Coração pequeno
"o projétil que disparei
durante a grande guerra
deu a volta ao globo
e acertou-me nas costas
no momento menos adequado
quando já estava certo
de ter esquecido tudo
as culpas dele
as minhas culpas
pois quis como os outros
apagar a memória
as caras de ódio
a história confortava-me
tinha combatido a opressão
e o Livro dizia
-É ele o Caim
tantos anos pacientemente
tantos anos inutilmente
Coração pequeno
lavei com a água da piedade
a fuligem, o sangue, as ofensas
para que a sublime beleza
o encanto da existência
e talvez mesmo o bem
me habitassem
pois como todos
tinha o desejado voltar
à baía da infância
ao país da inocência
o projétil que disparei
com uma arma de pequeno calibre
contrariando as leis da gravidade
deu a volta ao globo
e acertou-me nas costas
como a dizer
- nada será perdoado
a ninguém
eis-me pois sentado solitário
sobre um tronco de árvore cortada
muito exactamente no meio
de uma batalha esquecida
e teço aranha grisalha
considerações amargas
sobre a imensidão da memória
sobre a pequenez do coração"
Zbigniew Herbert
(Polónia 1924/ 1998)
in DiVersos,
Poesia e Tradução, 17
Edições Sempre-em-Pé
terça-feira, 25 de setembro de 2012
Coração pequeno
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A PEDRA DA LUZ
A PEDRA DA LUZ – Adonis
Esculpo minha vida sobre a pedra da luz
vida calma como um grão de trigo
névoa cobre minhas letras
vejo sombra nas minhas palavras.
Por ser amor
permaneço, construo sobre a luz
e um bocado dos meus dias constrói comigo.
Adonis
Tradução de Michel Sleiman
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Elogio da Distância
Na fonte dos teus olhos
vivem os fios dos pescadores do lago da loucura.
Na fonte dos teus olhos
o mar cumpre a sua promessa.
Aqui, coração
que andou entre os homens, arranco
do corpo as vestes e o brilho de uma jura:
Mais negro no negro, estou mais nu.
Só quando sou falso sou fiel.
Sou tu quando sou eu.
Na fonte dos teus olhos
ando à deriva sonhando o rapto.
Um fio apanhou um fio:
separamo-nos enlaçados.
Na fonte dos teus olhos
um enforcado estrangula o baraço.
Paul Celan, in "Papoila e Memória"
Tradução de João Barrento e Y. K. Centeno
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MIHYAR É UM REI
MIHYAR É UM REI – Adonis
Mihyar é um rei
para ele o sonho é palácio e jardins de fogo
hoje uma voz morta
queixou-se dele às palavras.
Mihyar é um rei
vive no reino do vento
reina na terra dos segredos.
Adonis
Tradução -Michel Sleiman
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ENCONTROS
ENCONTROS – Ribeiro Couto
Dói-me às vezes pensar que na multidão
Muitos daqueles passantes que ali vão
Arcados ao peso de uma dor secreta
Não sabem que é para eles é que sou poeta
Não sabem que sei, tudo lhes adivinho
E em seus ouvidos falo baixinho.
Este seria meu amigo, aquele meu irmão,
A qualquer deles apertando-lhe a mão,
A surpresa de bom companheiro eu lhes faria,
Sábio até no riso que distrai da melancolia.
Uns caminham devagar, outros a passo lento,
Cada qual escondendo o mesmo sentimento.
Nada os espera, nem eles mesmo esperam nada,
Nem mesa posta, nem janela iluminada
Ao fim da rua, ou de outra rua, longe ou perto,
Ruas e ruas, ruas e ruas, sempre o deserto.
Portadores da minha própria solidão,
Assim passam, assim me deixam, assim se vão.
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Elytis
Abro a minha boca e o mar se regozija
E leva as minhas palavras a suas escuras grutas
E às suas focas pequenas as murmura
Nas noites em que choram os tormentos do homem.
Abro as minhas veias e enrubram-se os meus sonhos
Transformam-se em arcos para os bairros dos meninos
E em lençóis para as raparigas que velam
Para ouvir às ocultas os prodígios do amor.
Aturde-me a madressilva e desço ao meu jardim
E enterro os cadáveres dos meus mortos secretos
E às estrelas traídas que eram suas
Corto o cordão dourado pra caírem no abismo
O ferro enferruja e eu castigo o seu século
Eu que já experimentei a dor de mil pontas
Com violetas e narcisos a nova
Faca vou preparar que convém aos Heróis.
Desnudo o meu peito e os ventos se desatam
E vão varrer as ruínas e as almas destruídas
Das espessas nuvens limpam a terra
Pra que surjam à luz os prados encantados.
Elytis
tradução - Manuel Resende
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domingo, 2 de setembro de 2012
Namorada
Não uma rosa vermelha ou um coração de cetim.
Ofereço-te uma cebola.
É uma lua embrulhada em papel castanho.
Promete luz
tal como o cuidadoso desnudamento do amor.
Aqui.
Vai cegar-te com lágrimas
tal como um amante.
Vai fazer do teu reflexo
uma fotografia tremida de dor.
Tento ser verdadeira.
Não uma carta engraçada ou uma quantidade de beijos.
Ofereço-te uma cebola.
Os seus beijos violentos permanecerão nos teus lábios,
possessivos e fiéis
como nós somos,
enquanto continuarmos a ser.
Aceita-a.
Se o desejares
os seus anéis de platina servem de alianças.
Letais.
O seu cheiro vai agarrar-se aos teus dedos,
agarrar-se à tua faca.
(versão L. Parrado- original reproduzido em Selected poems, Peguin, Londres, 2006, p. 11).
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Último brinde
Bebo ao lar em pedaços,
À minha vida feroz,
À solidão dos abraços
E a ti, num brinde, ergo a voz…
Ao lábio que me traiu,
Aos mortos que nada veem,
Ao mundo, estúpido e vil,
A Deus, por não salvar ninguém.
Anna Akhmatova
(escrito em 1934, no original - tradução de Rubens Figueiredo)
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Dádiva
Um dia tão feliz.
A névoa baixou cedo, eu trabalhava no jardim.
Os colibris se demoravam sobre a flor de
madressilva.
Não havia coisa na terra que eu quisesse
possuir.
Não conhecia ninguém que valesse a pena
invejar.
O que aconteceu de mau, esqueci.
Não tinha vergonha ao pensar que fui quem sou.
Não sentia no corpo nenhuma dor.
Me endireitando, vi o mar azul e velas.
CZESLAW MILOSZ
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