se a uma chaminé, e ficou algum tempo sem dar acordo de si, a arfar penosamente. Até que uma onda de energia o trouxe de novo ao mundo. Arregalou os olhos. Estava melhor, felizmente! Já enxergava claro outra vez. Podia continuar.

Em que trabalhos o metera o raio da senhoreca! E louvar a Deus safar-se com vida da brincadeira... Coça valente... Por um triz que não se ficava... Muita resistência tinha ele ainda!

A alguns metros apenas do jardim da casa, cuidou que tornava a desfalecer. E só então é que reparou: deixava um rastro de sangue por onde passava...

Fez das tripas coração e lá conseguiu equilibrar-se e chegar ao pequeno muro que vedava o paraíso da sua perdição. Saltava? Não saltava? Que infâmia, regressar aos mimos da D. Sância! Que nojo! Que ordinarice!

Mas a que propósito vinham agora as perplexidades e as recriminações? Sim, a que propósito? Fartinho de saber que nem sequer lhe passara pela cabeça a idéia de resolver o caso doutra maneira! Ao menos fosse sincero! De resto, que esforço concreto fizera para se libertar? Nenhum. Ainda não havia uma dúzia de horas, ouvira a voz de Lambão como um eco da própria consciência... E, afinal, ali estava outra vez! E viera de livre vontade... Ninguém o obrigara... Já roído de remorsos? Ora, ora! Outro fosse ele, nem aquela casa encarava mais. E voltara! Sim, voltara miseravelmente... E à procura de quê? Da paz podre, dum conforto castrador... Que abjeção! Que náusea!

E, sem querer, sem poder aceitar a sua degradação, Mago entrou pelo postigo da cozinha e foi-se deitar entre os braços balofos da D. Sância.

Miguel Torga
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A Choca

Ao sr. Emídio Navarro
Aquela tarde, a Choca recolhera ao poleiro mais cedo do que o costume. Atrás dela, lembrando doze novelitos de oiro a mexerem-se como por milagre, os doze filhinhos tinham seguido a mãe – e lá dentro, qual deles com mais dificuldade, um a um tinham-se encarrapitado no velho cesto de palha onde faziam a cama, aninhando-se, o melhor que puderam, debaixo da asa materna.
Eles mesmos tinham estranhado recolher tão cedo aquela tarde, os pequenitos; – mas, cá fora, o rancho das outras galinhas atribuía isso à doença da Choca, porque a pobre, com o gogo, metia dó com tamanho sofrer! Um pouco aterradas, tinham assistido havia três dias a essa operação, que a Choca sofrera, e que certas delas, na grei, sabiam muito dolorosa. A pena que lhe espetara no pescoço a velha que cuidava delas fora o mesmo que nada – e se mal estava, pior ficara, a pobre! Ainda a trazia, essa pena, mas quase seca porque não purgava; e entretanto, sem bem lhe fazer, afligia-a como se fosse um estigma tanto ou mais que a própria doença...
Por isso recolhera cedo, a Choca; deixando fora, pelo terreiro, gozando ainda o seu resto de tarde, o rancho das companheiras.
Ai, eram bem felizes, essas! Pelo buraco do poleiro, sentia-as agora cacarejar – e não tardaria que o milho do recolher, que a velha, todas as tardes, trazia para elas no seu mandil, alvoroçasse no prazer do costume, em que por via de um grão, às vezes, havia entre todas rixas alegres, o bando das companheiras...
Só ela, doente, quase já não sabia o que era comer; e ainda essa tarde, morta de sede, invejara a gotinha de água que um ou outro dos seus pintainhos, beberricando na pia, deixava, depois de saciado, cair do biquinho como uma pérola.
Mas nem comer nem beber, ela, que era muita a gosma, podia! E pelo que tocava a cacarejar, nem o bastante para a ouvirem os filhos, para os admoestar, para os dirigir – quanto mais para uma dessas tiradas que outrora lhe haviam feito, ao romper da manhã, a sua fama de cantadeira! Galos que ela apaixonara, ciúmes em que fizera arder tantas rivais, ralhos, intrigas, combates – como tudo isso ia longe, agora ! Nos bebedouros, ela mesmo se namorara da sua figura esbelta, muitas vezes; e que o não adivinhara na devoção dos galos, de tantos que a tinham amado e que ao aclarar das manhãs, todos os dias, lhe declaravam o seu amor dos poleiros à roda – adivinhara-o na inveja das outras, esse prestígio mágico da sua beleza...
Certo galo, sobretudo, agora já velho – e, como ela, agora )á também sem entusiasmos, dir-se-ia que o enfeitiçara; e agora mesmo, vendo-a recolher cedo com a ninhada, esse velho e trôpego apaixonado (mas belo, ainda assim, na sua justa decrepitude) não tardara a recolher-se também. Subtil, passara, sumira-se ao fundo na sombra densa; e erguendo um voo pesado, sentira-o aninhar-se onde passava as noites, numa trave a um canto do poleiro. Cansaço talvez da vida, talvez doença também quem lhe dizia a ela, entretanto, que ele se não recolhera por a ver recolher, por a ver doente, por um impulso de compaixão, que era agora, talvez, como a agonia do seu velho amor?!
Pelo que respeitava às companheiras, as da sua geração eram já poucas; e essas, como ela própria, mais saudosas da mocidade, do que lembradas; e quanto às novas, muitas criara-as ela – e, sobretudo, não era já dela que tinham ciúmes...
De resto, ela mesmo era boa companheira; e tirante algum fogacho de génio por amor dos filhos, se tinha de os proteger ou se lhos ofendiam, até no comedouro era moderada e no bebedouro; – e muitos pintainhos doutras ninhadas queriam-lhe como se fosse avó, e os frangos, uma vez por outra, ela própria, de manhã, ensinava-os a cacarejar.
Ah, mas esse bom tempo ia passado! Já chocara a ninhada com pouca saúde; e surpreendendo-se, às vezes, sem paciência para aturar os filhos, ignorava se seria por isso, se por a verem talvez doente, que eles mesmos, coitadinhos, pareciam às vezes também doentes!
...Entretanto, eles tinham-se aninhado todos, o melhor que lhes fora possível, debaixo da asa materna; – e embora muito enferma, ela era feliz, ainda assim, por ter tão quentes os seus pequeninos e agora, por certo, todos a dormir e talvez sonhando...
À boca da noite, as galinhas todas haviam-se já recolhido; e alguém, de fora, tapara com uma pedra o buraco do poleiro. Esse alguém fora ainda vê-la um instante enquanto as outras comiam, mas retirara-se muito triste; e agora, na quase escuridão do poleiro, pouco a pouco se estabelecera o silêncio, e por fim já se não via nada.
Decorria o tempo, mas dormir não podia, a Choca; e, opressa da gosmeira tenaz, afligia-a, mais do que a doença, ora a imobilidade a que se votava por amor dos seus pequeninos, ora esses abalos irreprimíveis de todo o corpo, quando algum acesso mais fone a sacudia.
Estava então muito doente, a Choca, e ia talvez morrer! E todavia ela fora toda a sua vida muito prestante, para merecer à sorte um sofrimento daqueles; – e esse mesmo nome de Choca, muito parecido, afinal, com uma alcunha, vinha-lhe das muitas ninhadas que havia chocado, cada uma das quais e não tinham conta! – lhe havia custado uma doença. Febre que era mesmo lume, nessas três semanas de choco, tantas vezes repetidas; e depois, nas convalescenças esses mil cuidados com os seus pequeninos, para os alimentar, para os guardar, para os ensinar...
Episódios, alguns tinha a sua biografia, e certos deles muito heróicos; e aflições então não tinham conta! Certo ovo de pata que ela chocara, deitara um monstro cá para fora; e aquela vez que o viu entrar numa ribeira tremendo por ele como por um filho, posto que lhe segredasse a natureza que o não era –, a aflição ia-a matando, com a ideia de que se lhe afogava! Depois, quando o viu boiar, que alegria!
Outro se lhe afogara, de outra vez, mas esse era bem seu filho. Descuido, fora-se a beber à pia e lá ficara; e ela, entretida com os mais, quando deu pela falta e o procurou, e quando o procurou e o achou morto, ia endoidecendo com a aflição!
Querelas com as vizinhas eram a toda a hora, se concorriam ao que esgravatava, para ela e para os seus; – e agora, prestes talvez a expirar, pesava-lhe na memória uma grande culpa: essa bicada feroz com que matara um pintainho estranho, de uma vez que o pobrezinho, que tinha a mãe também doente, viera, humilde, debicar-lhe no peito à cata de um grão, ali guardado, como num celeiro, para os que eram dela! Disso pediria ela perdão a Deus; e isso mesmo, em verdade, não fora por querer, e remira-o, pela vida adiante, com muita obra de caridade.
De resto, cumprira na sua vida todos os seus deveres, e muitas vezes, muitas, deixara de comer, inclusivamente, para que os seus não tivessem fome. Se se lhe extraviavam, procurava-os e aquele que uma vez não apareceu, mais a enfrenesiara, para toda a vida, no ódio aos gatos, que tratara sempre, desde esse dia, como inimigos – e disso não se arrependia.
Chuvadas que no campo havia apanhado, dir-se-ia até que lhe sabiam bem, com os seus filhinhos abrigados debaixo das asas; – e se eriçava as penas e arrastava as asas, à vista de certos cães, viera-lhe isso do que ouvira de alguns, que eram traiçoeiros e comilões – mas vivera em paz com a maioria.
Em suma, para defender os seus filhinhos nunca fugira, nem mesmo do homem, e a alguns se atirara com bico e unhas; – e pelo que tocava às raposas, muitas a haviam conhecido, mas de longe...
Mas o que não melhorava, coitada, era a sua gosma!
Cansada já de sofrer, ainda por cima sentia-se pior, com o frio da noite! Não tardariam os galos a cantar – e sentia que o ronrom da gosma, e os acessos que tinha às vezes, e que pareciam tosse, não tinham deixado pregar olho, lá cima, ao companheiro... Má noite, também, para os seus pequeninos; mas os inocentes, cansados e mal-comidos, ainda bem que iludiam a fome com o sono que era fadiga...
Entretanto, pela noite velha, entrou com ela um tremor de frio. A gosma sufocava-a; – e ela já sentia, um daqui, outro dali, mexerem-se inquietos os seus pequeninos. Ainda não luzia o buraco; mas lá fora, disseminados, ouviam-se já cantar os galos. – «Que é da sua força? que é da sua alegria, que já para ela não tinha encantos, essa alvorada?...» – Coitada, o frio apertava com ela; e uns debaixo duma asa, e outros doutra, alguns já desabrigados, sentia os filhinhos tremerem com frio, muito inquietos, na escuridão ainda cerrada...
– Ah, se ao menos o dia nascesse!
Mas eis que certas intermitências dos sentidos sobrevinham à pobre Choca! Não dormia, decerto, aquilo não era sono; mas a memória já se lhe apagava; esvaía-se-lhe a luz do instinto; e daí a pouco já não sentia nada. – Inerte instantes depois; e por fim (cantou agora o galo no seu poleiro!) veio-lhe um espasmo e caiu na morte...
A esse tempo aclarara a manhã; – e sobre o corpo tépido da mãe, que na própria morte ficara dócil, enovelavam-se agora, piando, os pobres dos pintainhos!

Trindade Coelho, Os Meus Amores, Lisboa, 1891

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