A poesia tem aquela aura de escrita intensa que quando é doce é muito doce, quando é dramática é muito dramática, quando é selvagem é muito selvagem.
Esplanada
está a chuviscar um bocadinho
mas não tanto que se possa
chamar a isto mesmo chuva
e vamos ficando molhados lentamente
mas não tão molhados que valha
a pena falar disso
e um bocadinho apaixonados
mas não tanto que se possa
chamar a isto mesmo amor
Poema de Henrik Nordbrandt, traduzido por Vitor Lucas Santos
***
Le bout de la nuit
Depois de termos amado (a até às vezes a sério)
e de termos sido amados (inclusive de verdade)
Depois de termos escrito, mas sem nomear nunca
o que era necessário. Depois das cidades,
dos corpos dos objectos, depois de termos deixado
para trás o memorável com que coincidimos,
depois de defraudarmos, depois de nos defraudarmos,
depois de percorrermos a viela do tempo,
depois da impiedade, depois do fogo,
acabamos por chegar ao fim da noite.
E aí a chuva cai escura sobre o mundo,
e já não há ocasião para dizermos depois.
Poema de Carlos Marzal (traduzido por Joaquim Manuel Magalhães)
quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013
Poemas de Carlos Marzal
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Carlos Marzal, Espanha (n. 1961), tradução de Nuno Dempster
A Luis Antonio de Villena
Umas centenas de livros, uma casa na praia,
móveis que o coração foi envelhecendo
e que tornaram o mundo hospitaleiro,
fetiches de alguma viagem, talismãs
que nada puderam contra o mundo,
um punhado de cartas de uns quantos amigos,
uma ou outra carta secreta, inconfessável,
papéis ordenados, papéis sem sentido
medicamentos, quadros, roupa usada
e roupa por usar, várias contas de banco,
uma viúva aturdida, um automóvel,
uma amante aturdida, um pente com cabelos,
uma caligrafia que perdeu a firmeza da sua mão,
um odor familiar a caminho do nada.
Este é o inventário dos bens de um morto,
e como todo o censo e todas as listas
supõe um exercício de modéstia.
As nossas coisas, que às vezes pareciam proteger-nos,
habitar-nos o mundo que habitávamos,
num relance se convertem
num prolixo catálogo de absurdos,
rotas apagadas de um mapa inexistente,
pássaros dissecados cujos olhos
não sabem recordar um céu que já ardeu.
Carlos Marzal, Espanha (n. 1961), tradução de Nuno Dempster.
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René Char (1907-1988), França, tradução de Soledade Santos
J’habite une douleur
Não entregues o cuidado de governar o coração a essas ternuras semelhantes ao outono do qual imitam o ritmo plácido e a agonia afável. O olhar enruga-se precocemente. O sofrimento conhece poucas palavras. É melhor que te deites sem fardos: sonharás com o futuro e a cama ser-te-á leve. Sonharás que a tua casa não tem vidros. Estás impaciente para te unires ao vento, ao vento que numa noite percorre um ano. Outros cantarão a encarnação melodiosa, a carne que não personifica senão o feitiço da ampulheta. Tu condenarás a gratidão que se repete. Mais tarde, identificar-te-ão a um qualquer gigante desintegrado, senhor do impossível.
E no entanto.
O que fizeste apenas aumentou o peso da tua noite. Voltaste à pesca nas muralhas, à canícula sem verão. Estás furioso contra o teu amor no centro de uma conivência aflita. Idealizas a casa perfeita que nunca verás edificada. Para quando a safra do abismo? Mas tu vazaste os olhos do leão. Tu julgas ver a beleza passar por cima das lavandas negras...
O que é que te ergueu, ainda uma vez, um pouco mais alto, sem te convencer?
Não há morada pura.
René Char (1907-1988), França, tradução de Soledade Santos
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